No último 8 de março, quando a liberdade de abortar foi consagrada na Constituição da França, o Palácio do Eliseu, ao escolher quem cantaria a Marselhesa, apontou a cantora Catherine Ringer. Uma cantora e... ex-atriz pornô. Status com o qual ninguém se importou. Afinal, ninguém se sente mais ofendido com a ideia de que se erija como modelo e figura “republicana” uma mulher com um passado carregado de tais feitos. Esse episódio, anedótico por si só, não é menos eloquente: para uma grande parte, paramos de ver o mal como tal, paramos de nomeá-lo, de nos escandalizar com ele, de mantê-lo coletivamente à distância para circunscrevê-lo.
Em 1984, a mesma Catherine Ringer teve a má ideia de contar suas aventuras impudicas em uma plateia de televisão na presença de um Serge Gainsbourg mal-humorado, que não fez rodeios e resmungou: “Você é uma p***”, antes de acrescentar: “É nojento”. Os modos são questionáveis, para dizer o mínimo, e o mensageiro francamente não era a melhor pessoa para enviar a mensagem. E, no entanto, por meio das palavras indelicadas do artista, uma parte do bom senso popular, da moralidade comum, da decência ordinária, expressava-se em protesto contra a publicidade e a banalização de uma conduta objetivamente escandalosa. Quarenta anos se passaram desde aquela altercação. Onde eles nos deixaram?
O mal não causa mais escândalo
Hoje, não haveria ninguém na plateia para reagir e, mais ainda, para denunciar o mal como tal. E esse é um grande problema social. Uma sociedade que não consegue mais suficientemente designar o mal não tem mais as armas para fugir dele e evitar sua disseminação; ela simplesmente não pode lutar contra ele. Porque nomear o mal e se escandalizar com ele não tem a ver com opróbrio, com apontar o dedo, com a humilhação ou as vaias, mas simplesmente com não permitir que nossos limites se confundam, com ser capaz de identificar o que, sendo mal, nos prejudica necessária e imediatamente, e ser capaz de nos proteger. Porém, a confusão surge muito rapidamente, e os exemplos disso são abundantes: quando uma geração católica negligencia de se chocar com situações de coabitação, na geração seguinte seus filhos até mesmo ignoram que essa situação representa um problema.
E quando um grupo social não desempenha mais seu papel na luta contra a disseminação do mal, as pessoas são deixadas sós, por conta própria. As primeiras vítimas dessa renúncia são os pais. Pois “é preciso toda uma aldeia para criar uma criança”. Os esforços dos pais para educar, para trabalhar em sua própria exemplaridade e na coerência de seu discurso, para construir um mundo moral saudável em torno de seus filhos, para dar a eles pontos de referência sólidos em seu discernimento do bem e do mal, para direcionar sua conduta em direção à busca do bem, todos esses esforços devem ser estendidos, apoiados e transmitidos pelo ambiente social, pela escola e pelo país. Aristóteles estava bem ciente disso: para ele os legisladores de uma cidade deveriam ser idealmente seus membros mais virtuosos, os mais capazes de promulgar leis que ajudariam a direcionar as ações de seus cidadãos para o bem[1].
O bem não é mais promovido
Mas o perigo é agravado no outro extremo do espectro por outra deficiência de nossa época: ela não sabe mais como produzir ou propor modelos edificantes. O cinema é um caso extremo. Ocupado demais a explorar o claro-escuro das emoções humanas, ele se esqueceu de elevar as almas e fortalecer os espíritos.
Além dos poucos heróis da Marvel e Cia., maniqueístas e grosseiros e, portanto, incapazes de suscitar qualquer tipo de identificação — e, portanto, inúteis na abordagem moral de que estamos tratando aqui —, contemplamos inúmeros filmes e séries de anti-heróis torturados, que mal sabem quem são ou para onde vão, medíocres, dotados de uma vontade mesquinha, sem ideais nem grandeza.
No entanto, precisaríamos, sim, de uma recuperação coletiva da força de caráter e da coragem de Jean Valjean, de 'Os Miseráveis', com o senso de sacrifício e abnegação de Rocco no filme homônimo de Visconti.
A dureza de uma moralidade implacável
No entanto, nossa época tem seus próprios objetos de escândalo e suas figuras-modelo. Assim, a violência contra as mulheres e as ações antiecológicas, por exemplo, estão no topo de nossa lista de desaprovação. Mas isso perturbou e pisoteou totalmente o equilíbrio sutil sobre o qual repousa toda a sabedoria da moralidade cristã: pois a moralidade cristã é dura com o mal, mas misericordiosa com o pecador. E ela não perde de vista seu objetivo: se a sociedade deve trabalhar em prol da justiça básica, os cristãos são solicitados a ir além, a praticar o perdão e a manter intacta a esperança de redenção do pecador. Longe, muito longe do implacável e feroz slogan moderno: “não esquecer, não perdoar”; longe dos tribunais midiáticos que condenam de forma intransigente, tanto aqueles que nem mesmo foram julgados, como aqueles que já pagaram sua dívida com a sociedade.
Essa talvez seja uma bela missão para os cristãos de nosso tempo: ensinar nossos contemporâneos a julgar moralmente, a se escandalizar com o mal e a perdoar, de modo a nunca reduzir uma pessoa indefinidamente ao delito cometido.
Élisabeth Geffroy é professora de Filosofia, formada na École normale supérieure de Paris.
[1] Mensuremos toda a distância que nos separa deste ideal, e os obstáculos evidentes: as nossas sociedades tornaram-se relativistas, ateístas e multiculturais, já não têm uma visão homogênea do bem; além disso, a educação para o bem é tida por muitos como um ataque à liberdade da criança.
© 2024 La Nef. Publicado com permissão. Original em francês: “Face au scandale du mal, réapprendre à juger”.
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