O discurso de defesa da ordem do presidente da Argentina, Javier Milei, guarda muitas semelhanças com os pronunciamentos de Nayb Bukele, presidente de El Salvador. Milei fez um apanhado das ações praticadas por seu governo no primeiro ano de mandato. Disse que o país está buscando um modelo que impõe o trabalho prisional como forma de compensação das despesas provocadas pelos apenados, associado com a extinção do uso de celulares na prisão, a aprovação de leis penais mais rigorosas, a valorização das forças de segurança pública e a implementação de uma política repressiva contra o crime, que tem na cidade de Rosario hoje o seu maior case de sucesso.
A empolgação do presidente argentino parece lastreada por dados concretos. Nos últimos anos, Rosário, na Argentina, enfrentou uma grave escalada de violência devido ao domínio de grupos narcotraficantes, com uma taxa de homicídios quatro vezes superior à média nacional. A cidade, estratégica para o tráfico de drogas devido à sua localização e infraestrutura portuária, tornou-se um ponto central de disputas entre facções criminosas.
Em 2023, Rosario registrou a maior taxa de crimes do país, com homicídios e tiroteios se tornando rotina, vitimando inclusive pessoas inocentes. O tráfico de drogas, operado principalmente por gangues como Los Monos, foi identificado como a principal causa da violência.
Com a chegada de Javier Milei à presidência, foi lançada a Operação Bandeira, uma estratégia conjunta com o governo de Santa Fé e liderada por Patricia Bullrich, visando reverter o quadro de insegurança. A operação incluiu o aumento das forças federais, novas medidas de segurança nas prisões e a criação de um regime rígido para criminosos de alto risco. Como resultado, a operação gerou uma queda significativa na violência, com uma redução de até 78% nos homicídios em Rosario em abril de 2024.
Além disso, mais de 1.700 policiais foram enviados à cidade, apreendendo grandes quantidades de drogas e desmantelando redes de narcotráfico, o que também levou a uma diminuição de 59% nos tiroteios.
Bukelização da Argentina? Mas e daí?
O enfoque repressivo da nova política de segurança argentina tem sido acusado pelos críticos de ser parte de um processo de “bukelização” do país. O termo geralmente é usado em sentido pejorativo para denunciar um “protagonismo excessivo” do Poder Executivo no combate ao crime, incluindo não somente uma série de dispositivos de endurecimento penal, mas também a pressão política sobre outros poderes instituídos, como a Suprema Corte e o Poder Legislativo.
O pacote de alterações legislativas enviadas para votação no Congresso argentino no primeiro semestre deste ano inclui medidas como a Lei Antimáfia, a criação de um Registro Nacional de Dados Genéticos, a inclusão do conceito de reincidência para reduzir os índices de criminalidade, diversos ajustes na forma de unificar penas e lidar com o concurso de crimes, além de medidas que reforçam a legítima defesa e o cumprimento do dever, garantindo apoio a quem tem a responsabilidade de proteger e cuidar da população argentina.
No caso da Lei Antimáfia, o dispositivo se destaca não só pela inclusão de diversos delitos em associação que permitem incriminar com penas de oito a 20 anos criminosos somente pelo fato de pertencer a uma organização, como também pela facilitação para investigação e processo desse tipo de delito, com a criação da Zona Especial de Investigação. O dispositivo relacionado com a reincidência, por sua vez, permite que as penas sejam somadas de maneira aritmética, chegando a até 50 anos de reclusão.
Além dessas medidas, Milei também anunciou a intenção de mudar a Lei de Segurança, para permitir uma atuação mais incisiva das forças armadas contra organizações narcotraficantes, terroristas e mesmo de atuação local, dependendo das circunstâncias, sem a necessidade de declaração de um estado de sítio.
Até agora, o estilo de atuação política do presidente argentino em relação às demais instituições guarda distância em relação às críticas comuns ao modelo salvadorenho.
Para garantir a aprovação de seu pacote de medidas contra o crime, Nayb Bukele recorreu intensamente às redes sociais para pressionar ministros da Suprema Corte, membros do seu gabinete e parlamentares. No dia da votação no congresso salvadorenho, o presidente utilizou forças policiais posicionadas estrategicamente na entrada do parlamento para pressionar os deputados a aprovarem as propostas. A imagem mais marcante, porém, foi Bukele ocupando a cadeira da presidência do congresso e conduzindo a votação como se fosse um líder autoritário.
Ainda que a rejeição a esse modo de atuação seja calcada em preconceitos mais estéticos e ideológicos do que em preocupações reais com as instituições, dado estado de deterioramento que se encontravam antes, foi essa combinação de ações e a estratégia de governar por meio das redes sociais deram origem ao termo “bukelização”. É preciso forçar muito a barra para encontrar semelhanças nessa direção com o estilo político do presidente argentino.
De todo modo, Javier Milei não parece muito preocupado com críticas desse tipo, assim como seu eleitorado. Em outubro deste ano, Argentina e El Salvador firmaram um acordo de cooperação para combater o crime organizado, com foco na luta contra o narcotráfico, após uma reunião entre a ministra de Segurança da Argentina, Patricia Bullrich, e o ministro de Justiça e Segurança de El Salvador, Gustavo Villatoro. O pacto, que inclui a implementação de uma "nova doutrina contra o crime organizado", foi assinado durante a visita oficial do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, à Argentina.
O acordo estabelece princípios chave, como o controle territorial absoluto do Estado frente à ameaça do crime organizado, a coordenação de ações e o intercâmbio de informações entre os dois países. Também inclui medidas de reforço na segurança carcerária, com a criação de pavilhões de segurança máxima e a implementação de regimes mais rigorosos para presos de alto risco, inspirado no modelo de El Salvador. A operação também prevê verificações periódicas nas prisões para combater o uso de celulares clandestinos.
A aproximação entre os dois países tem servido para “limpar” ainda mais a imagem de Bukele na região, transformando sua política de segurança numa referência para políticos de matriz conservadora na região. Assim como aconteceu com a política de Tolerância Zero implementada em Nova York durante a gestão de Rudolph Giuliani de 1994 a 2001, com resultados expressivos que tiraram a cidade do ranking mundial de violência, as ações implementadas em El Salvador estão se transformando num símbolo de reação de uma região que historicamente tem perdido sucessivas batalhas contra o avanço do crime organizado.
E no Brasil?
O Brasil parece caminhar na contramão desse processo. Nas eleições presidenciais de 2022, o discurso de luta contra o crime ocupou um lugar secundário na campanha de Jair Bolsonaro, em que pese o fato do país ter vivido uma redução expressiva do número de homicídios durante sua presidência.
É possível que a dificuldade de encontrar um símbolo unificador para uma agenda de segurança pública tenha se devido às circunstâncias problemáticas de todo o seu mandato. Com uma pandemia, seguida do estremecimento progressivo das relações com o Poder Judiciário, dada a progressiva implementação de uma juristocracia no país, a agenda de combate ao crime parece não ter ocupado muito espaço na comunicação presidencial.
Ainda assim, os investimentos em segurança pública bateram recorde no período. Relatório do Tesouro Nacional sobre as despesas do governo revelou que a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro foi a que mais recebeu recursos entre 2010 e 2022, com dois picos de gasto com “ordem pública e segurança” em 2019 e 2022, ambos em torno de R$ 311 bilhões, superando o recorde de 2018, que foi de R$ 303 bilhões. Embora tenha havido uma queda durante os anos da pandemia, em 2021 o investimento atingiu 3% do PIB, superando outros países da América Latina, emergentes e até nações do G20, cujos gastos médios foram de 2,01%. O Brasil também ultrapassou economias mais avançadas, como França, Japão e Alemanha, cujo gasto foi de 1,6% do PIB.
Durante o período, o Brasil registrou uma redução no número de homicídios. Em 2019, houve uma queda de 19% em comparação com 2018, totalizando 41.635 mortes, o menor número desde 2007. Em 2021, o país registrou 41.069 homicídios, uma redução de 7% em relação a 2020. Em 2022, o Brasil registrou 40.800 assassinatos, representando uma queda de 1% em relação a 2021, que teve 41.200 casos. Essa redução levou o país ao menor número de homicídios desde o início da série histórica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2007.
Ainda assim, o aumento dos investimentos e os resultados positivos não vieram associados com um programa específico ou uma marca que pudesse colar a bandeira de combate ao crime no mesmo nível que tem acontecido com outros países da região. A ausência de uma mobilização permanente de reforma das leis penais durante o período também colaborou com esse processo. E não é imprudente cogitar que a falta dessa “marca” tenha contribuído para a perda de eleitores, principalmente nos grandes centros urbanos.
Já na campanha petista, o tom do discurso sobre o tema parecia bem mais focado em apontar os “problemas da polícia”, com Lula criticando o abuso de autoridade contra menores infratores e a violência policial. Esse tom, que coloca a raiz do problema nos abusos cometidos pelas forças de segurança, repete um padrão da esquerda, que não se esgota no debate eleitoral.
Na gestão petista, encontrou materialidade na “PEC da segurança”, apresentada pelo Ministério da Justiça. Em vez de enfocar no endurecimento penal e processual, bem como o fortalecimento das forças de segurança, a medida aponta prioridades como retirar poder dos entes federados, padronizar o treinamento policial e incorporar mecanismos de controle sobre o trabalho policial sem qualquer eficácia comprovada, como as câmeras corporais.
Esse processo de “brandura” ultrapassa os limites do Executivo. A quantidade de decisões judiciais nas esferas superiores que prejudicam o trabalho policial e a repressão ao crime atingiu um número recorde nos últimos anos. O abolicionismo penal tem se tornado política de Estado no Brasil, pela ação de juízes sem mandato parlamentar.
O caso recente mais expressivo foi a descriminalização do uso de maconha votado pelo Supremo Tribunal Federal no primeiro semestre deste ano, autorizando a posse de quantidades que, na prática, legalizaram o tráfico de drogas, mediante pequenas adaptações logísticas da parte das organizações criminosas.
Mas o rol de absurdidades inclui, entre outras medidas, restrições a operações policiais em comunidades ocupadas pelo crime organizado no Rio de Janeiro; limitações de abordagens policiais sem fundada suspeita, vetando justificativas “subjetivas” da parte dos agentes; restrições draconianas para o ingresso de policiais em domicílios, mesmo em casos de perseguição de suspeitos de tráfico de drogas, entre outros.
Da parte da grande imprensa, fica evidente a atuação contrária à atuação de governadores que tem atuado de maneira mais incisiva no combate ao crime nos seus estados. Na última semana, essa frente tem se concentrado em pressionar o governador de São Paulo, Tarcísio Freitas (REP-SP), pela demissão do seu secretário de segurança, o Capitão Guilherme Derrite (PL-SP), e consequente mudanças na política de segurança do estado. Ironicamente, os altos índices de aprovação do governo Tarcísio se calcam principalmente nos seus resultados em segurança pública.
O Estado de São Paulo encerrou 2023 registrando a menor taxa de homicídios dolosos em 23 anos, alcançando 5,72 casos por 100 mil habitantes. Esse resultado marca a primeira vez desde o início da série histórica, em 2001, que o índice ficou abaixo de 6.
Em agosto, o estado alcançou o menor índice de roubos desde o início da série histórica em 2001, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública. Os registros mostram uma redução contínua, alinhada à tendência de queda mensal observada ao longo de 2024. Em agosto, foram contabilizadas 15.185 ocorrências, quase 20% a menos em comparação com o mesmo mês de 2023, quando houve 18.901 casos. Já em julho, os números dessa modalidade criminosa haviam atingido o menor patamar histórico.
Com uma política de enfrentamento direto, que se diferencia em muito da gestão de acordos com o Primeiro Comando da Capital (PCC), institucionalizada durante os governos do PSDB, esse endurecimento resultou no aumento esperado do número de mortes em confronto com a polícia.
Ainda que a imprensa tenha focado em casos anedóticos, é importante frisar que esse crescimento ocorreu em quase todo o país, com destaque para a Bahia, governada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Além disso, São Paulo permanece como uma das menores taxas de mortes por intervenção policial (1,1). Num cenário assim, causa estranheza que São Paulo se torne pauta de preocupação da imprensa nacional, mesmo com indicadores recordes de redução da violência contra os cidadãos.
Dois caminhos
As escolhas políticas das lideranças latino-americanas região trarão consequências profundas para a vida de centenas de milhões de pessoas nos próximos anos. A região já possui nações entregues ao domínio do crime organizado, como México, Bolívia, Venezuela e Nicarágua. Nesses países, as organizações criminosas não somente controlam fatias inteiras do território, como influenciam diretamente a política nacional, financiando regiamente candidaturas, intimidando ou matando opositores e interferindo diretamente no processo eleitoral. Em qualquer um deles, é difícil acreditar que um processo político democrático normal possa fazer frente a esse controle institucionalizado do mal.
Países como Argentina e El Salvador decidiram tomar outra direção, de enfrentamento direto contra o crime, endurecimento penal e afirmação da ordem, e já colecionam números alvissareiros nessa direção. É esperado que os indicadores de segurança se reflitam em ganhos substantivos na qualidade de vida e na prosperidade econômica dessas populações, com resultados que podem se estender por décadas.
Nações como o Brasil são territórios em disputa, mas numa batalha que caminha rapidamente para a rendição do país ao domínio do crime. O assassinato cinematográfico de um delator do PCC num dos maiores aeroportos do continente, com segurança reforçada, ocorrido no último dia 8 de novembro, guarda semelhanças assustadoras com eventos ocorridos no passado em países como Colômbia e México.
Da mesma forma, a atuação do PCC, do Comando Vermelho e outras facções criminosas durante o processo eleitoral nas eleições municipais se mostrou preocupante em cidades como Manaus, São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Fortaleza, entre outras. Em muitos desses casos, a grande imprensa sequer se fez presente para denunciar os abusos cometidos contra a população.
O destino do país será decidido pela capacidade de políticos de linha dura contra o crime manterem sua posição, a despeito das pressões em contrário. É preciso que as forças políticas de defesa da Ordem se aglutinem em torno de um projeto comum, com forte expressão política nas eleições presidenciais de 2026.
Afinal, a expansão do controle do crime é a expressão mais massificada do atual regime de poder que ora governa o país, num consórcio espúrio que inclui o Poder Executivo, as instâncias superiores do Judiciário e grupos de comunicação dominados por um número restrito de famílias poderosas. Reagir a um é reagir a outro. Não existe outro caminho para além da fuga pelo aeroporto mais próximo.
Eduardo Matos de Alencar é escritor, sociólogo e analista político. Autor do livro “De quem é o comando? — O desafio de governar uma prisão no Brasil”.