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Há uma crise de saúde mental nas crianças e adolescentes americanos, possivelmente com paralelos no Brasil. Alguns estudiosos culpam as redes sociais, em especial o Instagram. Mas uma equipe de estudiosos propôs, em artigo publicado neste ano no Journal of Pediatrics (revista de pediatria que existe desde 1932 e é ligada à Associação Pediátrica Europeia), que há um fenômeno mais geral, que perdura há cinco ou seis décadas, de deterioração de bem-estar psicológico dos jovens. A causa principal disso seria “um declínio ao longo das décadas nas oportunidades para crianças e adolescentes brincarem, circularem e participarem de atividades independentes da supervisão ou controle adulto”. Em outras palavras, a superproteção está prejudicando os jovens.
Os autores, Peter Gray (professor de psicologia e neurociência), David Lancy (antropologia) e David Bjorklund (psicologia), resumiram os indícios disponíveis para apoiar a tese e elaboraram uma explicação teórica baseada na teoria da evolução.
Idosos têm razão sobre suas infâncias mais ativas
Os cientistas começam por dispersar uma suspeita comum: que os mais velhos estariam romantizando suas infâncias ao dizer que foram mais felizes que as crianças de hoje. É verdade que existe um viés de romantizar o passado. Além disso, a neurociência sabe que, toda vez que um indivíduo recobra uma memória muito antiga, ela é alterada. Mas os vovôs e vovós estão corretos: as evidências apoiam o que dizem neste caso.
Uma linha que aponta para isso vem da imprensa: a análise de centenas de artigos e colunas de aconselhamento no último século mostrou que era senso comum, antigamente, que as crianças passassem muito tempo com seus amiguinhos, longe dos adultos, caminhando ou pedalando para a escola, sozinhas ou acompanhadas, desde os cinco anos de idade. Desde a tenra idade as crianças do começo do século XX ajudavam mais com as tarefas de casa, e aos 11 ou 12 anos arrumavam empregos de meio período, como de entregador de jornais ou babá, sem supervisão de adultos.
A partir dos anos 1960, com um impulsionamento nos anos 1980, “o entendimento implícito das crianças se transformou, de considerá-las competentes, responsáveis e resilientes, para o oposto”: os conselheiros nos jornais passaram a enfatizaram a necessidade de supervisão e proteção. As crianças ficavam cada vez menos livres para brincar e contribuir para a família e a comunidade.
Os resultados também valem para a Europa. Na Inglaterra, crianças com permissão dos pais para caminhar sozinhas da escola para casa eram 86% em 1971 e apenas 25% em 2010. A permissão para usar ônibus sozinhas caiu no mesmo período de 48% para 12%.
Em vez de ajudar, a escola piorou a situação de dependência
O tempo passado na escola também aumentou no último século. Enquanto se sabe que anos adicionais de escola aumentam o QI médio da população, como mostrou uma política implementada na Noruega na década de 1960, o que faz bem para a inteligência pode não ser muito bom para a saúde mental. Um resultado surpreendente dos fechamentos de escolas durante a pandemia de Covid-19 foi que o índice de suicídios dos jovens caiu enquanto estavam fora das escolas e voltou a subir quando elas foram reabertas. “O suicídio de adolescentes despencou em março de 2020 e se manteve baixo durante o verão [do hemisfério norte] antes de subir no outono de 2020, quando muitas escolas voltaram para o ensino presencial”, concluiu o economista Benjamin Hansen com dois colegas em um artigo publicado há um ano.
Nos Estados Unidos, o ano letivo aumentou cinco semanas entre 1950 e 2010. O dever de casa, que antes era incomum nos primeiros anos de escola, agora é com frequência obrigatório inclusive na pré-escola. Até o tempo de recreio foi reduzido. Entre 1981 e 2003, a escola e o dever de casa passaram a consumir 11,4 horas a mais do tempo semanal de uma criança americana. É como se um adulto ganhasse um dia e meio a mais de trabalho em sua semana. Que impacto isso teria na saúde mental?
Padrão de piora no bem-estar psicológico está claro
A psicologia nasceu no século XX. Desde que se começou a mensurar o estado psicológico das crianças, a cada geração ele tem piorado. A ansiedade medida a partir do mesmo método aumentou a tal ponto que, no fim dos anos 1980, 85% das crianças tinham mais ansiedade que uma criança média de 1956. Uma piora similar foi demonstrada para estudantes do Ensino Médio entre 1950 e 2002. Os transtornos diagnosticáveis de ansiedade e depressão na adolescência explodiram entre cinco e oito vezes na segunda metade do século — os suicídios aumentaram três vezes e meia. Estima-se que hoje cerca de quatro em cada 10 adolescentes vivem com sentimentos persistentes de tristeza e falta de esperança.
Brincar, assim como se sujar, faz bem
Uma grande ironia no estudo das causas de alergias, por exemplo, é que a principal causa da alergia a amendoim é a falta de contato com o amendoim. Ou seja, é a paranoia de alguns pais sobre os perigos do amendoim que acaba tornando o amendoim perigoso. Descobertas como esta levaram a anos de propaganda de marcas de sabão em pó que estimulavam os pais a deixarem as crianças se sujar.
Analogamente, expor as crianças ao contato social na forma de brincadeiras não estruturadas e espontâneas é o que cria indivíduos mais resilientes e felizes. Gray e seus colegas comentam estudos que mostram que “a brincadeira é a fonte direta da felicidade das crianças”. Pesquisas mostram que restaurar o tempo de recreio por si só já melhora o bem-estar psicológico delas. Uma revisão de 12 estudos, citada pelos autores, concluiu que elas próprias entendem a brincadeira como algo que ocorre na companhia de outras crianças, com pouco ou nenhum envolvimento de adultos. A mera presença dos adultos tem um efeito inibidor, que sugere controle.
Não só a brincadeira, mas outras atividades independentes são correlacionadas ao bem-estar, principalmente a liberdade de transitar sozinhas ou acompanhadas de amiguinhos entre escola e casa. Adolescentes com empregos em meio período também se sentem melhor. Os psicólogos conceitualizam esses resultados como o desenvolvimento de um senso de controle do próprio destino. Quando o tempo é estruturado pela própria criança, ela desenvolve melhor a capacidade de tomar decisões, o autocontrole emocional e as habilidades sociais.
Até mesmo a brincadeira mais arriscada faz bem: “quando as crianças deliberadamente se põem em situações moderadamente assustadoras (tais como subir em árvores altas), isso cria uma proteção contra o desenvolvimento de fobias e reduz a ansiedade futura, porque aumenta a confiança da pessoa de que ela pode lidar efetivamente com emergências”, comentam os autores. Estudos sobre a introspecção de adultos envolvendo suas experiências de infância confirmam a tese.
O que explica isso?
Pode parecer paradoxal para alguns que crianças que se expõem voluntariamente a riscos são mais felizes que aquelas acolchoadas pelos adultos. Além da explicação do efeito benéfico da autodeterminação, os três cientistas oferecem uma hipótese evolutiva. A atividade independente das crianças se encaixa bem nas condições ancestrais em que a espécie humana surgiu, que não são as mesmas que a sociedade moderna e suas facilidades oferecem para o desenvolvimento.
Uma revisão de centenas de estudos etnográficos em sociedades que ainda vivem condições similares às da aurora da humanidade mostra que a infância normal nelas envolve “muita atividade independente, responsabilidade individual, além de exploração e aprendizado de iniciativa própria”.
Assim como há um desencaixe entre essas condições ancestrais e a abundância de alimentos e calorias hoje, que gera o problema da obesidade, o estudo conclui que, atualmente, há um descompasso entre a superproteção oferecida às crianças e as condições ideais em que elas melhor se formariam como seres humanos plenos e felizes.
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