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Um novo documentário levanta dúvidas sobre as condições da morte do americano George Floyd sob a guarda de policiais em Minneapolis, no estado de Minnesota, em 2020. Documentada em um vídeo viral, a morte inflamou protestos contra o racismo no país, com depredações e incêndios, com custo de até dois bilhões de dólares e mais vidas. Os policiais foram presos, e o policial que pressionou seu joelho contra a parte superior do corpo de Floyd, Derek Chauvin, condenado a mais de 22 anos de cárcere, foi atacado com 22 facadas na prisão no mês passado. A defesa de Chauvin disse que seu joelho estava na escápula, a acusação insistiu que estava sobre o pescoço.
O condenado por assassinato de Floyd sobreviveu. O preso que o atacou, da máfia mexicana, disse que escolheu a Black Friday (literalmente “sexta negra”: os americanos usam a cor negra para falar que estão com saldo positivo na conta bancária, em vez do azul mencionado no Brasil) porque a data seria “simbólica do movimento Black Lives Matter e o símbolo da mão negra associado à máfia”. O movimento, que ganhou muita força e dinheiro após a morte de Floyd, enfrentou uma crise de imagem nos anos seguintes quando líderes desviaram verbas de doações e elogiaram o ataque terrorista do Hamas a Israel em outubro.
O documentário “The Fall of Minneapolis” (“A Queda de Minneapolis”, em tradução livre) foi publicado dois dias antes do ataque a Chauvin, em 23 de novembro, no YouTube. Ele foi produzido pela Alpha News, veículo de comunicação de Minnesota que o serviço de curadoria de mídia canadense Ground News classifica como “de direita” e de suposta “baixa factualidade”.
Entre os entrevistados está o policial aposentado Scott Creighton, que serviu por 28 anos na corporação. Creighton prendeu George Floyd em 2019, a prisão anterior à que levou à sua morte. Nas imagens das câmeras nas lapelas dos policiais, Floyd alega que tinha levado um tiro durante a ação de Creighton. O policial nega, e diz que o cidadão não cooperou e ignorou ordens no ato de prisão. Imagens são mostradas dos dois atos de prisão, dando evidência de um comportamento similar de pouca cooperação de Floyd nas duas ocasiões.
O filme apresenta um documento detalhando que Floyd, nascido em 1973, usava nomes falsos como “Omar Jamal Kett” para praticar crimes como tráfico de cocaína, assalto à mão armada, furto, recusa a apresentar identificação para a polícia e invasão de propriedade. São diversas ocorrências do fim da década de 1990 ao começo dos anos 2000.
O dia fatídico: o documentário mostra imagens inéditas do momento crucial
Em 25 de maio de 2020, um funcionário de uma mercearia ligou para a emergência para denunciar que um homem havia tentado pagar uma conta com notas falsas. A denúncia dizia que o homem estava “muito bêbado e fora de controle”. Era George Floyd. O documentário apresenta imagens da câmera de segurança da mercearia.
A partir daí, o documentário apresenta imagens das câmeras afixadas no peito dos policiais. Floyd é abordado ao volante de seu carro estacionado no lado oposto à rua do estabelecimento. O policial que o aborda, Thomas Lane, fala com firmeza para o cidadão apresentar suas mãos e mantê-las no volante. “O que fizemos?”, pergunta repetidamente Floyd, que parece alarmado, mas colabora. Dois amigos o acompanham no carro. Lane aponta a arma para ele. A colaboração é inconsistente, ele continua removendo as mãos do volante. Ele parece chorar (não há lágrimas aparentes) e alega que sua mãe tinha acabado de morrer. O documentário informa que ela havia morrido dois anos antes.
Lane pede oito vezes para Floyd sair do veículo, mas ele continua com voz chorosa pedindo para não ser alvejado, o policial diz que não vai atirar. Floyd é visivelmente um homem forte, com músculos proeminentes, e mais alto que os policiais. Quando finalmente sai do carro, sua amiga Shawanda Hill, no banco de trás, diz “pare de resistir, Floyd!” Enquanto ele é algemado, ela e o outro amigo no banco da frente tentam sair do carro, um policial pede para ficarem.
Continuando com a voz chorosa, Floyd se ajoelha no chão mais de uma vez, dizendo que não quer “voltar para lá”, presumivelmente falando da prisão. Levado para a calçada, ele dá e soletra seu nome verdadeiro. Ele diz que a algema está apertada, e um policial a ajusta. O oficial pergunta se ele tomou alguma droga, Floyd responde “não, nada”. Nem sempre ele dá respostas diretas, gagueja e usa interjeições de lamento. Caminhando até a viatura, ele mais uma vez se joga ao chão, tentando implorar para não ser preso. “Sou claustrofóbico”, diz. Os policiais o revistam e encontram um cachimbo de maconha em seu bolso.
Floyd usa sua força de forma mais conspícua quando os policiais o direcionam a entrar na viatura. “Não sou esse tipo de gente”, diz ele, enrijecendo o corpo e resistindo a se sentar no banco de trás. “Acabei de ter Covid”, informa. Ele se senta, mas mantém as pernas de fora do carro e diz não para os policiais. “Tenho ansiedade, não vou mexê-las”.
Neste momento chega o policial Derek Chauvin com um colega em outra viatura. Suas câmeras mostram Floyd e os policiais que chegaram antes batendo boca porque o primeiro continua se recusando a colocar as pernas para dentro do carro. Ele se deita para dentro do veículo e continua com as pernas para fora, dizendo “não posso me engasgar, não consigo respirar”. Nas imagens do documentário, isso ocorre antes de Chauvin segurá-lo com o joelho.
Floyd finalmente entra, mas se arrasta para sair pela outra porta, os policiais intervêm para evitar uma fuga. Um transeunte diz “você vai morrer de ataque do coração, cara! Entra no carro!” O detido repete que teve Covid e não consegue respirar. O policial Alexander Kueng comunica o motivo da prisão para outro: “ele está detido por falsificação [de dinheiro]”. O documentário comenta: “O sr. Floyd, que é negro, foi preso pelo policial Kueng, que é negro”. No Brasil, Kueng seria chamado de pardo ou mestiço, contudo.
George Floyd se deita na rua, ao lado da porta da viatura de onde saiu, e chuta Lane. É neste momento que os policiais (Chauvin está posicionado na região superior do corpo do detido) aplicam a Técnica de Restrição Máxima, parte de seu treinamento. O uso do joelho para aplicar pressão é previsto por uma norma aprovada pelo Departamento de Polícia de Minneapolis. Floyd começa a repetir “não consigo respirar”, mas volta a chutar Lane. Ele chama por sua mãe, e o policial Lane, que recebe os chutes, chama uma ambulância. O documentário conta que o chamado à ambulância ocorreu 36 segundos depois que Floyd havia deitado no chão. Imagens inéditas da lapela de Lane mostram que o policial, dentro da ambulância, tentou ressuscitar Floyd com massagem cardíaca. Essas imagens foram excluídas como provas dos autos do processo. Ao depor no julgamento, o chefe de polícia alegou que o procedimento de restrição com o joelho nas costas não fazia parte do treinamento, os entrevistados ex-subordinados dizem que ele mentiu.
Cena selecionada levou à revolta
O resto da cena foi o que viralizou e inflamou os Estados Unidos: Floyd repete sua lamentação e chamados por sua mãe até falecer sufocado, enquanto era segurado pelos policiais. O documentário volta à primeira cena da abordagem e destaca que parecia haver um objeto na boca de Floyd. A abordagem encontrou comprimidos de metanfetamina e fentanil — um opioide que levou os Estados Unidos a baterem o recorde de 100 mil mortes anuais por overdose. Também foram achadas pílulas de fentanil com a saliva e o DNA de Floyd no chão da viatura em que ele se deitou.
Doze horas após a morte, foi feita uma autópsia com a conclusão de que “não há evidência física que sugira que o sr. Floyd morreu de asfixia”. O documento fala que o falecido tinha um “coração pesado e doença coronária”, além de “ao menos uma artéria que estava aproximadamente 75% entupida”. O nível de fentanil no sangue dele era letal. Ao ser detido em 2019 e engolir pílulas, Floyd havia admitido que tinha engolido drogas e recebeu tratamento médico. Em maio de 2020, ele preferiu mentir.
Em 1º de junho, o advogado de sua família, Ben Crump, anunciou um relatório independente de “revisão” da autópsia, que alegou que George “não tinha nenhum problema de saúde anterior que pudesse ter contribuído para sua morte”. Contudo, o legista original, em contato com a investigação, relatou que não havia hematomas no pescoço ou nas costas. A promotoria do município preferiu o laudo alternativo e indiciou Derek Chauvin dois dias depois.
O pastor que ministrou o funeral público no dia 4 de junho iniciou sua fala com cumprimentos explícitos às gangues de Minneapolis. Uma se chama “The Bloods” (algo como “os sangrentos”). A família de George Floyd ganhou US$ 27 milhões em indenização do município.
A morte foi interpretada como uma prova de racismo contra negros por parte da polícia americana. Casos semelhantes foram usados nos anos anteriores para apresentar a mesma conclusão, embora ela não se apoie facilmente nos dados mais objetivos, como os dados do FBI. O governador de Minnesota, Tim Walz, manifestou solidariedade a Floyd em pronunciamento na TV.
A imprensa e autoridades como a atual vice-presidente, Kamala Harris, e a então presidente da Câmara Nancy Pelosi destacaram a duração do vídeo, cada uma dando números diferentes para os minutos e segundos durante os quais o pescoço de Floyd teria sido pressionado pelo joelho de Chauvin. Não houve menção aos policiais terem chamado uma ambulância. Um jornalista da CNN virou “meme” ao dizer que os protestos estavam pacíficos, enquanto havia fogo e balbúrdia ao fundo da imagem.
Os policiais entrevistados no documentário dizem que as autoridades os proibiram de usar equipamento de choque, enfrentando as multidões nas ruas de forma passiva. Um calcula que 30 foram feridos e mandados para casa, sendo substituídos por outros. “Ficamos assistindo a eles fazendo coquetéis Molotov e atirando nos prédios”, comenta um deles. “A ordem era para não fazermos nada”.
Repercussão do documentário
Antes do quase encontro com a morte, Chauvin concedeu entrevista ao documentário da prisão. Falando por telefone com a apresentadora e produtora do filme, Liz Collin (ela, que é esposa de ex-chefe de polícia, também escreveu um livro sobre o tema que inspirou o filme), o ex-policial disse que sua prisão e condenação foram uma “fraude” e que a ambulância demorou demais a chegar ao local, o que para ele “não é normal”. Os paramédicos demoraram 20 minutos, mas havia um centro de despacho a oito blocos de distância de onde Floyd morreu. O documentário aponta uma falha de comunicação sobre o local da ocorrência.
Também da prisão, cumprindo pena de três anos e meio, Alexander Kueng, que prendeu o homem, diz no filme que “este não é o fim e não vai me definir. O que foi feito foi feito e eu só espero que ao menos no futuro as pessoas mantenham a mente aberta e não deixem coisas assim acontecerem”, referindo-se à sua condenação. “Apenas usem o meu caso como exemplo para não tirar conclusões precipitadas, não cair nessa isca de raça, redes sociais, imprensa. (...) Se isso continuar a acontecer, ninguém em lugar nenhum vai ter algum resto de senso de justiça”.
Durante o processo de seleção dos jurados, os candidatos em potencial para estar à frente do julgamento responderam a uma pergunta sobre sua opinião acerca do movimento Black Lives Matter. Todos deram respostas “muito positivas”, mostra o documentário. O juiz Peter Cahill considerou que essas respostas não eram algo que comprometesse a imparcialidade, mas uma posição consistente com proteções constitucionais aos réus.
O economista Glenn Loury e o linguista John McWhorter (também colunista do New York Times), ambos negros simpáticos à esquerda, mas críticos do identitarismo, acharam o documentário convincente. “É muito bem executado”, comentou Loury, que expressou pesar pelo ataque a facadas a Chauvin e interpretou que o documentário levanta sérias dúvidas sobre a justiça da condenação do policial. As imagens inéditas “mostram uma história bem diferente daquela que conhecíamos”, concluiu McWhorter, acrescentando que “a ideia de Floyd enquanto um herói é revoltante, absolutamente revoltante. O homem era um caos completo”.
Comentando as reações de Loury e McWhorter, o biólogo evolutivo Jerry Coyne disse em seu blog: “eu assisti ao filme e meus leitores também deveriam, (...) o filme sugere o quão corruptos e duas-caras são o prefeito, o juiz e os funcionários públicos municipais de Minneapolis ao ignorar os fatos para fazer avançar uma narrativa conveniente”.
O comentarista conservador Dennis Prager disse que “assistir a este documentário é uma coisa que você deve a si mesmo e ao seu país”. O canal Sky News da Austrália comentou que o filme “dissipa as narrativas dominantes”.
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