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Análise

Dois anos sem Olavo de Carvalho: o legado do filósofo que mudou a direita brasileira

Olavo de Carvalho, no início dos anos 2000, em Curitiba
Olavo de Carvalho, no início dos anos 2000, em Curitiba (Foto: Arquivo Gazeta do Povo)

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“Não quero ser dramático demais. Mas a direita sem o Olavo de Carvalho parece uma galinha sem cabeça correndo pelo quintal”, diz o roteirista e escritor Elton Mesquita, um dos criadores do canal do YouTube Brasileirinhos, que frequentemente presta tributo ao “Professor” — cuja morte completa dois anos na quarta-feira (24).

Como Mesquita, inúmeros admiradores de Carvalho seguiram seus passos e mantêm os próprios projetos de propagação de ideias no “ecossistema” que ele ajudou a fundar e impulsionar. Uma verdadeira rede contracultural composta por editoras, sites, podcasts, cursos e perfis de redes sociais voltados ao debate público e à formação pessoal.

O sentimento geral, no entanto, é de que o espaço deixado pelo filósofo ainda está longe de ser preenchido. E enquanto parte de seus herdeiros intelectuais segue produzindo de forma sistemática e discreta, uma infinidade de oportunistas disputa a tapa seu lugar num mercado altamente lucrativo.

“Há alunos bons do Olavo que se destacam em várias áreas. Mas, infelizmente, os que ficaram mais famosos estão no marketing digital”, afirma o cineasta Josias Teófilo, diretor de O Jardim das Aflições (2017), documentário sobre o pensamento, a obra e o cotidiano de Carvalho.

Ele se refere aos candidatos a guru dedicados a vender cursos online, nos moldes dos ministrados pelo “Professor”, para um público ávido por orientações – contudo sem discernimento para identificar possíveis picaretas.

“Isso virou uma indústria terrível. Um ambiente muito insalubre, que despreza a vida fora da internet e com gente que quer chamar a atenção a todo o custo. Principalmente criando polêmicas artificiais”, diz.

Para o cineasta, esses supostos herdeiros não apenas vulgarizam e distorcem as teorias apresentadas por Olavo de Carvalho, mas também as contrariaram. “O Olavo odiava a normatividade, a ‘cagação de regra’. E os que essas pessoas fazem é exatamente decretar o que é certo e errado o tempo todo.”

Teófilo ainda destaca o amadorismo excessivo dessas iniciativas. E garante: os alunos “sérios” de Carvalho hoje estão mais voltados para a literatura. “São pessoas como o [jornalista, escritor e tradutor] Ronald Robson, que têm profundidade filosófica e estão escrevendo seus livros sem pressa e sem alarde.”

Apesar do tom grave da frase que abre a reportagem, Elton Mesquita, autor do livro ‘Não Tenhais Medo’ (2019), também é otimista com relação à ala mais intelectualizada dos “olavetes” (antes pejorativo, o termo agora é abraçado com simpatia pela tribo).

“Urge paciência, como dizia o próprio Olavo. Tenho certeza de que essa volta à obscuridade vai fermentar bons resultados em várias frentes”, afirma Mesquita, citando a atividade de editoras como Danúbio e Sétimo Selo e do professor Rafael Falcon.

Combinar “Aristóteles com Mussum” era uma das marcas registradas da persona pública do filósofo 

Flávio Gordon, antropólogo, escritor e colunista da Gazeta do Povo, é outro que festeja o que define como “florescimento” de projetos influenciados pelo legado de Olavo de Carvalho. “Esse impacto já podia ser percebido quando ele ainda era vivo. Mas hoje temos o surgimento de várias novas editoras e iniciativas nas áreas de jornalismo e audiovisual, por exemplo. Fora o trabalho de formiguinha de gente como o Carlos Nadalim, que foi além do governo Bolsonaro [ex-Secretário de Alfabetização do Ministério da Educação na gestão anterior, o professor de Londrina (PR) desenvolveu um método de ensino elogiado até por setores da esquerda].”

Mas há alguma figura que consiga unir as duas pontas da persona pública criada por Carvalho – cuja marca registrada era a combinação de erudição e carisma, profundidade e capacidade de comunicação? De acordo com Gordon, será muito difícil surgir um descendente do filósofo com essas características.

“Olavo foi um acontecimento único. Ele mesmo dizia que transitava entre Descartes e Mussum, Aristóteles e Alborghetti. E não desenvolveu isso do nada, foi tudo muito pensado. A ideia dele era debochar da solenidade e da artificialidade autoimposta utilizada pela elite intelectual para ocultar suas incapacidades e projetos políticos”, diz o ex-aluno do famoso COF, o Curso Online de Filosofia ministrado durante anos por Olavo de Carvalho.

Para Flávio Gordon, a tentativa de imitar os trejeitos do “Professor” é uma das principais estratégias adotadas pelos oportunistas que buscam ocupar o vácuo deixado por ele. No entanto, segundo o antropólogo, os vendedores de programas de coaching existencial não estão sozinhos nesse grupo. “Muita gente da política se elegeu adotando essa postura teatral sem realmente entender o pensamento do Olavo”, afirma o autor do livro ‘A Corrupção da Inteligência’ (2017).

Para analista, Olavo de Carvalho conseguiu unir vários grupos da direita brasileira 

Questionado sobre o possível sucessor de Olavo de Carvalho, o comentarista político Alexandre Borges também acredita que ele foi um “fenômeno único, difícil de reproduzir”. Borges, contudo, vê um campo aberto para o surgimento de novas lideranças – que, no momento, está sendo ocupado pelos religiosos (católicos, judeus e evangélicos).

Na opinião do analista, Carvalho ainda tinha uma terceira característica importante, para além do carisma e da profundidade: conseguia unir adeptos do que considera os três “movimentos” que compõem a direita brasileira.

O primeiro grupo, de acordo com ele, reúne os que veem no combate à corrupção a saída para os problemas do país. Já o segundo é formado pelos “defensores da ordem”, como patriotas, militares, monarquistas, religiosos, etc. Por fim, há uma “direita econômica/financeira”, para a qual somente a adoção de uma agenda liberal é capaz de consertar o Brasil.

“O problema é que, dentro de cada um desses grupos, há gente democrata e gente autoritária. Gente que aceita as regras do jogo democrático e gente que confunde princípios com um projeto de poder. Espero que os democratas vençam”, diz Borges, que não foi aluno ou uma pessoa próxima de Olavo de Carvalho – apesar de ter visitado sua casa, no estado da Virginia, durante uma viagem para os Estados Unidos.

Projeto da USP que monitora a direita aponta diferenças de pensamento dentro do grupo olavista 

E como a academia, tão atacada por Carvalho e seus alunos, analisa o comportamento dos herdeiros do olavismo? Para Luiza Foltran, pesquisadora do projeto Monitor do Debate Político no Meio Digital, da Universidade de São Paulo (USP), os discípulos do filósofo, ao contrário do que muitos podem crer, não pensam de forma igual.

“A proposta da [produtora] Brasil Paralelo, por exemplo, é diferente do que propõe o [psiquiatra] Italo Marsili, que por sua vez também é diferente das ideias da família Bolsonaro”, diz Luiza – cujo trabalho é acompanhar a atividade do que ela classifica como “ultradireita” e “direita radical” nas redes sociais, em manifestações de rua e, no caso específico do olavismo, no ambiente dos cursos online.

A pesquisadora ainda aponta estratificações socioculturais e econômicas distintas entre o público conservador que busca se educar pela internet. “Existem cursos para quem pode pagar R$30 e outros que custam mais de R$ 1 mil. Cursos de História e Filosofia e cursos sobre como organizar a sua vida. Mas sempre com o pano de fundo de ‘buscar a verdade que não é contada’ ou ‘desmascarar as mentiras que a esquerda conta’.”

De acordo com Luiza, o projeto da USP olha com mais atenção para a direita devido ao grande número de cursos ofertados (centenas, segundo ela) e seu protagonismo no debate público dos últimos anos – bem maior do que o do campo progressista. “O maior legado do Olavo é o conceito de formar formadores que vão formar outros formadores.”

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