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Pandemia

Dinheiro americano, ciência e militares chineses: novos detalhes da possível origem laboratorial da Covid-19

Origem laboratorial da Covid
Investigadores do Departamento de Estado americano sugerem origem da Covid-19 em laboratório de Wuhan, citando experimentos secretos em programa de armas biológicas com vazamento acidental. (Foto: Eli Vieira com Midjourney)

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Resumo da reportagem

  • Investigadores do Departamento de Estado americano dão detalhes que corroboram a hipótese de que o vírus da Covid-19 pode ter se originado no laboratório de Wuhan, China, onde estavam sendo conduzidas pesquisas de virologia com verba americana.
  • Cientistas chineses estavam realizando experimentos perigosos com nove cepas do vírus da Covid em segredo, os quais podem ter levado ao início da pandemia.
  • Estrutura molecular suspeita presente no vírus Covid, cuja inserção em coronavírus de laboratório foi mencionada em projeto de pesquisa rejeitado, foi de fato inserida no laboratório de Wuhan, dizem as fontes.
  • As acusações incluem a possibilidade de o laboratório estar envolvido em programas de armas biológicas, mas acontecimentos iniciais ainda sugerem vazamento acidental.

No último sábado (10), o jornal britânico Sunday Times publicou novas informações que podem levar à elucidação das origens da Covid-19, doença que varreu o globo nos últimos três anos deixando em seu rastro cerca de 20 milhões de mortos. A publicação ouviu investigadores americanos que interceptaram comunicações chinesas e analisaram documentos a respeito das pesquisas realizadas no Instituto de Virologia de Wuhan (IVW), instituição que recebia verba americana através de uma ONG intermediária. As fontes acreditam que “os cientistas chineses estavam realizando um projeto secreto de experimentos perigosos que causaram um vazamento e começaram o surto de Covid-19”.

O projeto tinha natureza sigilosa porque envolvia as forças armadas chinesas e, segundo os investigadores, tinha como meta o desenvolvimento de armas biológicas. Para corroborar suas alegações, eles deram ao jornal centenas de documentos, incluindo relatórios antes confidenciais, memorandos internos, artigos científicos e e-mails. “A nossa investigação dá a mais clara imagem até agora do que aconteceu no laboratório de Wuhan”, diz o Times.

O Instituto de Wuhan começou a coletar em cavernas vírus da família dos coronavirídeos, uma das mais de 20 famílias que causam doenças em humanos, no começo do milênio. Esses vírus estavam sendo usados em experimentos de laboratório que alteravam seu material genético por duas décadas antes da pandemia. A justificativa do IVW, bem como da EcoHealth Alliance, a ONG que lhe repassava verbas americanas, era prevenir pandemias produzindo vacinas antes que eclodissem. Da primeira grande verba americana, que veio em 2009, um milhão de dólares foram repassados para o instituto chinês.

Da transparência para o segredo

No começo, o IVW era transparente, enquanto fazia os experimentos arriscados. Mas mudou de atitude em 2016, depois de pesquisadores descobrirem um novo tipo de coronavírus na mina de Mojiang, na província de Yunnan, a mais de 1.800 km de distância da sua sede. Trabalhadores da mina morreram com uma síndrome pulmonar misteriosa. As autoridades chinesas não relataram as mortes. Até hoje, a amostra de fezes de morcego contendo o vírus, rotulada “RaTG13”, é o parente geneticamente mais próximo conhecido do coronavírus da Covid — o instituto alega que a amostra se esgotou. A partir do incidente na mina “a trilha dos documentos começa a sumir”, disse um dos investigadores americanos. Foi a partir dessa data que o programa secreto de armas biológicas começou, ele alega.

Na mina de Mojiang os virologistas chineses coletaram 1.300 amostras de morcegos, as quais renderam 293 coronavírus diferentes. Este trabalho parece ter sido findado em maio de 2015. Publicações científicas chinesas também ocultaram as mortes dos trabalhadores.

As fontes dizem que o programa tinha como propósito aumentar a infecciosidade do coronavírus da mina em humanos. A principal informação nova trazida por elas é que “encontraram evidências de que pesquisadores que trabalhavam nesses experimentos foram levados ao hospital com sintomas similares à Covid-19 em novembro de 2019”, um mês antes de relatos da nova doença chegarem ao Ocidente, além de denúncias sobre a natureza dos experimentos conduzidos que explicaria por que a Covid surgiu já com muita afinidade às células humanas. Um parente desses pesquisadores faleceu na época.

“Temos grande confiança de que provavelmente era Covid-19 porque eles estavam trabalhando com pesquisa avançada em coronavírus no laboratório. Eles são biólogos treinados na faixa dos 30 e 40 anos de idade. Cientistas de 35 anos não ficam muito doentes com a gripe comum”, um dos investigadores explicou.

O epicentro do primeiro surto é próximo ao laboratório do IVW, mais que do mercado de animais silvestres de Huanan, favorecido por analistas que preferem a hipótese da origem natural a partir desses animais. Até hoje, nenhum animal infectado no mercado na época foi confirmado.

Outro indício sugestivo é que o instituto estava trabalhando em uma vacina contra coronavírus antes da pandemia. Pedidos de patentes tratados em investigações de congressistas americanos já sugeriam que os pesquisadores só poderiam ter pedido patentes tão cedo em 2020 se já estivessem trabalhando por meses no desenvolvimento de uma vacina. Um dos cientistas chineses que pediu patente faleceu misteriosamente aos 54 anos.

Também sugestiva foi a constante resistência da ditadura comunista de colaborar com informações, além da perseguição aos primeiros médicos que alertaram para a doença, como Li Wenliang, que acabou morrendo de Covid. A bióloga britânica Alice Hughes, especialista em morcegos que era professora associada da Academia Chinesa de Ciências, organização acima do IVW, diz que foi proibida de falar com a imprensa a respeito de sua pesquisa nas minas e que estava sendo vigiada pelas forças de segurança chinesas. Ela se sentiu forçada a se mudar para Hong Kong, onde ainda há alguma medida de liberdade contra os desmandos do Partido Comunista.

Richard Ebright, um americano especialista em biossegurança da Universidade Rutgers, descreve os experimentos chineses como “de longe a pesquisa mais irresponsável e perigosa feita com coronavírus, ou com qualquer outro vírus, executada em qualquer lugar e qualquer época”.

Alertas ignorados, mais verbas para o perigo

Em 2012, Lynn Klotz, especialista do Centro de Controle e Não-Proliferação de Armas, sediado em Washington, pediu que os EUA parassem de financiar pesquisas perigosas com coronavírus por causa do risco de causar uma pandemia após um vazamento. “Cerca de 30 laboratórios estão trabalhando com vírus SARS ao redor do mundo hoje”, disse Klotz em um artigo. “Um a cada dez vazamentos levaria a um grande surto ou a uma pandemia? Um a cada cem? Um a cada mil? Ninguém sabe. Mas, para qualquer uma dessas probabilidades, o número de vítimas e mortes seria alto demais”. No mesmo ano, o IVW descobriu um coronavírus em uma caverna que era o mais próximo do vírus da gripe asiática de 2002 conhecido até então, e demonstrou que poderia infectar células humanas.

Em 2014, a EcoHealth Alliance obteve mais uma verba de entidades públicas americanas e repassou 630 mil dólares para o instituto de virologia. Foi o ano em que Barack Obama introduziu uma moratória sobre o financiamento desse tipo de pesquisa. Shi Zhengli, líder do IVW, e seu colaborador americano Ralph Baric, da Universidade da Carolina do Norte, convenceram o governo americano a assegurar a verba através de uma brecha. No ano seguinte eles publicaram resultados a respeito de um coronavírus cujo material genético manipularam para infectar de forma severa roedores com pulmões modificados para ficarem parecidos com os humanos.

Houve reação a esses resultados, mas o IVW havia aprendido as técnicas de Baric, que continuou a aplicar em seus laboratórios. Criaram dois outros vírus mutantes, resultados mencionados no relatório de uso de verba da ONG em 2016. O documento também relata planos de usar o coronavírus da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS, com surto em 2012 na Arábia Saudita que matou 35% dos infectados). As autoridades americanas permitiram, mas os cientistas deveriam relatar se o vírus manipulado em laboratório ultrapassasse a taxa de reprodução do original em dez vezes.

A ONG anunciava que Shi Zhengli estava chegando cada vez mais perto de um vírus que poderia infectar humanos, e um artigo da chinesa, de 2017, relatou a criação de oito vírus mutantes a partir dos coronavírus achados em uma caverna. Dois deles eram capazes de infectar células humanas, e a maior parte do trabalho foi feita em laboratórios com nível 2 de biossegurança, abaixo do nível 3 exigido nas diretrizes para laboratórios dos EUA. Alarmada, a embaixada americana mandou especialistas para examinar o IVW em janeiro de 2018, e eles relataram uma “escassez séria de técnicos treinados” para operar com segurança o laboratório.

Na época, um dos experimentos mais perigosos realizados foi a fusão do material genético de três coronavírus capazes de infectar tecido humano, para simular como poderiam se recombinar entre os morcegos. O experimento atingiu o recorde de 75% de morte dos roedores com pulmões “humanizados”. Não deve ser a origem da Covid-19, pois poderia ser mais letal que a doença, se tivesse escapado. Esse estudo foi financiado pela verba repassada pela EcoHealth. A ONG não mencionou a morte das cobaias em seu relatório de progresso de abril de 2018.

Em março de 2018, o grupo de pesquisa pediu mais verba, dessa vez para a Darpa, agência americana de financiamento de pesquisa no campo da defesa. O projeto, de título “Defuse” (“Neutralização”), queria 14 milhões de dólares para que o IVW buscasse ainda mais coronavírus novos em cavernas e os fundisse com o material genético de duas cepas capazes de infectar células humanas.

Um dos experimentos previstos colocaria nos coronavírus uma estrutura molecular chamada “sítio de clivagem da furina”, que marca um local na proteína de superfície do vírus, quando no organismo humano, a ser cortado por uma enzima (a furina), o que aumenta sua infecciosidade. O vírus da Covid tem essa estrutura, seus parentes mais próximos na natureza não têm. A Darpa rejeitou a verba. A EcoHealth, na figura de seu presidente britânico Peter Daszak, e o IVW negam que a inserção da estrutura molecular foi adiante.

Sim, a estrutura molecular foi inserida em laboratório

Os três investigadores anônimos que falaram ao Sunday Times são do Departamento de Estado americano. Eles obtiveram acesso ao monitoramento da inteligência feito sobre a China nos meses e anos antes da pandemia. Estão incluídas interceptações de metadados, informações telefônicas e de internet.

“Eles estavam trabalhando com nove variantes diferentes da Covid”, disse um deles, que relata que a inteligência americana já tem informações de uma amostra ainda mais próxima do novo coronavírus que a RaTG13, esta também “possivelmente coletada na Mojiang”.

Os investigadores falaram com dois cientistas americanos que colaboraram com o IVW até a data do primeiro surto. Os pesquisadores relataram que seus colegas de Wuhan estavam inserindo sítios de clivagem da furina em vírus no ano de 2019 da forma exata proposta no documento “Defuse”. Também viram evidência de experimentos de passagem em série para ao menos um dos vírus da mina — é um processo em que animais são infectados com vírus repetidamente, selecionando os vírus mais infecciosos.

A investigação também contou com uma fonte interna ao IVW que disse que o RaTG13 também estava sendo passado em série em animais. A técnica acelera o processo de evolução do vírus. “Você infecta os camundongos, espera por uma semana mais ou menos, e daí recupera o vírus dos camundongos que estiverem mais doentes. Depois repete. Em questão de semanas essa evolução direcionada produzirá um vírus que pode matar todo camundongo humanizado”, explicou Steven Quay, cientista e empresário do setor farmacêutico que atuou como consultor frente ao Departamento de Estado para o inquérito.

Quay acredita que o vírus da Covid é um dos produzidos em Wuhan após a inserção do sítio de clivagem e possível passagem em série. Isso explicaria por que o vírus surgiu já plenamente adaptado a humanos, fato que intrigou cientistas desde o começo da pandemia.

Os investigadores do governo americano dizem que a razão para tanto segredo da China é que esse trabalho era em parte financiado com dinheiro das forças armadas. Seria um projeto feito nas sombras que nem era de conhecimento da EcoHealth Alliance. O IVW se apresenta como uma instituição civil, mas tinha projetos militares secretos.

Os americanos acreditam que a intenção das pesquisas era antecipar vacinas para coronavírus, para que a China tivesse monopólio da imunização caso resolvesse usá-los como armas. O vazamento, contudo, ainda teria sido acidental, como ilustra a morte de um parente de um dos cientistas em novembro de 2019. No mesmo mês, um oficial da burocracia científica de Xi Jinping fez uma visita, trazendo instruções orais e escritas do ditador a respeito de uma “situação complexa e grave”. Um documento chinês faz referência à caixa de Pandora.

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