Uma pena politicamente mais engajada talvez resistisse à tentação de comparar Não Vai Ter Golpe, documentário que mostra a versão do grupo Movimento Brasil Livre para o impeachment de Dilma Rousseff, e Democracia em Vertigem, documentário de Petra Costa que mostra a versão da esquerda para o mesmo episódio. Eu não resisto.
Até porque as semelhanças são muitas. A começar pela narrativa em primeira pessoa, com locução não-profissional. O que me faz pensar que essa coisa de olhar o mundo dos arranjos coletivos a partir de uma perspectiva muito individual talvez seja uma marca da tal nova política. Se as gerações anteriores disfarçavam ambições pessoais sob o manto do bem-estar de um grupo, a juventude de Petra Costa e da dupla Alexandre Santos e Fred Rauh escancara o caráter personalista de suas empreitadas políticas.
Não é algo necessariamente ruim. Aliás, pode-se dizer que tanto um documentário quanto o outro propõem aos espectadores um exercício de humildade e generosidade. Se em Democracia em Vertigem somos levados a compreender o apego da esquerda a ideias evidentemente ultrapassadas e corrompidas, Não Vai Ter Golpe nos leva a fazer um esforço consciente para aceitar um idealismo, um virtuosismo que beira o autocondescendente e um otimismo político que ainda não foram recobertos pela pátina do pragmatismo e do cinismo. É um bom exercício.
Outra coisa que transborda em Não Vai Ter Golpe é o tom (óbvio) de triunfo, com um quê de épico tipicamente brasileiro. No começo da história, ficamos conhecendo os protagonistas do processo que culminou com o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência – um feito e tanto. Eles são jovens e descolados e um tanto quanto amadores (no bom sentido). Aos poucos, esses promotores do caos virtuoso (em oposição ao caos estéril das manifestações de 2013) passam por várias experiências transformadoras – como a própria opção pela pauta concreta do impeachment, a marcha até Brasília e o tenso acampamento diante do Congresso. Até que eles saem do processo transformados não apenas em homens, mas em homens públicos. Faz uma diferença e tanto isso.
Tudo é muito espontâneo em Não Vai Ter Golpe – e essa é a maior qualidade do filme. Não sei se por restrições orçamentárias ou por opção estética mesmo, o tom intimista com algo de improvisado nos convida a trazer a narrativa para dentro de casa. Evocamos memórias recentes dos panelaços, prendemos a respiração quando Dilma Rousseff nomeia Lula para seu ministério, nos revoltamos com a guerra de números das gigantescas manifestações. De alguma forma, Não Vai Ter Golpe consegue gerar suspense num documentário. Por um instante, me peguei até mesmo acompanhando a votação do impeachment na Câmara como se não soubesse o resultado.
Mas, como o próprio grupo deixa claro no final do filme, trata-se de um documentário para os filhos deste nosso tempo ultrapolarizado – polarização da qual o MBL foi protagonista. O tom do fim do filme não é exatamente de vitória. A impressão que se tem é de terra arrasada. A saída de Dilma Rousseff, possibilitada apenas pelo idealismo, determinação e fé dos “meninos do MBL”, era uma promessa de pacificação e prosperidade que acabou não se realizando. Daí porque os créditos finais exaltam nem tanto a derrubada do fantoche lulista, e mais a liberdade que permitiu a formação do grupo, a mobilização das multidões, o uso dos instrumentos legais e, por fim, a queda institucionalmente legítima da chefe do Executivo.
Curioso, para um filme que trata de acontecimentos tão recentes, é a ausência do presidente Jair Bolsonaro. Ausência que causa até uma sensação de estranhamento. Como é possível que o atual mandatário da nação não tenha agido para derrubar sua antecessora? Como é possível que a consequência política do impeachment não tenha influenciado no evento que é o responsável por sua própria existência? O estranhamento se desfaz, contudo, quando o espectador lembra que Jair Bolsonaro realmente foi coadjuvante, quando não figurante, no processo todo. O que não é uma crítica; é apenas uma constatação.
Tanto quanto Democracia em Vertigem, Não Vai Ter Golpe é uma arma na aparentemente interminável guerra cultural que se trava no Brasil desde que o PT começou a dar sinais de cansaço. E, como realizações audiovisuais, os dois produtos acabam por expor a desigualdade das forças que travam essa guerra. De um lado, tem-se as imagens límpidas de Petra Costa, com o tom choroso, mas muito profissional, e as imagens grandiosas que analisam o evento histórico com aquele tom professoral de quem enxerga o mundo de cima para baixo.
De outro, temos o cinema com cara de vídeo do YouTube de Alexandre Santos e Fred Rauh, com a câmera sempre agitada e ansiosa, mesmo quando estática, certa sem-cerimônia dos atores políticos, opiniões assertivas e graves dos entrevistados, um quê de humor que seria impensável numa peça de propaganda política e os planos baixos de quem não está dialogando com o espectador do alto de um pedestal.
Daqui a trinta ou cinquenta anos, um dos dois filmes será considerado peça histórica, enquanto o outro será motivo de chacota e de escárnio. A não ser que haja um milagre, a polarização se dissipe e as duas narrativas possam, de alguma forma, conviver em paz tanto no imaginário do espectador quando na historiografia.
Porque liberdade pressupõe também não se apegar demasiadamente a uma visão da história a ponto de ser escravizado por ela.
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