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O que era para ser tratado como um problema de saúde pública, nos últimos anos acabou se tornando mais um item na pauta das chamadas políticas identitárias. A gordofobia, definida pelo Dicionário Houaiss como uma “aversão preconceituosa contra pessoas gordas ou obesas”, vem tirando o foco dos problemas de saúde causados pela obesidade e, banalizada, se tornou uma justificativa para atacar toda e qualquer pessoa que não concorda com o movimento crescente de ativismo social em torno do corpo gordo.
Apesar da pressão por parte destes ativistas, a gordofobia não é um crime previsto na legislação brasileira. Mesmo assim, foi invocada pela modelo Bia Gremion e sua advogada em um boletim de ocorrência aberto no fim de julho contra o humorista Léo Lins. Ele usou uma foto da modelo e de seu namorado, um homem trans, para “chamar a atenção” de seus seguidores para um show. Nem Bia nem a advogada Kátia Aureliano explicaram qual foi a tipificação encontrada para registrar o documento na Polícia Civil de São Paulo. A postagem não aparece mais no perfil do humorista.
No site do Senado Federal, há um local onde podem ser apresentadas sugestões para a criação de novas leis. Sobre o tema “gordofobia” há pelo menos quatro propostas. Uma delas pede o fim das catracas nos veículos de transporte coletivo como uma forma de lutar contra o preconceito. Outra, mais radical, propõe tratar a gordofobia como crime hediondo. Nenhuma delas, porém, está perto da meta de 20 mil apoios, meta estabelecida pelo Senado para que as ideias propostas no site sejam discutidas na casa. Há ainda outra sugestão, a de que pessoas com obesidade mórbida deveriam receber um benefício do governo até que passassem por cirurgia bariátrica custeada pelo SUS. Esta, pelo menos até a publicação da reportagem, não tinha recebido um único apoio sequer.
Romário contra a gordofobia
Também no Senado há outras movimentações no sentido de combater a gordofobia. Uma delas é do senador Romário (Podemos-RJ), que classifica como discriminação a cobrança adicional aplicada a pessoas obesas que ocupam mais de um assento em meios de transporte e eventos culturais. Em sua justificativa, Romário aponta a perspectiva das companhias aéreas, de que “o peso das pessoas obesas aumenta o gasto de combustível”, como equivocada por olhar “primeiro para as coisas – assentos ou combustível – e depois para as pessoas”. O senador propõe a singela ideia de “uma pessoa, um preço.”
Entretanto, o peso total da aeronave faz uma diferença tremenda. Uma atitude tomada pela companhia aérea American Airlines mostra isso. Por mais de 75 anos, os pilotos da companhia tiveram que carregar consigo manuais de voo que chegavam a pesar 18kg. A troca por tablets reduziu esse peso de forma considerável, o que levou a uma economia anual na casa de US$ 1 milhão em combustível. Só por deixar os pesados manuais de papel do lado de fora da aeronave. Em outras palavras, a proposta de lei vai precisar levar em conta que é necessário muito mais que a força positiva da dignidade humana para tirar um avião do chão.
Para o CEO de outra companhia aérea, a Samoa Air, a conta é simples. “Tudo o que um avião tem para vender é o espaço dentro dele. As pessoas vão começar a admitir isso ao se perguntarem por que quem é mais leve tem de pagar por quem é mais pesado”, disse em entrevista à BBC, justificando a política da empresa de que “1 quilo é igual a 1 quilo”.
É crime?
Ainda no campo da Justiça, não há uma pacificação quando o assunto é a gordofobia. Há vários casos da aplicação do termo em condenações, principalmente na Justiça do Trabalho. Como o caso da funcionária de uma agência bancária no Rio Grande do Norte que deve receber R$ 60 mil de indenização por ter sido chamada de “vaca” por superiores. Ou da cozinheira que conseguiu no Tribunal Superior do Trabalho uma indenização por danos morais de R$ 30 mil por ter sido chamada de “gorda”, “burra”, “incompetente” e “irresponsável” na frente de outros funcionários.
Mas também há o caso de uma vendedora de São Paulo que entrou na Justiça por ter sido chamada de “gorda” pela proprietária do estabelecimento. Na decisão referente à ação, o desembargador negou a indenização pedida a título de gordofobia, e explicou que “não há previsão legal para ‘indenização pelo mero aborrecimento’. Para ensejar indenização, o ato praticado deve ser grave de forma a impingir na vítima sofrimento moral, psíquico, grave ou, ao menos, considerável.”
Meu corpo, suas regras
O cantor sertanejo César Menotti, que faz dupla com Fabiano, tem feito muitas piadas sobre o fato de ser gordo em seu perfil no Instagram. “Engordei tanto na quarentena que sozinho já tô [sic] parecendo uma aglomeração”, escreveu o cantor. No Twitter, ele disse ter perdido 400 calorias depois que deixou uma coxinha cair no chão. Menotti já participou de um quadro de emagrecimento no Fantástico, em 2013, mas recuperou os mais de 20 quilos perdidos no programa. Ele disse que busca emagrecer, mas por questões de saúde. “Mas enquanto não alcanço meu objetivo, eu não vou ficar sofrendo com isso. Vou levar com bom humor, com brincadeira”, comentou.
A postura de César Menotti com o próprio corpo é alvo de críticas dos ativistas contra a gordofobia. Para a advogada e influenciadora plus-size Rayane Souza, ao fazer esse tipo de postagem o cantor prestou um “desserviço social”. “César Menotti se esqueceu que, se colocando dessa maneira preconceituosa consigo mesmo, ele não só apenas autoriza que seus fãs e diversos seguidores o tratem dessa forma, também tratem os outros”, escreveu.
Valentina Valentini, jornalista inglesa, postou no Twitter que vai ficar gorda na quarentena por “não saber como (ou não querer) racionar” a comida. A piada com a própria aparência também foi alvo de críticas, e ela afirma ser constantemente corrigida por usar a palavra gorda para referir a si própria. “Falam para eu usar ‘curvilínea’, ‘cheinha’, ou outra palavra bonita para ‘não magrela’. Porque eu não sou magrela, mas também não sou gorda o suficiente para o movimento de positividade do corpo, estou no meio termo”, explicou.
Ela também reclamou do policiamento que sofreu por parte dos ativistas. “Todas as publicações que pipocaram falando que as pessoas não deveriam fazer piadas nas redes sociais sobre engordar dentro das próprias casas tem meio que o mesmo argumento: as pessoas devem se sentir livres para ter o tamanho que quiserem. Quando eu escrevo algo como ‘vou ficar muito gorda’, entendo que para alguns isso pode gerar sentimentos de medo e vergonha. Mas para mim não. Estou apenas tentando fazer piada de uma situação que pode não ser tão engraçada. Eu percebi que não sou uma grande comediante, mas ainda é meu direito fazer uma piada ruim.”
O jornalista Tom Flanagan, em outro artigo, afirma que percebeu um aumento das ideias de “positividade corporal” e combate à gordofobia quando saia da adolescência. “Dei ouvidos a todo esse nonsense e o que consegui? Diabetes tipo 2”, contou. “Imagine se nós lidássemos com outras doenças dessa mesma forma? ‘Sinto muito, Sr. Flanagan, o câncer se espalhou por todo o seu pulmão, mas não deixe que a imagem idealizada pela sociedade de como uma célula não-mutada deveria ser te deixe deprimido – aproveite seus cigarros e ignore esses preconceituosos”, escreveu.
Entre a novilíngua e a saúde
Casos como esse demonstram que o policiamento da linguagem atinge muito mais que a mera liberdade de expressão.
A obesidade traz consigo uma série de distúrbios de saúde além da diabetes, como hipertensão e problemas respiratórios – sobre estes últimos, estudos científicos mostraram que quem tem sobrepeso tem até três vezes mais risco de desenvolver casos graves de Covid-19. Porém, uma tentativa médica de alertar sobre esses riscos pode soar como preconceituosa e gordofóbica.
É o que afirma Rayane Souza em seu Guia Express Direitos da Pessoa Gorda. No guia, a advogada explica que “todo comentário invasivo e constrangedor relacionado ao peso, aconselhamentos que fogem da especialidade no momento podem ser caracterizados como gordofobia médica”. Ela ainda sugere que os pacientes gravem suas consultas e façam denúncias ao Conselho Regional de Medicina.
O próprio ato de perder peso voluntariamente é tratado como gordofobia pelos ativistas da causa. Victoria Welsby, autodenominada como “líder mundial em confiança corporal, anti-dieta, pró-corpo gordo, coach de aceitação, palestrante, autora”, escreveu em seu site Fierce Fatty que “se você perde peso de propósito, esse ato intencional de tentar tornar seu corpo menor é de forma inerente uma gordofobia, e você não está, de jeito nenhum, agindo de forma positiva com o seu próprio corpo.”
Uma campanha beneficente feita na Inglaterra por um instituto de pesquisas sobre câncer também foi alvo de militantes contra a gordofobia. Com base em dados de pesquisas médicas, a campanha informava que a obesidade era a segunda causa evitável de câncer, atrás apenas do cigarro. Em uma das peças, a Cancer Research UK usou uma embalagem de cigarros cheia de batatas fritas para chamar a atenção sobre os riscos da obesidade. Para a comediante Sofie Hagen, porém, tudo não passou de uma campanha difamatória contra os gordos. Ela chamou os cartazes de “pedaços de m...”, e pediu para que as peças fossem removidas.
Gordofobia é nazismo
Há também quem defenda a destruição de toda a “cultura ocidental” como forma de acabar com a gordofobia. É o caso da ativista Sonalee Rashatwar, que chega até mesmo a associar gordofobia a nazismo. Do outro lado desse espectro está a escritora e pesquisadora Helen Pluckrose, mestre em Literatura Inglesa pela Universidade Queen Mary em Londres e crítica a movimentos como o feminismo e pós-modernismo, para quem a obesidade deve ser relacionada a hábitos não saudáveis, como o alcoolismo e o tabagismo, e não a condições imutáveis do indivíduo, como a raça e até mesmo a sexualidade.
Para ela: “A obesidade não pertence à categoria de coisas e interesses com os quais você lida fazendo apenas uma determinada coisa, uma única vez. Existem pessoas que acham que por mais que tentem não conseguem simplesmente controlar o peso, da mesma forma que não conseguem se estabilizar em um emprego ou manter a casa limpa. A essas pessoas deve ser oferecido um suporte prático, educacional ou psicológico. Isso não quer dizer que toda a sociedade, incluindo cientistas, nutricionistas, profissionais de saúde e pesquisadores de câncer devem sofrer ataques enquanto se finge que a obesidade é saudável e bonita, e que manter um peso saudável é uma meta inatingível. Quem faz isso presta um serviço terrível às pessoas gordas, e eu gostaria muito que essas pessoas parassem de tentar ajudar.”
Quem defende incansavelmente o mantra “dietas não funcionam” encontra guarida em um movimento de nome pomposo: “body positivity” [positividade em relação ao corpo]. Contudo, se por um lado querer mudar a forma como a sociedade enxerga as pessoas e com isso diminuir preconceitos discriminações é algo louvável, por outro, toda essa positividade torna mais difícil aceitar o óbvio: perder peso da forma certa nos torna sim mais saudáveis.