Os Estados Unidos se tornaram um país difícil de amar.
Dói-me dizer isso. Mas não posso deixar de sentir a mesma angústia escrita nos rostos de amigos que, como eu, cresceram no sistema de Justiça. Amigos que não se importam com Donald Trump, que não votam nele, que olham para o circo cínico que acabou de se encerrar no sul de Manhattan como mais uma confirmação da falta de juízo e caráter do ex-presidente… mas que se lembram do que era o sistema americano no seu melhor, mesmo que imperfeito. Amigos que quase choram abertamente sobre o que aconteceu com esse sistema.
O sistema personificava o Estado de direito, a estrutura robusta de uma sociedade livre, próspera e pluralista. Agora, em seus dias bons, é um show de palhaços. Nos dias ruins — há muitos desses — é uma arma política.
Se você promulgar leis que reflitam a virtude cívica, e você as aplicar sem medo ou favor, e se você trabalhar muito duro nisso porque não é uma coisa fácil, você pode ter liberdade em todo o seu esplendor vigoroso. Mas, à medida que o Estado de direito se degrada no governo de ativistas partidários, uma república constitucional inexoravelmente decai em uma república das bananas. E não vai demorar muito.
Novamente, o assunto não é só Trump. Ele é apenas o modelo de testes. Não o confunda com o fenômeno em si.
Um julgamento criminal não é uma dramaturgia de moralidade. Não se trata da adequação de uma pessoa para um cargo público de alta confiança. Se fosse, valeria a pena recontar em livro e música como os fatos do caso O Povo vs. Trump atestam a inaptidão de Donald Trump para a presidência — os casos extraconjugais, as mentiras, a associação íntima com canalhas como Michael Cohen e David Pecker, as práticas contábeis que eram tão incrivelmente idiotas quanto intencionalmente enganosas. Sim, tecnicamente falando, acordos de confidencialidade com estrelas pornôs não são despesas de campanha cuja não divulgação é um crime federal reconhecível; mas isso não torna o processo injusto contra alguém com base nisso algo digno de comparação com as tribulações de Madre Teresa. E sim, a documentação de Trump pode estar do lado certo da linha da fraude, por pouco; isso não a torna mais "perfeita" do que o telefonema "perfeito" com Zelensky (referência a uma ligação entre Trump e o presidente da Ucrânia, que foi objeto de um pedido de impeachment), o discurso "perfeito" no Ellipse (referência ao discurso de Trump antes do ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, o Ellipse é um parque oval parte dos jardins da Casa Branca) e a retenção "perfeita" de documentos de inteligência altamente confidenciais em um clube de resort (referência ao armazenamento inadequado de documentos confidenciais por Trump em sua propriedade em Mar-a-Lago).
Mas nem isso, nem a estratégia de defesa idiota e autodestrutiva que se desenrolou nas últimas seis semanas, chega perto de racionalizar a confusão que os democratas progressistas fizeram do sistema de Justiça americano em sua jihad raivosa contra Trump.
Para olhos objetivos e experientes, a acusação contra Trump do procurador Alvin Bragg choca a consciência.
Bragg é um democrata que fez campanha para o cargo com a promessa implícita de que ele repetiria sua prática, como um dos principais assessores do gabinete do procurador-geral do estado, de usar o processo legal para perseguir Trump. Para isso, os novaiorquinos o elegeram — assim como elegeram Letitia "Tish" James duas vezes com base em sua promessa agora cumprida de explorar o poder do Estado contra o arqui-inimigo dos democratas. A decadência aqui não é apenas legal; é cultural.
É tão ruim o caso da manobra do "dinheiro para calar a boca" que até Bragg o encerrou em 2022 por ser indigno de sua atenção. Ele o reviveu por dois motivos que não tinham nada a ver com lei e tudo a ver com política: a igualmente ambiciosa Tish James foi elogiada pela base de extrema esquerda do partido por abrir um processo civil contra Trump com base na evidência de fraude que Bragg, prudentemente, havia optado por não usar em indiciamento; e ficou claro que Trump buscaria novamente a presidência — o que significa que se Bragg conseguisse indiciar o caso em 2023, ele seria capaz de levá-lo a julgamento nos meses críticos antes da eleição de 2024.
Bragg fez o indiciamento com base em uma lei de registros comerciais que, conforme aplicada neste caso, é inconstitucionalmente vaga sob a Constituição de Nova York. Ele recorreu a esta disposição penal porque estava desprovido do que qualquer promotor que pensasse em indiciar um ex-presidente e candidato presidencial de fato deveria ter: um crime grave que seria imputado a qualquer pessoa, apoiado por evidências claras e convincentes. Portanto, Bragg teve que confiar no capricho — que é a primeira página do manual de acusação seletiva.
O promotor não encontrou um crime, mas sim fabricou um. Mas mesmo em Nova York, onde “o homem laranja usando o uniforme [de prisioneiro] laranja” é um sonho febril coletivo, Bragg teve que trabalhar furtivamente. O melhor que ele conseguiu fazer, ao reviver o caso Stormy Daniels (atriz pornô com quem Trump teria tido um caso), foi enquadrar os acordos de sigilo espalhafatosos de Trump e a contabilidade criativa como uma infração de financiamento de campanha. Isso foi um problema, no entanto, porque Bragg é um promotor estadual que não tem jurisdição para fazer cumprir a lei federal — que é o que controla as eleições para cargos federais. Além disso, as duas entidades federais que o Congresso dotou de autoridade exclusiva para processar violações da Lei Federal de Campanhas Eleitorais (FECA), o Departamento de Justiça e a Comissão Eleitoral Federal, investigaram completamente Trump e decidiram não tomar medidas — justamente porque os acordos não eram despesas de campanha reconhecíveis (a menos que você ache que dinheiro de silêncio para estrelas pornô pode ser pago corretamente usando fundos de campanha — e imagine o que Bragg teria acusado se Trump tivesse feito isso).
O promotor permaneceu evasivo e não se comprometeu em relação ao crime subjacente que ele alegava que Trump havia cometido. Nessa e em outras irregularidades, o juiz Juan Merchan, claramente em conflito de interesses, ajudou o promotor — não sendo mais adequado para Merchan aceitar uma ação em cumprimento da lei federal do que para Bragg (Promotor Distrital) trazer tal ação em primeiro lugar.
Uma das camuflagens de Bragg foi a lei eleitoral de Nova York. Isso também foi notável: a disposição na qual ele se baseou também é um delito menor — conspiração para influenciar uma eleição por meios ilegais. Bragg não pôde acusar esse crime, assim como não pôde acusar a falsificação de registros comerciais, porque o prazo de dois anos para acusação havia expirado em 2019. Na matemática de Bragg/Merchan, no entanto, esses dois delitos menores prescritos de alguma forma se somaram a um crime grave com um prazo de prescrição de seis anos e uma pena potencial de prisão de quatro anos, que Bragg multiplicou em 34 acusações (136 anos — embora limitado a 20 anos sob a lei de sentenças de Nova York).
Tais manobras em um esquema de acusação estadual para aplicar a lei federal são notáveis. Se isso fosse uma acusação federal, as diretrizes do Departamento de Justiça teriam impedido Bragg de dividir uma única infração trivial e não violenta em 34 acusações. Esse é o tipo de prática desonesta realizada por promotores antiéticos, e é especialmente inadequado para aqueles que se vangloriam de erradicar a corrupção pública. É corrupção pública um promotor sinalizar ao júri, em um caso de crime não violento forjado, por assim dizer, contra um adversário político, que o réu deve ser uma pessoa realmente má se o governo está usando a lei contra ele como se ele fosse Osama bin Laden.
Por outro lado, isso não foi realmente uma aplicação da lei federal porque Bragg e seu cúmplice togado não aplicaram realmente a Lei Federal de Campanhas Eleitorais (FECA). Eles inventaram sua própria FECA.
Isso nunca foi feito antes, por uma razão muito simples. O Departamento de Justiça (DOJ) e a Comissão Eleitoral Federal (FEC) guardam zelosamente seu território. Se um promotor estadual tivesse tentado aplicar a FECA contra qualquer réu que não fosse Trump — em particular, se um promotor de um estado republicano tentasse invocar a lógica de Bragg para indiciar um democrata proeminente — o Departamento de Justiça de Biden teria entrado em guerra. Os promotores do Procurador-Geral, Merrick Garland, teriam exigido que os tribunais federais interrompessem o esforço de aplicação estadual, assim como fazem quando os estados tentam aplicar a lei de imigração federal porque Biden não o faz. Mas neste caso? Silêncio total.
Quando Trump reclama que até mesmo a acusação estadual contra ele, oponente de Biden em 2024, é obra de Biden, ele não está errado — mesmo que a evidência de conluio com o DOJ esteja ausente.
Enquanto Bragg jogava esconde-esconde com sua aplicação da lei federal de campanha, Merchan garantiu que a lei federal real não interferisse. Ele negou à defesa de Trump o direito de chamar o ex-comissário da FEC, Bradley Smith, que teria explicado que (a) os acordos de sigilo não eram despesas de campanha, e (b) mesmo que o acordo de Stormy (que serviu de base para as acusações de falsificação de registros comerciais) tivesse sido uma despesa de campanha, não haveria obrigação de relatá-lo até depois da eleição. Ou seja, o conto de fadas de Bragg de que Trump roubou a eleição de 2016 ao contornar as exigências de relatório da FECA era pura ficção, além de ser juridicamente sem sentido.
Não basta dizer que Merchan manteve Smith fora do banco das testemunhas enquanto permitia que Cohen e Pecker opinassem sobre a lei federal de campanha, uma questão na qual eles — assim como Bragg e Merchan — pisam fora de sua especialidade. O juiz ainda convidou os promotores a dizerem ao júri, repetidas vezes, que Cohen se declarou culpado de crimes da FECA e Pecker fez um acordo extrajudicial com o Departamento de Justiça porque temia a acusação da FECA.
Merchan sabia que essa evidência era inadmissível contra Trump. Em um dos exercícios mais cínicos de má conduta judicial que já se viu, no entanto, Merchan alegou admitir a evidência para ajudar o júri a “avaliar a credibilidade” dos dois associados de Trump. O juiz sabia muito bem que as declarações de culpa e o acordo extrajudicial não tinham relação com a credibilidade dessas testemunhas da acusação — que a defesa não queria a evidência no caso e a acusação não estava remotamente interessada em desacreditar suas próprias testemunhas-chave. Bragg queria a evidência no caso precisamente pela razão que a lei a torna inadmissível — para argumentar que Trump deve ser culpado porque dirigiu o cometimento desses “crimes” que seus ex-associados admitiram. Era trabalho de Merchan proteger Trump do abuso do promotor; em vez disso, ele assumiu o papel de promotor disfarçado.
Tantas vezes Merchan permitiu que os promotores da equipe de Bragg enfatizassem as declarações de culpa de Cohen e o acordo de não acusação de Pecker que o júri não pode ter pensado que os promotores realmente precisavam provar a infração da FECA. Era como se Merchan tivesse tomado conhecimento judicial disso — como se fosse um fato estabelecido do caso, tão inegável quanto o nascer do sol no leste. Na verdade, não há evidência da intenção de Trump de cometer crimes contra a FECA — ou, de fato, que Trump tenha pensado na FECA em 2016 quando os acordos de sigilo estavam sendo negociados ou em 2017, quando Cohen estava sendo reembolsado.
Esse é um buraco visível no caso de Bragg. Não se preocupe, no entanto: Merchan tapou esse buraco ao se recusar a instruir o júri sobre a intencionalidade, o estado de espírito que Bragg deveria provar para além de dúvida razoável para condenar Trump.
Como um todo, além disso, as instruções ao júri foram um mapa para a condenação. No caminho, os jurados foram informados de que não precisavam concordar a respeito de em qual conduta ilegal Trump havia se envolvido para conspirar para corromper a eleição (o que, lembre-se, não foi incluído na denúncia). Em vez disso, Merchan serviu um menu de três teorias de Bragg — FECA, irregularidades fiscais e mais travessuras de registros comerciais — e disse aos jurados para escolherem qualquer uma que gostassem. Contanto que cada jurado encontrasse uma, não importaria se todos encontrassem a mesma.
Como pode haver culpa para além de dúvida razoável se o júri não concorda se os promotores provaram um elemento chave do caso? Não faça perguntas impertinentes. E qual ou quais dos itens do menu os jurados escolheram? Nunca saberemos. Merchan dispensou o procedimento rotineiro de interrogatórios do júri sobre essa questão decisiva na primeira acusação criminal de um ex-presidente americano. Os interrogatórios, afinal, teriam documentado as conclusões do júri para revisão dos tribunais de apelação.
Assim, mesmo no final, a defesa não sabe o que o júri concluiu — o que é uma bela simetria, já que desde o início a defesa não foi informada sobre o que Bragg estava alegando. Trump não teria tido uma chance mesmo se Merchan não tivesse convidado os promotores a obter o testemunho explícito de Stormy Daniels sobre o encontro sexual que ela diz ter tido com Trump em 2006... e que agora insinua que pode não ter sido consensual (depois de anos dizendo o contrário). O que isso tinha a ver com a forma como a organização Trump registrou os pagamentos de reembolso do acordo de sigilo a Cohen onze anos depois? Claramente nada, e é por isso que Merchan, irritado, repreendeu os promotores por trazerem o testemunho que ele mesmo havia autorizado, e culpou os advogados de defesa por não objetarem depois que ele já havia rejeitado suas moções para excluir esse depoimento extremamente patológico.
É desnecessário dizer que esse depoimento não tinha nada a ver com a defesa do Estado de direito ou a erradicação da corrupção pública. Manifestamente, o objetivo do depoimento da estrela pornô era humilhar Trump. Manifestamente, o objetivo da acusação era permitir que Joe Biden chamasse seu oponente de criminoso condenado de agora até 5 de novembro (dia da votação).
Se você acha que isso foi um caso isolado, você não apenas perdeu os últimos 15 anos do que passa por aplicação da lei nas grandes cidades progressistas dos EUA e — na maior parte desse tempo — o controle pelo Partido Democrata do Departamento de Justiça. Você perdeu mais de um século de degeneração jurídica americana, durante o qual a lei foi reimaginada como uma arma extorsiva de “progresso” social, o devido processo se degradou em processo punitivo e precedentes ruins foram inevitavelmente explorados em precedentes monstruosos.
O que aconteceu em Manhattan foi monstruoso. As consequências são a antítese de uma república constitucional que presume inocência, impõe o ônus da prova ao Estado, venera suas regras de devido processo e garante proteção igualitária diante da lei. A antítese agora é a norma. Independentemente do que aconteça a Donald Trump, todos nós viveremos para nos arrepender disso.
Andrew C. McCarthy é membro sênior do National Review Institute e autor de bestseller.
©2024 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês.
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