A crença exacerbada no indivíduo como núcleo da sociedade — oprimido pelo coletivo — acabou por destruir nosso tecido social| Foto: Imagem de Roderick Qiu por Pixabay
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“O liberal é um homem de mente tão aberta que não consegue nem defender o próprio lado em uma discussão”

Robert Frost
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Quando nascemos, somos medidos, pesados e nos tiram as primeiras gotas de sangue. Somos fichados nos livros da burocracia estatal antes mesmo de recebermos o primeiro abraço de nossas mães, recrutados para o serviço militar obrigatório como parte do exército de reserva do estado liberal moderno

Já adultos, vemos isso como um mal necessário. Para o filósofo escocês Alasdair MacIntyre, o estado liberal moderno não consegue inspirar o tipo de lealdade que motivava os cidadãos a fazerem sacrifícios pela polis. Ele compara essa situação a ser instado a “morrer pela companhia telefônica”.

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De fato, o estado liberal moderno não deveria inspirar qualquer lealdade. No entanto, estranhamente, cada vez mais pessoas se sentem compelidas a morrer pela "companhia telefônica".

Em sua crítica ao liberalismo, MacIntyre argumenta que até o Renascimento a ética era predominantemente teleológica – a vida seria orientada por um propósito subjacente, e não apenas uma sequência de causas e efeitos. Com Aristóteles relegado às sombras pelo materialismo relativista dos filósofos iluministas, a ética então tornou-se um código de etiqueta fluido – com poucas definições e nenhum contexto.

Para ilustrar este processo, ele usa o exemplo dos habitantes das ilhas havaianas, cujos kapus – antigas leis morais que estruturavam a sociedade e deram origem à palavra "tabu" – perderam seu propósito didático ao longo do tempo, transformando-se em um conjunto arbitrário de proibições. Quando o Rei Kamehameha II finalmente os aboliu no século XIX, não houve resistência popular, pois ninguém mais se lembrava por que eles existiam. MacIntyre identifica uma situação similar na confusão moral do Ocidente pós-Iluminismo.

Uma confusão que nos levou da utopia ao ultracrepidarianismo, impulsionando o surgimento de sistemas de crenças totalitárias pelo mundo. Desde Mussolini fazendo os trens chegarem na hora, até Kim Jong Il fazendo o sol nascer no leste, até a obsessão maníaco-compulsiva do Ocidente por "diversidade" e "equidade" em esferas cada vez mais impossíveis.

O Iluminismo, que acendeu todos os holofotes da Catedral de Luz em Nuremberg, tornou-se um farol para o totalitarismo que brilha em todos os aspectos da vida hoje, de escolas a universidades, governos, artes e o mundo corporativo.

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Com o tempo, esse assalto à razão tornou-se enraizado como nosso conceito de social-democracia. Uma vez perdidos os valores compartilhados que sustentavam a vida cívica ocidental, restou apenas um pacto faustiano: ou viveríamos felizes sob os auspícios da companhia telefônica, ou seríamos entregues à ameaça comunista. Até o surgimento da Terceira Via, ou a casa de tolerância social-democrata, após a queda do Muro de Berlim.

Por trás dessa combinação de economia liberal com políticas socialistas ultrapassadas, está uma síntese do marxismo cultural e lógica de mercado sombria: a crença de que o indivíduo, como a minoria final, é sempre oprimido pelo coletivo.

A solução para este problema foi desmantelar cada divisão subcoletiva da sociedade — a família tornando-se a última fronteira — e criar um monolito do arco-íris, uma massa homogênea composta de indivíduos atomizados.

Janízaros modernos

“A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros”

Karl Marx, O Manifesto do Partido Comunista

Desde o fim da Guerra Fria, a sociedade tem girado incessantemente nesta roda, como um hamster hedonista vivendo eternamente no dia depois do Fim da História, leal apenas ao próximo dólar.

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Entretanto, viver sem um propósito definido é uma coisa; morrer por burocratas e corporações, é outra bem diferente – e uma proposta mais difícil de aceitar do que morrer pelo rei e pela nação. Mas, novamente, temos a Terceira Via.

No século XIV, o Sultão Murad I, então governante do Império Otomano, enfrentou um dilema nas terras recém-conquistadas dos Bálcãs semelhante ao que as corporações e o establishment político enfrentam hoje, nas terras recém-conquistadas do Ocidente.

Sua solução foi tão brutal quanto eficaz, um plano tão diabólico que parece ter sido concebido pela mente de educadores paulo-freirianos modernos: ele tomaria os filhos de seus vassalos cristãos como reféns, para doutriná-los nos costumes otomanos e transformá-los em soldados e burocratas leais.

Essas crianças, separadas de suas famílias e submetidas à doutrinação desde tenra idade, circuncidadas e convertidas ao Islã, tornaram-se ferozmente leais ao Sultão. Este sistema, conhecido como devshirme, deu origem aos Janízaros, uma das forças militares mais formidáveis da história.

Com o tempo, os Janízaros ascenderam ao topo da sociedade otomana, mas, presos em uma confusão cultural e de identidade, permaneciam fiéis aos seus mestres. Mesmo quando se revoltavam contra um sultão específico, eram incapazes de se voltar contra as instituições responsáveis por sua condição.

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Os Janízaros modernos são igualmente recrutados de suas famílias, doutrinados desde jovens e galgam os degraus mais altos da sociedade. A confusão cultural e identitária em que estão inseridos impede-os de se voltar contra o sistema ao qual permanecem leais e defendem com unhas e dentes. Desafiando as previsões anteriores da social-democracia, estão cada vez mais prontos para morrer pela companhia telefônica, ainda que seja uma morte lenta e anestesiada.

A virgem dos ovos de ouro

“Você interpreta tudo errado, até mesmo o silêncio”

Franz Kafka, O Castelo

A multiplicação dos iPhones, esse milagre vulgar do capitalismo de compadrio, convenceu nossos Janízaros modernos de que vender seus corpos, seja nas ruas, em cubículos ou no OnlyFans, será a única maneira de sustentar nosso modo de vida no futuro.

Um modo de vida que se alinha às suas convicções socialmente liberais e fiscalmente conservadoras – condições ideais para a estabilidade do sistema. As tradições que eles agora se esforçam para preservar são aquelas que surgiram apenas nos últimos cinco minutos, como comer Big Macs e beber Coca-Cola.

Eles afirmam pensar a longo prazo, zombando da máxima de Keynes de que ‘no longo prazo, estamos todos mortos’; no entanto, não percebem que sua perspectiva de longo prazo se limita a apenas cinco ou dez anos adiante. Caíram na falácia marxista de que o capitalismo é um fim em si mesmo, não apenas uma ferramenta para otimização, confundindo a coisa com a ideia da coisa.

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Estender esse pensamento para além da economia tem sido desastroso. A crença exacerbada no indivíduo como núcleo da sociedade — oprimido pelo coletivo — acabou por destruir nosso tecido social, como era de se esperar. Os Janízaros modernos passaram a crer que ser imparcial é argumentar contra si próprio e, se por algum milagre se encontrarem defendendo seus ideais, deixam claro de não o fazem com a intenção de mudar qualquer coisa.

Assim, perderam a capacidade até de criticar aqueles que erodem as instituições que asseguram a estabilidade de seu próprio modo de vida, pois não conseguem mais diferenciar as instituições de seus membros, vistos como as virgens dos ovos de ouro, eternamente grávidas do futuro.

O dia depois do Fim da História


“Hic locus est ubi mors gaudet succurrere vitae (Este é o lugar onde a morte se alegra em socorrer a vida)”

Este lema, comumente encontrado em necrotérios, agora se aplica perfeitamente aos nossos Janízaros modernos. Porque, acima de tudo, eles são fiéis à companhia telefônica. E se, para salvar a companhia telefônica, for necessário saltar no abismo, eles saltarão sem hesitar.

Encarando o abismo, livres de tabus – essas proibições agora arbitrárias da vida civil –, o chamado do vazio sussurra em seus ouvidos desesperados: “Você sabe que pode pular, não é mesmo?”, com mais credibilidade do que qualquer mão que se estenda para puxá-los de volta contra a sua vontade.

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Em sua mão esquerda, seguram uma carta para o vazio, onde se lê “Queridas forças do mercado, fui um bom menino este ano...” Ao saltarem, seus iPhones tocam, um som que ecoa como um apito pavloviano de esperança em meio à queda livre. Eles atendem, agarrando-se a um otimismo desesperado de que, talvez, desta vez eles sejam atendidos..., mas uma mensagem robótica crepita pelo ar:

Obrigado por seu sacrifício. Sua lealdade é muito importante para nós. Por favor, mantenha-se comprometido em sua descida, enquanto processamos sua substituição por um colaborador de valor similar e igualmente dedicado. Agradecemos sua preferência. Esperamos que nada tenha sido em vão.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Jefferson Vieira é economista com uma década de experiência no mercado financeiro e em organizações multilaterais, baseado na Europa.