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Após a postagem ofensiva realizada por uma assessora nas redes sociais, o Ministério da Igualdade Racial divulgou nota anunciando que o caso seria investigado internamente, mas com a ressalva: “ainda que as postagens tenham sido feitas em momento de descontração, fora dos ritos institucionais e de tom informal”.
Na postagem, Marcelle Decothé da Silva, então assessora de Anielle Franco, se referia à torcida do São Paulo como “Torcida branca, que não canta, descendente de europeu safade... Pior tudo de pauliste” (sic). Juristas consultados pela Gazeta do Povo afirmaram que a conduta poderia ser enquadrada na Lei do Racismo, como crime de preconceito ou injúria em razão de cor ou procedência nacional. A assessora acabou sendo exonerada nesta terça-feira (26).
Na nota divulgada pelo Ministério, a conjunção concessiva estabelece relação de oposição entre a postagem merecer investigação e ter sido feita em momento de descontração. Em outras palavras, o contexto de descontração diminuiria a gravidade da fala, na visão do Ministério da Igualdade Racial.
Isto entra em contradição literal com a Lei Antipiadas (Lei n.º 14.532/2023), que foi promulgada pelo próprio governo em janeiro deste ano e passou a prescrever que as falas sejam consideradas mais graves (e não menos) “quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”, caso em que a pena será aumentada de um terço à metade.
Simbolicamente, esta lei foi sancionada pelo presidente Lula no evento de posse de Anielle Franco, atual titular do Ministério da Igualdade Racial, que emitiu a nota. A ministra então empossada chegou a postar em suas redes sociais um vídeo do presidente assinando o texto, acompanhado de dizeres laudatórios da nova lei: “Momento em que nosso presidente @LulaOficial assina Projeto de Lei que tipifica a injúria racial como crime de racismo. Enfim um governo comprometido com reparação! Que orgulho fazer parte dele como Ministra da Igualdade Racial. Estejam com a gente pro nosso trabalho ser maior!”
A Lei Antipiadas, cuja promulgação a ministra então comemorava, tem sido aplicada na persecução penal contra comediantes. Foi explicitamente citada, por exemplo, pelo Ministério Público em denúncia contra o comediante Léo Lins.
Inovação jurídica
A nova regra instituída pela Lei Antipiadas foi incluída no projeto originário por proposta do senador Paulo Paim (PT-RS). A regra, além de ser contraintuitiva para o senso comum (ao tratar como mais séria, juridicamente, uma fala que não foi proferida a sério), foi também uma ruptura em relação à antiga concepção vigente no direito, ramo onde existe até mesmo uma expressão em latim — animus jocandi — para designar a fala irônica ou jocosa. O animus jocandi pode chegar a afastar completamente a caracterização de uma fala como crime, tornando-a lícita.
A Lei Antipiadas, além de inverter esta lógica, trouxe uma série de outras disposições que seriam desfavoráveis à assessora do Ministério da Igualdade Racial, caso sua conduta fosse considerada crime: a lei passou a prever forma qualificada (com maior pena) se o crime for praticado em publicação em redes sociais, ou, ainda, se for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público — caso da assessora, que estava em estádio assistindo a partida de futebol. Nesta hipótese, passou a ser prevista ainda nova modalidade de pena, a de proibição de frequência, por três anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.
Estas disposições refletem o propósito original do projeto de lei, que, conforme sua exposição de motivos, mirava sobretudo xingamentos racistas proferidos em estádios de futebol, e assim foi anunciado ao público. No entanto, a redação adotada agravou a situação dos comediantes, que agora podem, como resultado, ser proibidos de realizar espetáculos de humor por três anos.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
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