A falta de áreas verdes não é um problema no bairro de Northwest Goldberg, a quatro quilômetros do centro de Detroit. De longe, um visitante desavisado pode acreditar que se trata de um novo loteamento, ainda pouco povoado. Mas a verdade é que os espaços vazios um dia já foram ocupados por casas. As ruas desertas já estiveram preenchidas com o movimento incessante de carros fabricados não muito longe dali. O cenário deserto se repete em muitos bairros de Detroit, a cidade que foi a capital mundial do automóvel e que hoje tenta se reerguer.
Em uma das ruas desertas de Northwest Goldberg fica o majestoso templo da Igreja Batista King Solomon, cujas portas estão fechadas há mais de uma década e a fachada se desfaz pouco a pouco. A congregação ainda se reúne, mas do outro lado da rua. Em vez do prédio de 1.300 lugares, a igreja utiliza instalações mais modestas: seu antigo auditório, que hoje abriga com folga as menos de 100 pessoas que se reúnem para o culto dominical.
A igreja, que foi palco de um dos discursos mais importantes do ativista negro Malcom X nos anos 1960, ainda está em uma situação razoável em comparação com algumas de suas vizinhas que fecharam as portas nas últimas décadas. “A igreja ainda é sustentável financeiramente”, explica o jovem pastor Charles Williams II, que também é doutorando em sociologia pela Universidade do Michigan.
A verdade é que Detroit, uma das cidades mais ricas dos Estados Unidos na década de 1950, entrou em queda livre no fim dos anos 60. Basta verificar os números para entender o que ocorreu. A população de Detroit, que no fim dos anos 1950 estava em 1,8 milhão de pessoas, hoje não passa das 670.000 – e continua caindo, segundo os números oficiais.
Ascensão
A emergência de Detroit está ligada à primeira linha de produção em massa de carros, fruto da engenhosidade de Henry Ford. No começo do século 20, a cidade se transformou na capital mundial do carro. Além da Ford, da General Motors e da Chrysler (conhecidas como as “Big Three”), que nasceram na grande Detroit, lá também surgiram companhias como a Dodge e a Chevrolet.
A inovação trazida pelo fordismo – a linha de produção em massa – causou mudanças radicais. Uma delas: a popularização do automóvel, que até então era um objeto de luxo. Com isso, vieram as estradas, que permitiram a integração rápida entre áreas distantes e facilitaram a mobilidade dos americanos. Já não era mais preciso morar perto do local de trabalho. Como consequência, nasceram os primeiros subúrbios.
Detroit cresceu por causa da indústria automotiva, que empregava a maior parte da mão de obra da cidade. A dependência criava problemas. As oscilações naturais no ritmo de produção industrial geravam demissões em massa e protestos com alguma frequência, mesmo antes do grande declínio. “No começo dos anos 1920, Detroit havia se transformado em uma cidade com apenas um tipo de indústria, e seu crescimento dependia das suas fábricas automotivas extremamente bem sucedidas – mas suscetíveis à recessão”, diz o jornalista Scott Martelle no livro Detroit: a Biography [Detroit: uma biografia].
A linha de produção em massa também trouxe como consequência o surgimento de uma classe operária mais organizada. O modelo fordista dependia de um número elevado de trabalhadores para manter a produção funcionando. O desenho do espaço de trabalho favorecia a formação de sindicatos com grande poder de barganha e mobilização.
Em 1900, os negros eram 1,5% da população da cidade. Na mesma época, um terço dos moradores de Detroit era de imigrantes vindos de países como Irlanda, Alemanha, Polônia e Grécia. Com a Primeira Guerra Mundial levando milhares de jovens brancos para lutar na Europa, Detroit passou a empregar operários negros com mais frequência. Até então, a regra era priorizar os brancos.
A Segunda Guerra Mundial ampliou a migração de negros vindos do Sul. Entre 1940 e 1943, cerca de 500 mil afrodescendentes se mudaram dos estados sulistas para Detroit. O rápido influxo de novos moradores trouxe problemas, mas não impediu que o progresso continuasse. Nos anos 1950, Detroit chegou a ter a renda familiar média mais alta dos Estados Unidos.
Se a população é um sinal adequado para medir o crescimento de uma cidade, Detroit começou a desandar nos anos 1960.
Aparentemente, tudo ia bem. Na edição de 1962 do Salão do Carro de Detroit, o presidente da Ford, Henry Ford II, destacou que o futuro era promissor para a indústria automotiva. Havia bons motivos para isso. Uma geração de baby boomers chegava à idade adulta e, como consequência natural, entrava para o mercado consumidor. Novas estradas estavam sendo abertas. A economia estava em crescimento. E, mundo afora, outros povos começavam a adquirir automóveis em larga escala.
Culturalmente, a cidade também vivia seu auge. Detroit era sede da gravadora Motown, ícone da cultura negra e celeiro talentos como Stevie Wonder, Diana Ross e The Temptations. A gravadora havia se transformado em sinônimo de excelência.
Na mesma época, Detroit disputava o direito de sediar os Jogos Olímpicos de 1968. Candidata oficial dos Estados Unidos, a cidade por pouco não obteve a honraria: acabou em segundo lugar na disputa geral. No vídeo de divulgação para o Comitê Olímpico, o que se vê é uma cidade moderna, plural e em franco crescimento.
Mas algo já estava mudando.
Um relatório da Wayne State University, elaborado pelo professor Albert Mayer em 1963, identificou pela primeira vez uma tendência de redução populacional na cidade. A previsão se confirmaria nos anos seguintes.
Conflitos
A tensão racial em Detroit explodiu em 23 de julho de 1967. Durante a noite, num bairro negro, a polícia fez uma batida em um bar que havia ultrapassado o horário de funcionamento. A situação aparentemente simples começou a sair de controle quando a polícia resolveu prender todas as 85 pessoas presentes e enfrentou resistência.
Rapidamente, protestos se formaram e evoluíram para um quebra-quebra generalizado que durou dias. O saldo final foi de 43 mortos, 2.500 prédios vandalizados e mais de 7.200 pessoas presas. O episódio aceleraria um movimento que já havia tido início em pequena escala: o chamado “white flight” – a fuga dos moradores brancos para os subúrbios.
Com a massificação dos automóveis, era perfeitamente possível trabalhar em Detroit e morar fora da cidade. Como consequência do êxodo de moradores, a arrecadação municipal caiu bruscamente e a cidade ficou sem condições de resolver problemas como o da violência.
“Um dos fatores que depreciam o preço dos imóveis e reforçou o declínio de uma cidade é a violência. Ela inibe a dinâmica do mercado. O valor que a pessoa recebe pelo aluguel ou a venda da casa não banca a manutenção e a cobertura da depreciação, o que intensifica ainda mais o próprio efeito da decadência urbana”, explica o professor Vladimir Maciel, coordenador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica.
Detroit entrou em uma espiral descendente: gangues surgiram e se fortaleceram. Os bairros abandonados e os prédios vazios facilitavam a ação de criminosos e dificultavam o policiamento.
Com o crime em alta, mais famílias deixavam a cidade. Uma delas foi a de Paul Allison, hoje com 38 anos. Nascido em Detroit, ele foi criado em um subúrbio da cidade e de lá nunca saiu. Casado e com filhos, ele frequenta o centro de Detroit para assistir a eventos esportivos e culturais. Mas, por ora, não pensa em voltar a viver na cidade-natal. “A violência teria de diminuir muito para que eu me sentisse seguro aqui. A região central da cidade já melhorou, mas há muitos bairros perigosos”, diz ele.
De fato, o problema persiste. Em 2018, a taxa de homicídios de Detroit ficou em 30/100.000 habitantes, mais do que o triplo registrado na cidade de São Paulo.
Mas os conflitos raciais e a violência são parte da explicação para o esvaziamento de Detroit. Outras causas têm a ver com o peso excessivo da indústria automotiva na economia da cidade.
Sindicatos
No fim dos anos 1930, os sindicatos começaram a ganhar força na capital do automóvel. A General Motors foi a primeira a capitular, em 1937, reconhecendo a United Automobile Workers (UAW) como representante de seus trabalhadores. As demais montadoras fariam o mesmo.
Do ponto de vista das empresas, o raciocínio era simples: por causa da necessidade de grandes contingentes de operários e o trabalho especializado exigido deles, não era possível substituir rapidamente os funcionários em greve. Por isso, as montadoras acabavam cedendo.
Enquanto dominavam o mercado e tinham uma concorrência relativamente baixa, as grandes empresas não se preocupavam tanto: apenas embutiam o preço das demandas sindicais em seus produtos. Isso acabou por inflar os salários artificialmente. Com o tempo, entretanto, as empresas passaram a buscar alternativas, como a construção de fábricas fora dos Estados Unidos. Isso, somado à automação industrial, reduziu a oferta de empregos na grande Detroit.
Além disso, a competição de empresas estrangeiras entrou em cena. Entre 1958 e 1969, três fabricantes asiáticas chegaram discretamente ao mercado americano: a Toyota, a Nissan e a Honda. Em 1975, o trio já era responsável por 15% dos carros vendidos nos Estados Unidos. Hoje, o percentual está acima dos 30% (incluídas outras companhias asiáticas, como Hyundai, Kia e Subaru, o percentual passa dos 40%).
Durante a crise de 2008, quando o governo federal americano injetou dinheiro em companhias como a General Motors, um relatório da Heritage Foundation observou que os operários da Ford, da GM e da Chrysler, sindicalizados pela UAW, recebiam cerca 75 dólares por hora, incluídos os benefícios. Isso era o triplo do valor pago, em média, aos outros trabalhadores do setor privado. Nas montadoras japonesas com fábricas nos Estados Unidos (e cujos trabalhadores não são sindicalizados), o valor ficava entre 42 e 48 dólares.
Em parte graças à influência do sindicalismo, a política de Detroit tende para a esquerda. O último prefeito republicano da cidade o deixou o cargo em janeiro de 1962, e todos os nove vereadores da cidade são do Partido Democrata. Por muitos anos, conforme a crise da cidade se agravava, em vez de medidas que incentivassem a competitividade da economia local, a prioridade parecia ser a imposição de restrições ao setor privado e o aumento de impostos, o que acabava por afugentar empreendedores e a classe média. De forma geral, ficaram em Detroit os mais pobres, que não tinham alternativa.
Renascimento?
Embora a população não tenha voltado a crescer e boa parte da cidade continue deserta, Detroit tem dado sinais de um ressurgimento desde que pediu falência, em 2013, e ficou sob intervenção do governo estadual por um ano e meio.
De 2015 a 2018, o índice de pobreza na cidade passou de 39,8% para 33,4%. No mesmo período, a renda domiciliar média saltou de 25.980 para 31.283 dólares. A área central de Detroit, limpa, bem organizada e com poucos imóveis desocupados, não é muito diferente do de outras grandes cidades americanas. O gigantesco prédio da Michigan Station, abandonado desde 1988, começou a ser restaurado pela Ford, que usará o espaço como sede de um centro de inovação. O Detroit Pistons, time de basquete da cidade que havia mudado para os subúrbios no fim dos anos 70, voltou a sediar seus jogos no centro da cidade graças à inauguração de uma nova e moderna arena.
O majestoso templo da Igreja Batista King Solomon deve ser reaberto graças ao apoio do governo estadual. Mas a nova realidade demográfica não justifica a existência de uma igreja daquele tamanho. “A ideia é que o prédio seja reaberto como um centro comunitário”, explica o pastor Charles Williams II.