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História

Dois mortos muito loucos: a bizarra história dos cadáveres de Mussolini e Franco

No Vale dos Caídos, Franco ordenou a construção de um mausoléu que tivesse “a grandeza dos monumentos antigos, que desafiem o tempo e o olvido e que constituam um lugar de meditação e repouso, em que as gerações futuras rendam tributo de admiração aos que lhes legaram uma Espanha melhor”. (Foto: Pixabay)

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Entre os pontos em comum que unem dois dos maiores facínoras da história recente estão a ideologia assassina, o total desprezo pela vida humana e os curiosos destinos que seus corpos tiveram depois de suas mortes.

Os ditadores Benito Mussolini e Francisco Franco, nomes que estão na mente de todos que cresceram durante o século XX e que fizeram o que bem entenderam com as vidas e corpos de seus adversários, acabaram tendo seus cadáveres usados, de maneiras nem sempre lisonjeiras, para os fins políticos mais espúrios.

“Como um vira-lata sarnento”

Em julho de 1943, Benito Mussolini, líder fascista da Itália desde 1922, foi deposto e preso por ordens do rei Vítor Emanuel III. Adolf Hitler, no entanto, conseguiu resgatá-lo da prisão por meio de uma operação de forças especiais alemãs e o recolocou de volta no poder da chamada República Social Italiana, popularmente conhecida como República de Salò – um Estado fantoche criado no norte da Itália na cidade de mesmo nome.

Com o avanço das tropas Aliadas durante 1944 e 1945, no entanto, os nazistas decidiram bater em retirada, deixando Mussolini praticamente isolado em Milão, para onde ele havia transferido a sede do seu governo. Diante de uma revolta generalizada organizada pelos partigiani antifascistas, Mussolini resolveu fugir para a Suíça num comboio alemão (disfarçado de nazista, com direito a uniforme e capacete), mas acabou sendo capturado por um grupo de comunistas locais na pequena vila de Dongo, às margens do lago de Como.

Para os militantes antifascistas, a questão agora não era executar ou não Mussolini, mas como executá-lo antes que os Aliados pudessem capturá-lo e lhe dar a dignidade de um julgamento. Um deles chegou a sugerir que Mussolini fosse morto “como um vira-lata sarnento”. No dia seguinte à captura, Mussolini, sua amante, Claretta Petacci, e outros altos oficiais fascistas tiveram seu fim diante de um pelotão de fuzilamento.

Seus corpos foram levados na manhã seguinte para Milão e jogados no meio da Praça Loreto. Ao verem uma turba furiosa se agrupar em volta dos cadáveres e começar a linchá-los, os partigiani decidiram pendurá-los de ponta cabeça diante de um posto de gasolina, montando assim a cena que talvez tenha se tornado uma das mais icônicas do fim da Segunda Guerra Mundial na Europa e da história italiana recente.

(O mais curioso é que o próprio Mussolini, que havia sido jornalista e editor de um diário fascista, Il Popolo, tinha escrito em 1920 uma matéria descrevendo incrédulo um linchamento terrível de um oficial dos carabinieri cometido por militantes socialistas e anarquistas na mesma Praça Loreto).

Depois que os instintos sádicos da turba haviam sido devidamente saciados, os corpos de Mussolini e Petacci foram levados para o necrotério da cidade. Lá, foram fotografados – de mãos entrelaçadas, para um maior efeito dramático, pelo exército americano, e, segundo alguns relatos, tiveram seus órgãos removidos pelos legistas locais, que teriam até mesmo jogado uma macabra partida de pingue-pongue com alguns deles. De lá, foram levados para o cemitério de Musocco, onde foram enterrados numa vala comum.

Um cadáver à solta pela Itália

Em 1946, um jovem fascista chamado Domenico Leccisi, que passava todo dia de trem diante do cemitério, teve a ideia de “resgatar” o corpo do Duce. Aproveitando-se de uma rebelião numa prisão milanesa em 23 de abril, que mobilizou toda a polícia da cidade, Leccisi chamou dois amigos e exumou o corpo, deixando em seu lugar um bilhete dando crédito ao Partido Democrata Fascista pelo roubo.

Durante dias o país todo se mobilizou para encontrar o corpo de Mussolini. Boatos de que ele havia sido visto em todo tipo de lugar – numa barca sobre um rio, dentro de um balão, no aeroporto de Roma, no lago de Lugano, na Suíça, e até mesmo que Churchill tinha ordenado que o corpo fosse levado à Inglaterra – pipocaram pela Itália.

Depois de alguns meses de investigação, Leccisi e seus comparsas foram presos e acabaram revelando o destino do corpo: depois de levá-lo para diversos esconderijos em pequenas aldeias nas montanhas, eles acabaram levando-o para Milão, onde alguns padres os ajudaram a escondê-lo na Igreja de Santo Ângelo e, de lá, para o Mosteiro de Certosa, em Pavia, onde o corpo foi encontrado enrolado em plástico, numa caixa dentro do armário da cela de um monge. A essa altura, segundo os relatos da polícia, o cadáver já não era mais um cadáver, mais um “esqueleto caindo aos pedaços”.

As autoridades italianas, então, esconderam o corpo de Mussolini por “questões de Estado”. Elas fizeram um acordo com os padres que o haviam escondido para que os sacerdotes pudessem dar ao ditador um funeral cristão antes de sepultá-lo num local secreto (o convento de Cerro Maggiore). Nem mesmo a família de Mussolini ficou sabendo do local do sepultamento. A ideia era evitar que o local se tornasse um santuário ou destino de peregrinação para neofascistas.

Em 1957 os restos de Mussolini foram finalmente transferidos para o cemitério de São Cassiano, em Predappio, terra natal do ditador. Lá, Mussolini foi sepultado na cripta da família – onde continua até hoje.

O lugar acabou se tornando alvo de homenagens anuais por fãs modernos do tirano.

Monumento digno de um faraó

Já Francisco Franco, o caudilho que governou com mão de ferro a Espanha durante boa parte do século XX, depois de vencer uma sangrenta guerra civil – e com a ajuda do mesmo Mussolini e da Alemanha nazista de Hitler –, não teve uma morte tão trágica quanto a de seu antigo aliado. Seu corpo, porém, também esteve no centro de uma controvérsia.

A personalidade de Franco ainda desperta paixões na Espanha. Parte da população espanhola o abomina por causa das terríveis violações aos direitos humanos cometidas durante o tempo em que ele esteve no poder. Mas Franco conta também com ferrenhos defensores que atribuem a ele a responsabilidade pela industrialização e modernização vividas pelo país durante a década de 1960 (o chamado “Milagre Espanhol”), por instilar um sentimento nacionalista que, apesar de exacerbado e repressor, conseguiu manter unidas as diferentes comunidades autônomas, e por utilizar uma série de manobras diplomáticas e políticas para evitar que a Espanha fosse arrastada para a Segunda Guerra Mundial.

Em 1973, já sofrendo de vários problemas de saúde, Franco começou a abrir mão de seu poder absoluto, delegando a função de primeiro-ministro a outros políticos e indicando o príncipe Juan Carlos de Borbón, que ele já havia designado como seu sucessor em 1969, para substitui-lo como chefe de Estado durante os períodos em que estava debilitado demais.

No fim de 1975, aos 82 anos, Franco morreu. O lugar escolhido para sepultar seu corpo foi um vale coberto por pinheiros nos arredores de Madri, na Serra de Guadarrama, conhecido como Vale dos Caídos. Ainda no fim da Guerra Civil Espanhola, o próprio Franco tinha ordenado a construção de um mausoléu que tivesse “a grandeza dos monumentos antigos, que desafiem o tempo e o olvido e que constituam um lugar de meditação e repouso, em que as gerações futuras rendam tributo de admiração aos que lhes legaram uma Espanha melhor”.

O mausoléu, uma gigantesca basílica neoclássica de granito, decorada com estátuas, mosaicos e tapeçarias mostrando heróis e mártires ao lado de emblemas fascistas, levou duas décadas para ser construído e custou mais de duzentos e cinquenta milhões de dólares. Quarenta mil trabalhadores, a maior parte prisioneiros do lado republicano, derrotado na Guerra Civil, foram forçados a construir o edifício diretamente na rocha de uma montanha de frente para o vale e a erguer uma gigantesca cruz de 150 metros de altura sobre ele.

Muitos desses operários morreram durante explosões para abrir o buraco na face da montanha e outros tantos de doenças causadas pelas péssimas condições de trabalho ou soterrados pelos gigantescos blocos de granito. Embora oficialmente Franco pretendesse que as vítimas dos dois lados da guerra fossem enterradas no mausoléu, familiares dos combatentes republicanos se recusaram a permitir que seus entes queridos fossem sepultados ali, o que fez com que o governo espanhol exumasse seus corpos e os levasse, sem qualquer autorização, para lá, na chamada “Operação Caídos”.

O corpo de Franco foi, então, embalsamado e colocado numa sepultura ao lado do altar da basílica, sob uma imensa figura de Cristo crucificado, numa cerimônia solene com cerca de cem mil pessoas. Nenhum líder europeu ocidental aceitou comparecer ao funeral (que contou com a presença de um grande admirador de Franco, o ditador chileno Augusto Pinochet).

O local logo se tornou alvo de um debate interminável. Enquanto apoiadores de Franco consideravam o mausoléu uma espécie de santuário e faziam celebrações anuais no local no aniversário da morte do ditador, o resto da população considerava uma afronta a presença do seu corpo ali, ao lado das sepulturas de tantos cujas mortes ele havia causado.

Ferida aberta

A Espanha se democratizou, sob o comando de Juan Carlos (agora rei), mas os governos de todos os primeiros-ministros desde então se recusaram a mexer nessa ferida, que ficou infeccionando lentamente.

Em 2019, o socialista Pedro Sánchez foi eleito primeiro-ministro da Espanha e, finalmente, decidiu remover os restos mortais de Franco do local, alegando que “nenhuma democracia pode permitir monumentos que exaltem uma ditadura”. Mesmo com os protestos da família de Franco, que alegou só aceitar a transferência se seus restos fossem enterrados na sua cripta na Catedral de Almudena, no centro de Madri, e dos monges beneditinos responsáveis pela administração da basílica, que tinham gasto somas consideráveis ao longo dos anos com a restauração e manutenção do mausoléu e exigiam ao menos que uma missa fosse realizada antes da exumação, o governo decidiu ir adiante.

Numa cerimônia transmitida ao vivo pela TV, o caixão contendo o corpo de Franco foi retirado de sua sepultura e carregado por seus familiares para a praça diante da basílica, sem qualquer solenidade oficial ou religiosa. Diante de algumas poucas autoridades, o prior abençoou o caixão e, junto com a família, entoou um grito de despedida: “¡Viva España!”.

Partidos de direita protestaram, acusando o governo de “profanar sepulturas” e “ressuscitar ódios”, e acusaram o primeiro-ministro de utilizar o expediente para tirar a atenção do público para seu desempenho pífio na gestão da economia do país e os protestos separatistas na Catalunha, enquanto os de esquerda diziam que relocar o local de descanso do ditador “não era suficiente”, exigindo que o governo exumasse as mais de duas mil valas comuns onde jazem combatentes republicanos da guerra civil.

Por fim, os restos de Franco foram colocados num helicóptero e levados até o cemitério de Mingorrubio, na periferia de Madri, onde foram depositados numa cripta privada, ao lado de sua mulher, Carmen Polo. Durante a cerimônia, o sacerdote Ramón Tejero – filho de Antonio Tejero, um militante responsável por uma tentativa de golpe em 1981 – conduziu uma missa, na qual chamou Franco de “meu general” e o louvou por “seguir a causa da justiça ao longo de sua vida”. Já o primeiro-ministro Sánchez fez um discurso em que afirmou que uma infâmia havia sido reparada, “uma anomalia numa democracia europeia como a espanhola: a exaltação da figura de um ditador num mausoléu construído durante a ditadura, pela ditadura, para a glória da ditadura”.

Enquanto isso, familiares das vítimas da Guerra Civil continuam esperando pela identificação dos outros cadáveres, muitos deles enterrados anonimamente no mausoléu do Vale dos Caídos.

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