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A cada vez mais evidente aliança de fato entre a Rússia e a China faz a guerra na Ucrânia parecer um pouco mais um fronte em um mais amplo choque das civilizações.
Em seu famigerado livro de meados dos anos 1990 com esse título, Samuel Huntington fez uma breve contemplação de uma parceria desse tipo: “Rússia e China unidas com certeza pesariam na balança contra o Ocidente e despertariam todas as preocupações que existiam a respeito da relação sino-soviética nos anos 1950”.
Se é um exagero comparar isso à situação atual — os dois países não estão alinhados formalmente e o poderio militar russo não é mais o que já foi, entre outras coisas — não há dúvida a respeito do aspecto civilizacional da tensão geopolítica de hoje. Isso não significa que grandes blocos civilizacionais estão dispostos ou em alianças uns contra os outros como imaginou Huntington, mas que uma hostilidade ao Ocidente como tal anima nossos principais adversários.
Em um discurso no ano passado, Vladimir Putin protestou, como de praxe, contra a “dominância indivisível do Ocidente sobre os assuntos mundiais” e o culpou por manter subalternas o que a região considera “civilizações de segunda classe”.
O presidente Xi Jinping falou de forma similar, mas menos ferina. Ele acredita que seu país está prestes a prover “uma nova opção para outros países” e “uma abordagem chinesa para resolver os problemas que se põem perante a humanidade”. Em suma, a nossa era “verá a China se aproximando do centro do palco”.
Tanto a Rússia quanto a China são movidas por um ressentimento por humilhações passadas que sentem que são imediatas, não importa o quão distantes estejam no tempo. Buscam baixar do pódio um pouco o Ocidente para atingir seu lugar merecido no mundo, não apenas em termos de poder, mas de respeito e status. (Como observou Henry Kissinger uma vez, “sempre foi um dos paradoxos do comportamento bolchevique que seus líderes ansiavam ser tratados como iguais pelas pessoas que eles consideravam condenadas”.)
A Ucrânia ressalta essa inconsistência nas ambições russas e chinesas. Pode-se argumentar que o apoio ocidental à Ucrânia é caro demais, ou imprudente, ou ambos. Que a Ucrânia é um ralo de corrupção que não merece confiança para receber rios de dinheiro. Que a expansão da OTAN assustou a Rússia e a provocou à agressão.
Não se pode duvidar, contudo, da superioridade moral e política do Ocidente sobre seus adversários autoritários que representam tradições imperiais corruptas e venenosas.
É claro que as civilizações russa e chinesa têm grande profundidade e são responsáveis por impressionantes conquistas culturais. Nossos líderes e diplomatas devem sempre reconhecer isso, mas o fato é que, se Vladimir Putin soa que está na defensiva a respeito de “civilizações de segunda classe”, há um bom motivo para isso.
Alguns milênios depois de Atenas e alguns séculos depois da revolução democrática moderna, a Rússia e a China nunca conseguiram criar sociedade estáveis, democráticas e abertas.
Ambas têm presidentes vitalícios corruptos que prendem e matam os seus adversários.
Com ressentimento ou inveja do sucesso do Ocidente moderno, e particularmente dos Estados Unidos, sonham com restabelecer uma versão de seus antigos impérios autoritários.
Ambas cometeram crimes horrendos envolvendo o assassinato e encarceramento de milhões em seu passado não tão distante. Agora mesmo, a China está perpetrando um genocídio.
São diferentes, é claro. A Rússia é a mesma bagunça instável que quase sempre foi, seu poder é na maior parte uma função de território e recursos naturais, enquanto a China conseguiu uma ascensão econômica, tecnológica e militar extraordinária que representa um desafio aos Estados Unidos que pode superar a antiga ameaça soviética.
Com certeza o coração do Ocidente, o mundo anglófono, é culpado por enormidades — o comércio transatlântico de escravos, maus tratos aos povos nativos, discriminação racial. Tudo isso aparecerá no topo do lado negativo do balanço.
Na vida, porém, a questão sempre é “comparado a quê”? E comparado ao resto do mundo, e especialmente aos regimes que nos desafiam, nem é uma disputa acirrada.
O Ocidente pode ser ingênuo, irresponsável, imprudente ou autodestrutivo, mas não é malicioso ou maligno. Ele representa o maior avanço em liberdade, prosperidade ampla e autogoverno na história humana, e forjou a modernidade como a conhecemos.
Ele criou um respeito pelo indivíduo e os direitos humanos.
Ele criou um sistema internacional de Estados soberanos e autossuficientes com uma norma contra guerras de expansionismo territorial.
Ele criou entidades políticas em que o governo da lei é salutar.
Ele criou um governo responsável que está sujeito à aprovação ou desaprovação do povo.
Todas essas coisas são odiosas para nossos adversários. Agora eles dirão — junto com os críticos internos do Ocidente — que tudo foi construído sobre mentiras, ou que é minado pela nossa flagrante hipocrisia.
Mas na prática nada do que o Ocidente tipicamente é acusado é exclusivo do Ocidente. Escravidão? É muito mais antiga que o Ocidente e persistiu até bem depois do Ocidente tê-la eliminado de suas sociedades. Guerra? É endêmica à natureza humana, como é demonstrado pelas evidências de mortes violentas antes da organização política em ampla escala e pelo comportamento de sociedades tribais contemporâneas. Colonialismo? Por favor. E quanto aos árabes, partos, mongóis, hans, etc. etc., sem falar nos astecas ou comanches?
Pessoas razoáveis podem discordar a respeito da política quanto à Ucrânia, mas não pode haver dúvida sobre qual dos concorrentes é superior de toda forma que deve ser importante. O Ocidente precisa entender por que é tão distinto, e o que alimenta a animosidade daqueles que querem derrubá-lo.
Rich Lowry é editor-chefe da National Review.