Antígona diante do cadáver do irmão, em intura de Nikiforos Lytras (1865): menção à desobediência civil| Foto: Wikimedia
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Deve ser terrível viver em um lugar onde é preciso decidir entre a desobediência civil e a submissão a um tirano.

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Antígona que o diga.

Ela é a personagem central de uma tragédia grega que leva seu nome e foi escrita por Sófocles há mais de 2.400 anos. Nela, o tema central é a tensão entre um decreto do rei e o senso de justiça da protagonista.

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Antígona perdeu dois irmãos, Etéocles e Polinice, em combate. O rei Creonte permitiu ao primeiro um enterro convencional, mas não assegurou o mesmo privilégio ao segundo. Polinice, que era um adversário de Creonte, não teria direito a um túmulo. “Declaro que fica terminantemente proibido honrá-lo com um túmulo, ou de lamentar sua morte; que seu corpo fique insepulto, para que seja devorado por aves e cães, e se transforme em objeto de horror”, anunciou o soberbo Creonte.

Quem desobedecesse ao rei corria o risco de ser apedrejado.

“Ele não tem o direito de me coagir a abandonar os meus!”, exclamou Antígona, que era noiva de Hémon, filho do próprio Creonte.

A noção de que um rei não tinha direito a algo era nova.

O rei não pode tudo

Na Antiguidade, e em boa parte do que veio depois, os reis eram onipotentes e tinham poder de vida e morte sobre os cidadãos. 

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Mas Antígona afirma que existe algo maior do que os decretos reais: ela apela às "leis divinas". Sua irmã Ismênia titubeia: "Não as desprezo; mas não tenho forças para agir contra as leis da cidade".

Antígona enterra o corpo de Polinice mesmo assim. Ela é presa e levada para ser interrogada por Creonte. Ao rei, ela admite que sabia do édito do rei.“E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?”, ele pergunta.

Antígona responde: “Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis”.

Nas próximas cenas, Creonte resiste às admoestações do filho, do pai e de Tirésias, um adivinho, que afirma: “Tu não tens o direito de o fazer; nem tu, nem qualquer divindade celeste! É uma inaudita violência, a que praticaste!”, ele clama. O rei se mantém irredutível.

O drama de Antígona é tão relevante que acabou mencionada por Cícero, cinco séculos depois, em uma obra sobre a legitimidade das leis.

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Ainda hoje, a questão central da obra é tema de debate entre filósofos, cientistas políticos e juristas: em quais circunstâncias é legítimo desobedecer ao poder do Estado?

Nem toda decisão judicial é legítima

Assim que o ministro Alexandre de Moraes determinou a suspensão do X (antigo Twitter) em todo o Brasil, acompanhada pela proibição do uso de VPNs, parlamentares como Nikolas Ferreira (PL-MG) e Marcel Van Hattem (NOVO-RS) desafiaram abertamente a determinação imposta por Moraes.

Por outro lado, houve quem adotasse um tom fatalista: "Decisão judicial se cumpre", repetiam.

Mas nenhum deles explicou qual é a fundamentação para que se cumpra uma decisão ilegítima ou imoral.

Pela legislação da Alemanha nazista, perseguir judeus era legal — e, para alguns, compulsório. Isso não significa que o Holocausto foi legítimo.

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Depois de Antígona, pensadores têm debatido esse tema por séculos. A maior parte deles reconhece que a lei aprovada por legisladores ou reis só se fundamenta se não contrariar uma lei mais profunda: a lei natural, que pode ser encontrada por qualquer pessoa que faça bom uso da razão. A noção moderna de direitos humanos surge dessa concepção.

Sócrates: morto por discordar do governante da vez

O marco inicial da Filosofia é o relato de Sócrates diante dos seus executores: instado a abandonar a defesa da verdade em nome do poder político, ele preferiu a sentença de morte. "Sócrates, conforme narrado por Platão, foi um dos primeiros grandes exemplos de que as leis humanas e o poder do Estado estão sob o julgamento de uma lei anterior, que é descoberta quando o ser humano se configura à medida divina do próprio homem", afirma Gustavo Adolfo Santos, doutor em Teoria Política e professor na Universidade Católica da América, em Washington.

Ele explica que, mais adiante, autores como Tomás de Aquino e John Locke desenvolveram essa ideia de forma mais elaborada. 

“São Tomás ensinava que as leis injustas, contrárias à razão ou com algum vício de origem não são leis, mas ‘violências, pois, como diz Agostinho, não se considera lei o que não for justo’”, ele diz.

Na obra de John Locke, o Estado existe sobretudo para proteger os direitos naturais dos cidadãos. Esses direitos antecedem a existência do Estado. “Nesse sentido, o Estado encontra seus limites exatamente nos direitos a que está destinado proteger, e o representante ou soberano que atenta contra esses direitos coloca-se numa situação de guerra com os cidadãos”, afirma Santos. 

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Locke foi um dos autores mais influentes entre os fundadores dos Estados Unidos, que até hoje mantém uma política de ampla liberdade de expressão.

O Ocidente tem uma longa linhagem de pensadores que justificaram o direito à desobediência civil. Mas esse princípio carrega em si um perigo: o de que a lei perca o efeito.

João Calvino, um dos líderes da Reforma Protestante, tinha uma visão cautelosa: para ele, só era legítimo desobedecer o governante quando ele tentasse obrigar os súditos a contrariar diretamente a lei de Deus. Fora isso, era preciso se submeter a quem estivesse no poder.

Nem todos os pensadores adotaram essa visão.

Thoreau: um entusiasta da desobediência civil

O americano Henry David Thoreau levou mais longe a noção de desobediência justa. Para ele, toda desobediência era justa. No século 19, Thoreau escreveu "Desobediência Civil", um livro no qual defende a primazia do indivíduo sobre o Estado. "O melhor governo é o que absolutamente não governa", ele argumentou.

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Para ele, nem mesmo fato de a maioria das pessoas apoiar o governo não torna as ações estatais legítimas. "Não nasci para ser coagido. Respirarei à minha própria maneira. Vamos ver quem é mais forte. Que força tem uma multidão? Só podem me coagir aqueles que obedecem a uma lei mais elevada que a minha", Thoreau escreveu.

Thoreau não era uma anarquista, mas afirmava que a autoridade do governo só é legítima quando é consentida: "A autoridade do governo, mesmo aquela a que estou disposto a me submeter (...) é ainda uma autoridade impura: para ser rigorosamente justa, ela deve ter a aprovação e o consentimento dos governados. Ele não pode ter sobre minha pessoa e meu patrimônio senão o direito que eu lhe concedo", argumentou.

Thoreau levava seus princípios a sério. Ele chegou a ser detido por não pagar impostos, e viveu por anos em meio à natureza, com um contato mínimo com a civilização.

De certa forma, as ideias dele sobreviveram em figuras como Rosa Parks, Mahatma Ghandi e Franz Jägerstätter, que se recusou a lutar pelo exército nazista.

Na Bíblia, submissão ao governo não é absoluta

Ao mesmo tempo em que ensina a submissão às autoridades, a Bíblia exalta figuras que desobedeceram ordens que contrariam a lei divina.

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Vice-diretor técnico do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IDR), o advogado Gabriel de Almeida afirma que o ensinamento cristão de respeito às autoridades não é absoluto. "As Escrituras nos apontam exceções em que não devemos nos sujeitar às autoridades, nem às ordens dos governantes", diz Almeida.

Como exemplo, ele cita o relato do livro de Êxodo em que Joquebede coloca o bebê Moisés em um cesto no rio Nilo para escapar da determinação do faraó, que mandara exterminar os meninos israelitas.

Almeida diz que, embora a situação jurídica do X seja debatível, a decisão de Moraes violou os direitos de pessoas que não têm a ver com o processo e que tiveram o acesso à plataforma bloqueado por uma disputa que nada tem a ver com elas.

“Vejo a decisão como uma violação injusta de direitos fundamentais caros à democracia, como a liberdade de expressão, a aplicação inconstitucional de censura prévia e a dignidade da pessoa humana, a partir da supressão desses direitos fundamentais de maneira irrestrita e injustificada a toda a coletividade”, ele diz.

O fim trágico de um rei arrogante

Ao fim da tragédia "Antígona", o rei Creonte cede e aceita libertar a protagonista: "Eu próprio, que ordenei a prisão de Antígona, irei libertá-la! Agora, sim, eu creio que é bem melhor passar a vida obedecendo as leis que regem o mundo!”

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Mas é tarde demais. Antes de receber a notícia, Antígona tira a própria vida — no que foi seguida por Hémon, seu noivo e filho de Creonte. Em choque, a rainha — esposa de Creonte também comete suicídio.

Sófocles usa o rei Creonte para ensinar uma lição: os decretos de reis, presidentes ou juízes não é onipotente e não têm o poder de apagar a lei natural.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]