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Opinião

Dia D: a violência é sempre humana, nunca divina

Apesar das histórias de heroísmo e idealismo, o desembarque na Normandia também foi, de certa forma, uma confissão de derrota da Civilização.
Apesar das histórias de heroísmo e idealismo, o desembarque na Normandia também foi, de certa forma, uma confissão de derrota da Civilização. (Foto: Pixabay)

A idade tem dessas coisas. Hoje foram celebrados os 75 anos da icônica Operação Overlord, ou simplesmente Dia D – o desembarque das tropas aliadas na Normandia, feito que marcou o início da queda de Hitler no front ocidental.

E, assistindo a algumas cerimônias, lendo sobre um veterano de 97 anos que saltou de paraquedas para repetir o que fizera naquele 6 de junho de 1944, vendo fotos, algumas artisticamente colorizadas, para dar ainda mais dramaticidade à cena toda, comecei a pensar em minha própria relação com a guerra.

Sou fascinado pela Segunda Guerra Mundial desde que, ainda criança, com uns sete anos de idade, mais ou menos, um pracinha apelidado no Bairro Alto de João Preto me mostrou suas lembranças de guerra. Nunca soube a identidade real de João Preto, que vivia entre um casebre e o bar da Jô, ao lado da minha casa.

Mais velho, passei a me interessar especialmente pelo Dia D. A maior invasão anfíbia da história. Anos de preparação. Segredos muito bem guardados. Pelotões de mentirinha, feitos com a ajuda de cenógrafos de Hollywood, para despistar o inimigo. Norte-americanos e ingleses brigando nas ruas pela honra das moças nativas. Personagens míticos: Churchill, Eisenhower.

E, na batalha em si, histórias de heroísmo e covardia, de sorte e de azar. A brutalidade e aleatoriedade de tudo.

Num vídeo do desembarque na Normandia a que assisti há muito tempo, lembro-me de ver um homem sair da água, dar dois ou três passos, e simplesmente cair morto no chão. No silêncio daquelas imagens trêmulas em preto-e-branco, aquela morte anônima me marcava como um símbolo de um grande Acaso que parece governar tudo. O que pensava aquele homem antes de levar o tiro fatal? Quais os sonhos dele? O que ele deixou de realizar para o mundo por causa daquele instante?

Recentemente, porém, o fascínio pelo Dia D e todas as coisas relacionadas à Segunda Guerra Mundial tem dado lugar a um outro sentimento que não sei nomear direito e que por isso chamo de O Grande Incômodo. O que tem me causado engulhos ao pensar no conflito como um todo, e nesta batalha em específico, é a banalização da vida. Ou seria da morte?

É algo semelhante ao incômodo que senti ao ver recentemente a fotografia de um congestionamento de alpinistas e de saber que, até aquele dia, onze pessoas tinham morrido tentando chegar ao cume do Everest. A sensação de que as pessoas simplesmente não se importam em morrer, de que a morte se tornou tão parte da vida quanto atravessar uma rua ou derrubar a torrada com a manteiga voltada para baixo. As pessoas riem do suplício de Ivan Ilitch.

A essa reflexão espiritual acrescento outra mais tangível: a histórica. Milhares de pessoas, de homens jovens, de filhos e netos morreram naquelas praias do norte da França em nome de um ideal de liberdade que, apenas 75 anos depois, desde então nunca esteve tão fragilizado. Milhares de soldados morreram na Normandia, no Pacífico, no norte da África, nas planícies russas. E morrer, aqui, significa mais do que perder a vida no sentido biológico da coisa. Significa anular todo um universo de acasos, acabar com um infinito de possibilidades de se rir e de se chorar, impedir encontros que de outra forma seriam terrenos férteis de ideias e realizações. E milhares de soldados morreram para nada.

No final das contas, o horror dos campos de concentração foi vencido pelo horror da bomba atômica. E quem decide qual horror é menos horroroso?

Que um só homem tenha posto as entranhas para fora e agonizado nas areias da Normandia para defender a liberdade de um futuro que hoje despreza essa mesma liberdade é algo imoral e abjeto. É uma deturpação do sentido da vida que todos no íntimo reconhecemos, embora não saibamos identificar.

Mas não é só isso. O próprio meio pelo qual os nazistas e os japoneses foram vencidos – a força – é, de certo modo, uma confissão de derrota da Civilização. A violência, por mais nobre que pareça, é sempre humana, mas nunca divina. No final das contas, tenho visto o Dia D como a culminação de algo inerentemente Mau. É como se a grandiosidade da batalha revelasse apenas nosso grandioso lado diabólico. Matamos nossos semelhantes, nossos semelhantes que consideramos maus (e que eram mesmo maus) usando toda a maldade que nos é permitida. E às vezes até um pouco de selvageria.

Em que medida isso nos torna também maus?

E, no entanto, houve heróis e heroísmo, nobres e nobreza, sacrifício e sacrificados. O problema é que talvez eles não tenham sido oferecidos em holocausto no altar da liberdade, como tanto se apregoa e no que eu queria muito acreditar, e sim no altar de um Leviatã quiçá domesticado, preso à coleira macia da democracia, mas ainda assim um Leviatã.

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