Quem tem memória dos anos 90 e 2000 assistiu a uma mudança considerável no conhecimento de informática que os usuários de computadores têm. Hoje vemos os especialistas aconselharem os pais a não darem smartphones para criancinhas. Ora, como espertofones (chamemo-los assim) nada mais são que computadores de bolso, temos que os especialistas instruem os pais a não fazerem aquilo que muitas vezes lhes é o mais cômodo, ou seja, dar um computador para uma criancinha. Nos anos 90, uma recomendação dessas pareceria bizarra. Um computador era, ao mesmo tempo, um objeto caro demais e sofisticado demais para uma criancinha.
Nos anos 90, existia o móvel do computador. Uma mesa invariavelmente feia, com um lugar próximo ao nosso joelho direito para pôr o CPU, uma bandeja debaixo da mesa para pôr o teclado e o mouse (este sobre um tapetinho onde rolava a bolota na barriga do mouse), e acima a tela, igual a uma antiga TV de tubo. Não tinha som nem tirava foto: caixas de som e webcam eram firulas que só os mais arrojados comprariam.
Os velhos em geral não aderiram à novidade, e internet foi por muito tempo uma coisa de jovem. Os brasileiros que têm entre 30 e 50 anos terão aprendido a mexer em computadores usando um desses sistemas operacionais: Windows 95, Windows 97, e o Windows XP (lançado em 2001). O Windows 95 foi pioneiro na introdução do computador doméstico. Quando as pessoas passaram a ter um computador em casa, tratava-se de uma máquina que vinha com um Windows 95 instalado, e até hoje muita gente, ao comprar um computador, dá por óbvio que ele vem com um Windows.
A difusão do computador doméstico deu origem ao império de Bill Gates, dono da Microsoft, empresa dona do Windows. Coisa de vinte anos depois, esse império começou a decair com a difusão de uma tecnologia ainda mais nova. Era o espertofone, um híbrido de telefone com computador, que acabou se tornando cada vez mais um computador com aspecto de telefone. Em vez de botões de verdade, o espertofone traz uma tela com botões desenhados, a qual pode ser manipulada como se fosse uma lousa. A Microsoft ficou para trás: tentou o WindowsPhone, mas foi descontinuado.
Toda essa intuitividade dispensa conhecimentos de informática, e hoje vemos velhinhos usando esses computadores com naturalidade e desenvoltura. Um octogenário, supostamente refratário a novas tecnologias, já me disse: “Não uso internet para nada, faço tudo por WhatsApp!”. E daí estarmos nesse estado de coisas: criancinhas, velhos, agricultores arcaicos, todos de computador na mão, sem entender bem o que significa isso. Eu tive aula de informática quando criança; hoje, as crianças conhecem as telas desde bebês, e devem encará-las como parte da natureza se não forem ensinadas do contrário.
Os benefícios da difusão dessa tecnologia são inegáveis e incalculáveis. É possível que o WhatsApp tenha feito mais pela alfabetização no Brasil do que muita escola pública. Por outro lado, como esse processo aconteceu acompanhado por muita ignorância, a população não faz ideia de que tem em mãos um artefato sofisticado que pode ser usado contra si.
É como se aos poucos fosse se normalizando o porte de armas, sem que as pessoas soubessem atirar.
Windows para as massas, Apple pra meia dúzia
Mesmo entre os letrados que, por força da profissão ou por gosto, aderiram à computação desde os anos 90 ou 2000, há um grau considerável de ignorância acerca do funcionamento e da história do computador doméstico. Eu diria que o senso comum, nesse nicho, é o seguinte: Windows é quase que sinônimo de computador, Apple é a alternativa dos endinheirados prafrentex, e Linux é coisa de CDFs esquisitões. No entanto, se você perguntar o que é Windows, o que é Apple e o que é Linux, a pessoa que diz essas coisas tem grandes chances de não saber responder. E esse desconhecimento é algo que causa falta de controle sobre o seu próprio computador.
Esses três nomes designam tipos de coisas diferentes. Windows é um sistema operacional da empresa Microsoft, de Bill Gates. A Apple é mais confusa: é o nome da empresa do finado Steve Jobs, mas o é nome usado para designar os produtos da empresa, tal como Gillette designa lâminas de barbear da marca Gillette. “Apple” está para “Microsoft” assim como o “Windows” está para o “MacOS”, que é o sistema operacional dos computadores da Apple. Enquanto a Microsoft se desvincula da fabricação de computadores e põe seu sistema operacional (o Windows) em várias marcas de computador (Dell, Positivo, Samsung, LG etc), a Apple vende sempre tudo junto, ou seja, computador e sistema operacional.
Vamos dar uma recuada. Que é um sistema operacional? É software, uma obra do intelecto, que não tem existência material. Hardware é a matéria que compõe o computador. Dito rudemente, hardware é o que você chuta e software é o que você xinga.
O mercado de computadores domésticos tinha tudo pra ficar assim: todo mundo usando o sistema operacional Windows, pirateado ou original, em computadores de qualquer marca, e meia dúzia de prafrentex usando o computador da Apple que vem com o sistema operacional da Apple. Este custa uma fortuna, e não é pra todo mundo. Steve Jobs ficou rico explorando esse filão. Bill Gates levou o resto do mundo, tem o seu sistema operacional ensinado como padrão desde a escola, e processa as empresas que usarem cópias piratas. Fica, sem dúvida, mais rico ainda explorando esse quase monopólio.
Era assim, até um cavalo paraguaio não-capitalista embaralhar a corrida e terminar nos espertofones do povo.
Faltou explicar o que é Linux. A rigor, é um núcleo, o pedaço de um sistema operacional responsável por ligar o intelecto à matéria. Todo sistema operacional tem um núcleo. O MacOS e o Windows têm cada qual o seu núcleo. O núcleo Linux foi inventado avulso, sozinho, por um cidadão finlandês chamado Linus Torvalds, em 1991.
Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, Richard Stallman desenvolvia um sistema operacional chamado GNU desde o começo da década de 80, e toda a sua dificuldade consistia em criar justamente o núcleo. Linus Torvalds deixou Richard Stallman usar gratuitamente o seu núcleo Linux, e assim surgiu o GNU/Linux – responsável também pela fama de coisa de esquisitão. Do GNU/Linux surgiu uma família de sistemas operacionais, sendo cada qual chamado “distribuição”.
Dois caminhos do desapego ao dinheiro
Linus Torvalds (1969) e Richard Stallman (1953) têm em comum o desapego ao dinheiro. Ambos dão valor à aventura intelectual por si mesma, e, ao contrário de Bill Gates (1955) e Steve Jobs (1955-2011), não têm interesse na carreira empresarial. Isso é especialmente importante em programação, porque os códigos desses dois capitalistas são fechados: são segredo comercial. Uma vez que você escolha divulgar seu código para todo mundo, todos podem copiá-lo e aprimorá-lo. Stallman costuma comparar a escrita de códigos à culinária: se você divide a receita, as pessoas podem inventar mais coisas. E ainda na seara da culinária, podemos tirar uma implicação moral: todo mundo deveria saber o que vai na própria comida, para não ser envenenado. Assim, Stallman é um ativista contra as Big Techs, desde antes de serem Big. Anticapitalista, sua filosofia é a do software livre, que deve ficar sempre aberto sem ser comercializado.
Linus Torvalds não é um anticapitalista, e é o ícone do código aberto: ele defende que os códigos sejam abertos para qualquer um poder fazer o que bem entender com eles, inclusive fechá-los e ganhar dinheiro com isso. Quem aproveitou isso foi ninguém menos que a Google.
Android para as massas, iPhone para meia dúzia
Em 2007, a Apple lança o primeiro espertofone tal como o conhecemos, ou seja: um celular com internet praticamente sem botões, com tela sensível ao toque. Trata-se do iPhone. Mantendo a sua tendência de vender as coisas como um compacto, confundindo software com hardware, o iPhone é o objeto físico que tem um sistema operacional chamado iOS.
Em 2008, a Google lançou o Android, um sistema operacional para variadas marcas de espertofones, cujo núcleo é Linux. Assim, a Google ocupa no mercado de espertofones o lugar que a Microsoft ocupa no de computadores, com a diferença de que o conceito de pirataria não se aplica ao Android, já que é código aberto.
A Google se beneficiara do código aberto criando versões abertas, a serem inspecionadas por quem quer que fosse, e em seguida inventando as fechadas. Veja-se, por exemplo, o famoso navegador Chrome: ele é a versão fechada feita a partir de um outro navegador, aberto, chamado Chromium. Você pode experimentar baixá-lo e usá-lo no lugar do Chrome.
E eu com isso?
Dado esse assanhamento todo das Big Techs, é prudente irmos nos tornando gradualmente menos ignorantes em relação aos computadores, e nos inteirarmos das opções. No universo do software livre e do código aberto, sempre haverá alternativas ao código fechado. No espertofone, pense na possibilidade de usar, por exemplo, um navegador que prometa privacidade, como o Duck Duck Go e o Brave. Quer usar Facebook e Twitter? Faça isso sem baixar os aplicativos.
No computador há mais opções do que nos espertofones, que já nasceram viciados por monopolistas. Os sistemas baseados em GNU/Linux não são difíceis de usar como antigamente. (Costuma-se recomendar para iniciantes o Linux Mint.) Uma das interfaces gráficas usadas no Linux é a mesma do Android, a Gnome. Além das questões de privacidade (que são menos prementes em computadores do que em espertofones), há duas razões em favor dos sistemas baseados em GNU/Linux: uma é o aprendizado, porque a imensa quantidade de opções termina por nos ensinar as partes que compõem um sistema operacional, e outra é pecuniária. Se você tiver a liberdade para escolher um sistema operacional enxuto, seu computador vai demorar mais para obsolescer. O meu mesmo já tem 8 anos.
Por fim, vale destacar a importância que o GNU/Linux pode ter para governos. Já tivemos, nas federais, o uso de um sistema operacional brasileiro chamado Kurumin. Infelizmente o seu inventor, Carlos Eduardo Morimoto, virou hare krishna e largou a informática.