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Ensaio

Domenico de Masi, o reciclador de clichês intelectuais

O italiano Domenico de Masi (Foto: Arquivo Gazeta do Povo)
O italiano Domenico de Masi (Foto: Arquivo Gazeta do Povo) (Foto: )

Com seu 'Alfabeto da Sociedade Desorientada', publicado em 2015, mas já objeto frequente nas prateleiras dos chefes de Departamento Pessoal/ Recursos Humanos de qualquer empresa corporativa do nosso Febeapá (Festival de Besteiras que Assolam o País, uma cortesia de Stanislau Ponte Preta), o italiano Domenico De Masi quer nos ajudar a entender o mundo complexo e interdependente onde vivemos, mas acaba complicando ainda mais algo que sempre foi simples para ser compreendido.

O livro é uma espécie de summa theologica das pesquisas e dos livros anteriores de De Masi – entre eles, os best-sellers 'O Ócio Criativo' (2000), 'O futuro do trabalho' (2001) e 'O futuro chegou' (2014). Porém, desta vez, ele reciclou suas ideias de uma maneira mais esquemática e supostamente mais divertida. Partindo de cada letra do alfabeto ocidental, o sociólogo escolheu 26 temas insólitos sobre como podemos entender melhor o tempo presente, entre eles “aforismos”, “beleza”, “criatividade”, “desorientação”, “Fausto” e “Quixote”.

No verbete “aforismos”, De Masi mostra bem a sua cultura geral. Faz as citações precisas, cita os nomes que um CEO deve reconhecer para não passar vergonha na conversa do cocktail da empresa, dá alguns exemplos históricos vagos, mas o suficiente para o leitor saber qual é o assunto a ser tratado. Contudo, ao comparar a arte do aforismo (representada por gigantes como La Rochefoucauld, Pascal, Karl Kraus e Gómez Dávila) com a precariedade linguística que há na elaboração de um tuíte, afirmando que este último simbolizaria a comunicação dos nossos dias, não há como negar a estupidez do italiano ao praticar, semelhante a um maníaco, o anacronismo histórico igual a um artifício para justificar a sua idolatria pela ideologia favorita dos seus colegas bien-pensants: o progressismo.

Defesa do esteticismo

Esta cegueira voluntária o faz cometer equívocos assustadores. É o caso da sua defensa do esteticismo como uma forma ideal de se viver na democracia contemporânea. Para De Masi, a “beleza” ainda está muito restrita aos artistas e alguns privilegiados que podem usufruí-la ou então até mesmo praticá-la. Ela só conseguirá “salvar o mundo” se for popularizada e divulgada para os pobres e desvalidos.

Assim, seu modelo para redescobri-la seria, entre tantos outros casos espalhados nesse mundo escolhido por Deus, el Sistema Abreu, a organização venezuelana vislumbrada por Jose Antonio Abreu em 1975 para ajudar a vida de crianças e jovens que estão completamente sem rumo no cotidiano violento típico dos países latino-americanos.

Na visão do sociólogo italiano, as orquestras criadas por esse projeto “é uma das maiores alegrias que podemos nos proporcionar”, mesmo esquecendo que, na prática, ela deixou de ser há muito tempo uma mera iniciativa comunitária e se transformou em um corporação cultural composta por 350 mil crianças e jovens que giram ao redor de noventa núcleos.

De Masi descreve com empolgação que “o projeto vai se estendendo como uma mancha de óleo em toda a América Latina e no resto do mundo, da Escócia a Portugal, da Alemanha à Áustria, dos Estados Unidos à Nova Zelândia”. Essa “mancha humana” se dissolveria numa mistura instigante entre “imaginação e concretude, emoção e regra”, características centrais no trabalho de De Masi para aquilo que ele chama de “sociedade pós-industrial” alcance enfim o seu modelo de “utopia orgânica”.

Aparentemente, el sistema Abreu realmente seria toda essa maravilha prevista acima. Contudo, a realidade mostra que este tipo de beleza jamais salvará o mundo – especialmente quando reconhecemos que boa parte do seu sucesso se deve ao fato de ter sido patrocinado com dinheiro público, desde a sua fundação, o que permitiu posteriormente, graças ao governo de ninguém menos que Hugo Chávez, um crescimento exponencial que influenciaria depois lugares no Brasil como, por exemplo, a Orquestra Sinfônica Juvenil da Bahia, dirigida por Ricardo Castro.

Mesmo assim, De Masi insiste que a música sinfônica, antes reservada à “tradição aristocrática e burguesa”, torna-se, na iniciativa pedagógica de Abreu, um “instrumento de educação dos pobres para um viver civilizado baseado na imaginação do indivíduo, na cordialidade da orquestra, na concretude da disciplina, na beleza da arte. O resultado é o resgate econômico através do amadurecimento humanista”.

Não, signore De Masi: por mais que se escreva essas belas palavras, o único resultado possível aqui é a pura hipocrisia, pois o sr. deliberadamente esconde ao leitor de que o tal Sistema Abreu só deve o seu sucesso e a sua eficácia graças ao financiamento de uma tirania que ainda está a destruir a Venezuela. Sobre este pequeno detalhe, o italiano não emite um único suspiro – o que é um indício de alguma ausência de caráter.

Criatividade e ócio

Essa sensação piora quando De Masi começa a discorrer sobre o assunto que o fez ser um “especialista”: as relações entre a criatividade e o ócio. Na sociedade pós-humanista, o principal ativo do homem não será mais o trabalho, a religião, o conhecimento – mas sim a criatividade.

De uma forma bem vaga, o italiano elucida que, na sua perspectiva, o ato criativo é o que nos resta, especialmente nas organizações, pois ele “não consiste tanto em induzir as pessoas concretas a ser mais imaginativas ou as pessoas imaginativas a ser mais concretas graças a técnicas maiêuticas de todo tipo, mais custosas do que eficazes.

Produzir criatividade nas organizações consiste em formar sábias misturas de pessoas imaginativas e pessoas concretas, cada uma fiel à própria vocação natural: consiste em criar um clima de recíproca tolerância e estima; em tornar esse clima entusiasmante e incandescente graças a uma missão compartilhada e a uma liderança carismática”.

Aqui entra o tal do “ócio criativo” – descrito por De Masi por algo que não tem nada a ver com:

a indolência, a preguiça, a falta de empenho, a ausência de atividade até tornar o dia vazio. Sempre pensei que o dolce far niente nada tem de doce, e só de pensar nele sinto tédio e até náusea. Por ócio criativo entendo aquele estado de graça que se alcança quando se faz algo que, ao mesmo tempo, nos dá a sensação de trabalhar, de estudar e de nos divertirmos. Algo com que, simultaneamente, produzimos riqueza, aprendizagem e alegria. Uma sensação de agradável altivez que acende a nossa criatividade e nos faz sentir plenamente humanos. É o estado de ânimo que percebe o artista quando está totalmente tomado pela sua obra-prima, a criança quando constrói seu castelo de areia, o líder quando dirige o seu team bem montado para uma meta inovadora, uma dona de casa quando aperfeiçoa e otimiza a gestão doméstica com eficiência e amor, o cientista quando persegue com método e tenacidade a sua hipótese, o político quando elabora uma nova e feliz organização civil para a sua comunidade.

Tudo isso parece lindo de morrer. E é de fato. O “ócio criativo” de Domenico De Masi não passa de uma instrumentalização do verdadeiro ócio, o otium, o mesmo descrito por Josef Pieper (que, aliás, jamais é citado nessas divagações do italiano) como aquele ritual explicitamente religioso em que o ser humano se põe diante da contemplação da maravilha do mundo – e chega à conclusão de que há uma ordem no meio desse caos que parece nos dominar. O que o sociólogo italiano propõe é um ócio cuja única função é maximizar o tempo para que as corporações se aproveitem disso conforme os seus desejos de manobrar a consciência de cada funcionário. É um novo tipo de escravidão – mas, desta vez, com um alvo bem subliminar: a nossa vida interior.

Não à toa que De Masi explicita logo depois que “as organizações, se quiserem valorizar a criatividade dos seus funcionários, não têm outra escolha: incrementar a sua produção de ideias significa refinar cada vez mais a sua capacidade de saborear o seu tempo livre, o luxo da pausa, o ócio elevado a arte”. O que antes era uma maneira do homem reconhecer a unidade transcendental entre o Bom, o Belo e o Verdadeiro, agora é apenas mais uma técnica corporativa para estimular o esteticismo deformado na alma do cidadão que vive na “sociedade pós-industrial”.

Mundo desorientado

Isto explica o motivo de De Masi querer orientar o nosso mundo “desorientado”. Para ele, a única forma de controlar o caos da nossa existência é com a criação de um paradigma que capte a “elegância da mente”. Contudo, quem disse que a realidade se preocupa com esse tipo de refinamento? Quase nunca, como podemos perceber no nosso dia-a-dia.

Mas ele insiste no otimismo progressista à la Pangloss ao afirmar que “a nossa desorientação deriva da incapacidade de traçar as coordenadas do nosso presente e decidir com lucidez as abordagens do futuro com base num modelo construído com método”.

São essas “inegáveis certezas” que nos dão, segundo ele, a orientação oriunda da “cultura da sabedoria e da alegria da beleza”, as duas coordenadas que “o mundo clássico – de Sócrates a Sêneca – cultivou com toda a sua prodigiosa criatividade e que ainda hoje permitem traçar um bom itinerário para quem se aventura na pós-modernidade”.

Essa esperança na “cultura da sabedoria” e na “alegria da beleza” – características marcantes de um estoicismo típico de quem segue os passos de um Lucrécio, com um materialismo hedonista fundamentado na “natureza das coisas” – transforma-se em algo marcadamente pervertido quando o sociólogo passa a refletir sobre dois personagens simbólicos deste mundo “desorientado”: Fausto e Dom Quixote.

No primeiro caso, De Masi começa com a vida e a obra de Mary Shelley, a criadora do famoso monstro que domina as páginas do pioneiro romance de horror Frankenstein, publicado em 1818 e com um subtítulo mais do que adequado para as intenções futurísticas do italiano – “O Prometeu Moderno”.

A partir daí, ele faz um grande panorama sobre o triunfo inevitável do progresso humano e tecnológico, misturando no mesmo balaio uma defesa do marxismo, do automatismo, ludismo, do feminismo, sem distinguir um do outro.

Todos esses termos são descritos como se fosse uma lista de mercearia, mas sempre convergem para o mesmo fim: o elogio da revolta contra a estrutura objetiva da realidade e o da rebelião política que incentivará nada mais, nada menos que as revoluções permanentes, destruidoras do espírito humano.

Erro de interpretação de texto

Para De Masi, o Fausto que o interessa não é o da lenda alemã do medievo, divulgada como um alerta para as mentes protestantes do século XVI, muito menos o que foi criado por Christopher Marlowe.

Ele se apropria do Fausto moldado por esse grande humanista que foi Johann Wolfgang Goethe que, no grande épico escrito em duas partes separadas por sessenta anos de uma vida bem movimentada, resolveu salvar esse pobre-diabo o qual resolveu fazer um pacto com Mefistófeles.

Se, nas versões anteriores, Fausto estava irremediavelmente condenado, Goethe o vê como um espírito digno de pena, a ser redimido pelo “eterno feminino” porque, afinal de contas, ele estimulou o progresso do conhecimento. Obviamente, De Masi compra esta última versão com inesgotável prazer. Na sua perspectiva esteticista, a lenda de Fausto é o início de um “novo modelo utópico-pedagógico concebido na perspectiva de uma forma inédita de solidariedade coletiva”.

Essa ânsia por divulgar uma utopia que celebre a “elegância da mente” vai além quando o sociólogo começa a meditar sobre o papel de Dom Quixote, a maior criação de Miguel de Cervantes, na nossa sociedade pós-industrial. Como um bom reciclador de clichês intelectuais, De Masi defende o Quixote como se fosse o representante do ideal inatingível, do sonho que é lindo demais para não se transformar em uma perfeita realidade.

Contudo, isto nunca foi a intenção de Cervantes. Quem ler as mil páginas dos dois volumes que compõem o romance, sabe que o espanhol criticava, com intenso sarcasmo, o descolamento do real sofrido pelo “cavaleiro da triste figura”. Porém os progressistas se apossaram do Quixote como se ele fosse o emblema de uma utopia a ser imposta na nossa sociedade sem nenhum questionamento e com a máxima de coerção.

O autor de 'A Emoção e a Regra' aprofunda esse erro de interpretação de texto – e acentua ainda mais o equívoco ao elogiar também a transformação do imortal escudeiro Sancho Pança, que, no final do livro, se deixa contaminar pela loucura do fidalgo que o comanda e passa a ser um fiel discípulo da insanidade quixotesca.

Tanto no caso de Fausto como no do personagem de Cervantes, temos aqui os símbolos marcantes de um mundo desorientado onde o próprio De Masi parece querer ser um, depois o outro, mas no final acaba sendo apenas o novo Sancho Pança.

Os outros verbetes de 'Alfabeto da Sociedade Desorientada' continuam nessa trilha – e, a partir daí, a leitura deste livro torna-se uma das coisas mais excruciantemente tediosas que se pode pedir a alguém que ainda tem algum tempo a perder nesta vida.

Como eu não tenho mais este tipo de paciência, só espero que tenha feito tudo isso com o objetivo de nos ajudar a viver com alguma dignidade. Porém, o resultado concreto foi que apenas contribuiu para o crescimento do nosso pandemônio moral, naquela falsa “elegância da mente” que sempre o tornará, conforme o progresso do tempo, cada vez mais tolo.

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.

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