Resumo da reportagem
- Em um inquérito em andamento, o presidente do Incube é investigado por um possível desvio de R$ 760 mil;
- No endereço declarado pelo Incube como sua sede, funciona um escritório de contabilidade comandado pelo criador da ONG;
- O Incube não tem página na internet e nem divulga relatórios prestando contas dos recursos recebidos.
Em 2023, nenhuma entidade no Brasil recebeu tantos recursos da Open Society Foundations quando o Instituto Incube: foram US$ 3,1 milhões (equivalente a R$ 15,5 milhões, no câmbio médio do ano passado). Desde 2021, o Incube obteve aproximadamente R$ 18 milhões da organização criada pelo bilionário George Soros.
Mas quem procura saber mais sobre o Incube não vai encontrar site oficial, perfil nas redes sociais ou relatório anual. Na sede declarada pela entidade à Receita Federal, funciona um escritório de contabilidade cujo dono é o presidente do Incube, Raul Paulino Torres.
Torres também está sendo investigado por um desvio de R$ 760 mil dos cofres de outra organização do terceiro setor. O inquérito corre na Polícia Civil de São Paulo.
De contador a presidente de ONG milionária
Raul Paulino Torres, formado em contabilidade, atua em organizações do terceiro setor há mais de uma década.
Sua importância foi crescendo junto com o volume enviado a ONGs brasileiras por grandes fundações estrangeiras. Visto como uma figura hábil e bem-relacionada, ele assinou balanços de várias organizações na lista de pagamentos da Open Society. A lista é longa e inclui a Open Knowledge Brasil, o Instituto AzMina, a Associação Legisla Brasil, a Marco Zero Conteúdo e o ISPIS (Instituto Sincronicidade Para Interação Social). Ele também consta como presidente da Escola de Ativismo, outra organização financiada por Soros no Brasil.
Em 2020, enquanto ainda trabalhava no ISPIS, Raul Paulino Torres decidiu formar a própria ONG: o Instituto Incube.
Assim como ISPIS, o Incube atua como "fiscal sponsor". Ou seja: oferece a estrutura e o CNPJ para organizações menos estruturadas ou que, por algum outro receio, preferem não aparecer.
Mas o ISPIS, fundado em 2001, mantém uma página em que apresenta os seus doadores e as entidades beneficiadas. Também é possível saber quem são os integrantes da diretoria da organização.
O Incube não faz questão de aparecer: não há registro de páginas na internet com o nome da organização.
Como é uma associação privada e não uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), o Incube não tem obrigação a tornar públicas as suas prestações de contas. Mas o sigilo é incomum. As organizações financiadas por grandes fundações estrangeiras no Brasil geralmente têm uma estrutura profissional: relatórios anuais detalham a aplicação dos recursos, o quadro de funcionários e os projetos mantidos. Esse tipo de atividade, além de cumprir requisitos básicos de transparência, é essencial para conseguir novas doações.
Quem quer saber mais sobre o Incube não fará muito progresso se procurar pessoalmente pela sede da organização.
Sede declarada abriga escritório de contabilidade
No cadastro da Receita Federal, a sede do Incube aparece tendo como endereço um imóvel na Vila Romana, em São Paulo.
A reportagem da Gazeta do Povo esteve no local na última quinta-feira (25): é um sobrado simples em uma rua de pouco movimento. Do lado de fora, não há qualquer referência ao Incube. Em vez disso, uma placa discreta diz “Torres Consultoria”. A empresa é de propriedade de Raul Paulino Torres. E, sim, o endereço informado pela Torres Consultoria é exatamente o mesmo do Instituto Incube.
Não há qualquer indicação de que ali funciona o Incube. Os vizinhos nunca ouviram falar da ONG — apenas do escritório de contabilidade. Nem parece que ali funciona um Instituto que recebeu, apenas da Open Society Foundation, mais de R$ 18 milhões em três anos.
Talvez porque de fato ela não funcione ali.
A reportagem da Gazeta do Povo tocou a campainha e foi informada que a sede do Incube na verdade seria na Rua Caio Graco, a um quilômetro dali. A pessoa que conversou com a reportagem não soube dizer o endereço exato.
Na Rua Caio Graco, não há qualquer placa com o nome do Incube. Quem trabalha na área também não conhece a ONG.
A única ligação de Raul Paulino Torres com a Caio Graco é a existência, na base da Receita Federal, de um café que, aparentemente, está apenas no papel.
Repasses de Soros logo após fundação
O pouco tempo de existência não impediu que o Incube recebesse recursos da Open Society Foundations.
O Incube foi criado em 2020. No ano seguinte, a organização recebeu seus primeiros repasses da Open Society Foundations. Foram quase US$ 370 mil, ou aproximadamente R$ 2 milhões.
Em 2021, foram dois repasses:
- O primeiro, de US$ 320 mil, para "apoio geral".
- O segundo, de US$ 49,9 mil, para apoiar o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste.
Em 2022, outra doação:
- US$ 100 mil para beneficiar a Escola Livre de Redução de Danos.
Em 2023, mais quatro repasses:
- US$ 120 mil para "fortalecer as relações entre Brasil e Ucrânia" por meio da produção de conteúdo sobre a Ucrânia em português.
- US$ 195,3 mil para apoiar a Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais.
- US$ 868 mil simplesmente para "promover os valores da sociedade aberta".
- Mais US$ 1,9 milhão para, novamente, promover os "valores da sociedade aberta".
No caso do Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste, da Escola Livre de Redução de Danos e da Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais, o Incube foi usado como "fiscal sponsor" —- em outras palavras, "empresta" seu CNPJ e sua estrutura administrativa a ONGs que, por falta de estrutura ou por outras razões, recebam recursos financeiros. A reportagem da Gazeta do Povo apurou que o Incube cobra uma taxa de 6% para realizar esse serviço.
Mesmo que a atuação do Incube como um "fiscal sponsor" seja legítima, e que esses três projetos tenham beneficiado organizações que de fato existem, a maior parte dos recursos repassados pela Open Society (ao todo, 3,1 milhões de dólares) não têm uma justificativa específica.
Inquérito por furto de R$ 760 mil
A falta de transparência do Instituto Incube chama atenção, mas não é ilegal por si própria. Entretanto, o fundador da organização está sendo investigado em um inquérito criminal.
Um inquérito aberto em janeiro pela Polícia Civil de São Paulo investiga Raul Paulino Torres por um desvio de R$ 760 mil. O denunciante é o ISPIS, a ONG para a qual o contador trabalhou por uma década. O instituto alega que ele fez pagamentos a si próprio sem respaldo contratual e por meio de "ardil".
Os representantes do ISPIS denunciaram Torres por estelionato, mas o delegado considerou que o caso pode ser enquadrado como furto.
"Há indícios de que Raul Paulino Torres obteve vantagem indevida ao efetuar diversas transferências (com valores aleatórios) do ISPIS para sua conta bancária e de R.P. Torres contabilidade e Gestão para o 3 Setor LTDA", alega o ISPIS.
Em junho do ano passado, as transferências chamaram a atenção da diretoria do ISPIS. Entre 2022 e 2023, Torres teria repassado mais de R$ 760 mil da conta da instituição para sua conta pessoal e para a de sua empresa de consultoria. O material apresentado pelo ISPIS inclui extratos bancários mostrando as movimentações.
O ISPIS ainda afirma que Torres usou indevidamente a assinatura digital da diretora da instituição, Talita Montiel, "para tentar validar a suposta regularidade dos atos praticados" sem a permissão da diretora.
Torres, entretanto, alega que houve um acordo verbal para que ele recebesse 5% do valor arrecadado pelo ISPIS, e que ele apenas cumpriu esse combinado ao depositar o dinheiro na própria conta bancária.
Raul Paulino Torres não compareceu à delegacia para prestar depoimento na data marcada. Sua defesa alegou que ele não teve tempo de estudar os autos.
O outro lado
A reportagem da Gazeta do Povo fez contato com o email que consta no cadastro do Instituto Incube (que, curiosamente, remete à Torres Consultoria).
Um assessor de Raul Paulino Torres respondeu por email. Na nota, o Incube afirmou que "desenvolve programas de pesquisa, produção de conhecimentos e formação", além de "ser uma incubadora social que atua com outras organizações da sociedade civil por meio de apoio em processos de gestão".
O Incube afirmou que recebeu doações de mais de 30 fontes diferentes (sem dizer quais), e que aplicou aproximadamente 91% dos seus recursos em "parceria com organizações da sociedade civil".
A respeito do inquérito, o Incube diz que "foram apresentadas fartas provas da lisura e correção da conduta de Raul Torres, bem como da falsidade das acusações formuladas por representantes do ISPIS".
A nota diz, por fim, que "a sede do Instituto Incube não é a mesma do escritório da Torres Consultoria, sendo pessoas jurídicas distintas".
Algumas perguntas feitas pela reportagem, entretanto, ficaram sem resposta. Quais são alguns exemplos de projetos mantidos pelo Instituto Incube? Existe algum material de prestação de contas ou relatório anual do Incube que trate disso? Quantas pessoas trabalham no instituto hoje? Por que a sede do Instituto Incube é a mesma do escritório da Torres Consultoria? E por que o Instituto Incube não tem uma página oficial ou perfis nas redes sociais?
A reportagem da Gazeta do Povo também enviou uma lista de perguntas à Open Society Foundations. Por meio de sua assessoria de imprensa no Brasil, a entidade afirmou apenas que o Incube é quem se pronunciaria sobre o caso. Com isso, também ficou sem resposta a principal dúvida enviada pela reportagem à Open Society: a fundação exige que os destinatários de suas doações apresentem relatórios detalhados das despesas bancadas com esses recursos? A entidade tampouco quis dizer se teve ciência das acusações contra Raul Paulino e se abriu uma investigação própria sobre a aplicação dos recursos enviados ao Incube.
O ISPIS afirmou que não vai se pronunciar publicamente sobre o inquérito no momento.
O repórter Lucas Saba colaborou nesta apuração.
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