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Edmund Burke (1729-1797) é mundialmente conhecido como o pai do conservadorismo filosófico, sobretudo por suas raras e profundas reflexões em Reflexões Sobre a Revolução na França, sua obra mais famosa. Mas para perceber e entender o “conservadorismo de Burke” é necessário ir mais longe em sua biografia e pensamento, pois eles se confundem e fazem do irlandês uma rara exceção intelectual de seu tempo.
Edmund Burke era filho de Richard Burke (1700-1761) e Mary Burke (1702-1770). Ele nasceu em 1729 em Dublin, na Irlanda. O parlamentar teve três irmãos: Garrett Burke (1725-1770), Juliana Burke (1728-1790) e Richard Burke (1733-1794). A família Burke teria efetiva participação nas ideias morais e sociais de Edmund.
Burke nasceu em uma época de grande ebulição religiosa na Irlanda, causada pela violenta segregação política e social dos católicos frente à Igreja oficial dos britânicos, a Igreja Anglicana. Burke se via numa situação um tanto quanto paradoxal e inusitada, pois era filho de um anglicano convicto ― e ao que tudo indica, Edmund se manteve anglicano como o pai até o fim de sua vida ― com uma irlandesa católica não menos fervorosa.
No entanto, mesmo com um casamento misto ― como era denominado naquela época a união entre católicos e anglicanos ―, não se vê nas biografias especializadas de Edmund Burke nenhum sinal de desavença ou insegurança familiar advindo desse fator em específico. O que nos faz crer que os Burke sempre conviveram pacificamente com a inter-religiosidade de sua casa, com Edmund aprendendo a admirar, como ressalva Russell Kirk (1918-1994) em Edmund Burke: redescobrindo um gênio, o catolicismo de sua mãe, irmã e avós maternos.
Para embolar um tanto mais essa biografia, Burke, de 1737 a 1741, morou com seus avós maternos católicos: Edmund Nagle e Catherine Fitzgerald Nagle, em Ballyduff, perto de Catletown Roche, no condado de Cork. Ao que tudo indica, foi lá que ele aprendeu a amar a Irlanda de maneira visceral e a respeitar de antemão as tradições e crenças dos católicos. Isso cingiu toda a sua vida parlamentar e teorias filosóficas.
Após passar 4 anos com os avós católicos na Irlanda rural, Burke entrou para a escola dos Quakers, um grupo religioso tipicamente britânico que ganhou destaque por seus trabalhos educacionais e posições radicalmente pacifistas e de simplicidade social. Lá ele permaneceu de 1741 a 1743. Em 1744, Burke começou os estudos no Trinity College, em Dublin, de onde saiu com título de Bachelor of arts.
Em 1747, ele começou a escrever Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e da beleza. Em 1748, Burke iniciou sua colaboração, como escritor e editor, no periódico The Reformer. Posteriormente ― de 1765 a 1766 ― também assinaria como editor o The Annual Register.
Após uma rápida vida acadêmica e de atuações no meio literário, crítico e analítico da sociedade do Reino Unido, em 1761 Edmund Burke assumiria seu primeiro cargo diretamente ligado à política de Estado, como secretário particular de Willian Gerard Hamilton (1729-1796), político irlandês. Mas somente em 1766 é que Burke oficialmente alcançaria uma cadeira na Câmara dos Comuns, realizando seu primeiro discurso em 16 de janeiro daquele ano.
Por prudência ensaística, não nos deteremos nos pormenores da sua frondosa atuação política. Apenas destacaremos suas principais lutas parlamentares, como a luta pela emancipação dos católicos no Reino Unido e a censura aos atos tirânicos da East India Company, na Índia, companhia comandada por Warren Hastings, governador geral da Índia de 1774 a 1787. Até o fim de sua atuação parlamentar, Burke tentou sem sucesso o impeachment de Hastings.
Outra bandeira de Burke que vale a pena ser mencionada foi a defesa perspicaz dos colonos americanos, criticando a postura protecionista e tirânica do parlamento inglês frente aos cidadãos ingleses do além mar. Por fim, a análise que mais o destacou até os dias atuais: a crítica filosófica ao pensamento revolucionário dos franceses.
Em 1º de novembro de 1790, Burke publicou Reflexões Sobre a Revolução na França. Em pouco tempo a obra foi traduzida para o francês, alemão e italiano, sendo proibido na Espanha porque a Inquisição julgava que não era bom falar dos atos revolucionários dos franceses, nem mesmo para criticá-los. Segundo um dos seus biógrafos mais proeminentes, o historiador Russell Kirk:
[...] Edmund Burke pôs-se a trabalhar num panfleto extraordinário, que se tornou a obra de filosofia política inglesa mais brilhante e que, por aliar eloquência e sabedoria, não tem equivalente na literatura política de nenhuma língua.
Edmund Burke ficou quase 30 anos na política ativa, fundindo seu intelecto filosófico com a prática pública. Russell Kirk e Harvey Mamfield Jr. concordam em dar a Burke o título de “filósofo em ação”, evidenciando a característica pluriforme de sua atuação que mesclava a teoria acadêmica e a reflexão puramente filosófica à efetividade da prática política.
Edmund Burke morreu em 1797 em Beaconsfield, deixando um legado filosófico adormecido e pouco cultuado até meados do século XX, quando foi paulatinamente sendo redescoberto, principalmente nos Estados Unidos e no próprio Reino Unido.
Os pilares burkeanos da liberdade
Como extensão de sua biografia, devemos citar os três tipos de práticas de liberdade que marcariam para sempre a postura de Edmund Burke frente aos demais filósofos e parlamentares ingleses, se tornando um modelo real para futuros conservadores e liberais até os dias atuais. Podemos chamá-las, inclusive, de “pilares burkeanos”.
1- Liberdade de crença: Burke foi um dos primeiros a defender abertamente os católicos perseguidos no Reino Unido, fazendo coro com os “papistas” ― termo pejorativo usado contra os católicos romanos ― mesmo não professando ele a fé daqueles. Vindo de um lar religiosamente diverso, porém harmônico, ele se questionava por que não poderia uma sociedade viver de forma equilibrada com uma ou mais fés coexistentes.
Burke foi o defensor mais franco dos católicos oprimidos ― e, muitas vezes, dos dissidentes. Ele insistia, ao ver sua influência crescer na Câmara dos Comuns, que os norte-americanos tinham tanto os direitos dos ingleses quanto os usos consagrados que adquiriram ao longo da experiência colonial. Ele se opôs-se firmemente a todas as políticas calculadas para reduzir as liberdades privadas, para centralizar a autoridade na Coroa ou para diminuir as prerrogativas do Parlamento.
Obviamente Burke era fruto de seu tempo e, como tal, defendia a religião estatal como manutenção do caráter cultural do país. Mas, em termos de tolerância política, ele estava quase dois séculos adiantado em relação ao seu tempo. Para Burke, a religião cristã era um arcabouço histórico que trazia em seu DNA a própria civilidade e capacidade de interpretação da realidade, tendo um papel político-social indispensável. Jogar fora uma vertente da fé cristã seria como perder aspectos de nossa própria herança, inviabilizando a possibilidade de reformas necessárias e avanços seguros. Seria como amputar um de nossos membros e fingir que está tudo bem.
2- Liberdade de pensamento: o segundo pilar burkeano trata da completa liberdade de Burke frente aos grupos amotinados que tentavam ― desde aquela época ― sindicalizar as opiniões dos parlamentares. Burke não parecia suscetível à compra de consciências e nem à venda de dignidades. Antes de mais nada, Burke prezava pela sua liberdade de defender pautas a partir dos valores que cultuava.
Ou seja, para Burke, mais importante que montar maiorias era manter seu caráter intacto e não ceder à massificação ideológica. Se a maioria viesse unida à moralidade que praticava, pois bem. Do contrário, seria oposição. O filósofo transitava entre os partidos com muita naturalidade. Para ele não era nada escandaloso ter opinião diversa, nem muito menos indecoroso apostar em sua independência.
Burke era um whig com postura de tory. E, apesar de portar um caráter tory, abarcava o ativismo, a carterinha e a agenda reformista ― naquela época ― típica dos whigs.
Assim o porta-voz dos antigos whigs revigorara os tories. Entretanto, na generosidade e na coragem do antigo torismo, que John Henry Newman definiu como "lealdade às pessoas", Edmund Burke sempre foi tão tory quanto Samuel Johnson.
3- Liberdade de prática política: uma extensão e reafirmação do pilar anterior. Edmund Burke passeava com extrema facilidade por entre os campos ideológicos, sem se deter por compromissos sindicais com nenhum dos ideários. Burke guardava consigo o bastião do livre-pensar e, quando necessário, defendia pautas e ideias que contrariavam frontalmente as pretensões de seu próprio partido.
Não foram poucas as ocasiões que sua eleição à Câmara dos Comuns se via ameaçada por sua independência. Em 1774, nos relata Russell Kirk, os comerciantes de Bristol elegeram Burke como seu representante no Parlamento e, desde o início, tentaram cercá-lo de todos os lados para que defendesse os interesses da classe. Burke disse aos comerciantes que eles podiam tê-lo eleito, mas, uma vez na Câmara, a missão se tornava muito maior e mais abrangente do que qualquer tipo de clubismo político. “Edmund Burke defendeu sem titubear cada um de seus pontos. Era um membro do parlamento por Bristol, não um simples agente de interesses comerciais locais, e servia a Bristol ao servir à nação”, escreve Kirk.
Burke, dessa forma, foi quem inventou a lei natural conservadora da não-adoção de uma cartilha política de ações pré-determinadas, mostrando, por meio de sua prática e pensamento político, a possibilidade de ser independente e ao mesmo tempo leal a valores e instituições basilares.
Tal postura foi amplamente reafirmada na obra The Conservative Mind [A mentalidade conservadora], de Russell Kirk, sendo elencado como um dos esteios da filosofia conservadora em A Política da Prudência, do mesmo autor.
O filósofo em ação
Edmund Burke, como já destacamos, foi um teórico diferente, pois suas teorias filosóficas extrapolaram as nuvens abstratas dos círculos universitários e foram muito além dos panfletos utópicos que circulavam no populacho e dos papiros de gabinetes de marfim que faziam as sanhas dos revolucionários abastados.
Burke, com rara capacidade e simplicidade, uniu dois mundos que raramente se tocavam no auge dos iluminismos: o mundo pragmático e o mundo das ideias. Se Aristóteles, em A Política, conclamava por um pensador que extrapolasse as ideias impalpáveis e refletisse, também, por meio da realidade observável, unindo os dois métodos num só, em Burke parece que tal desejo se fez real de alguma forma. Walter Love afirmava: “Burke normalmente argumentava das circunstâncias para o princípio: ou seja, via as coisas e os homens e, depois, buscava os princípios gerais aplicáveis aos descontentes em geral”.
O imaginário de Burke foi preparado com a realidade crua e posteriormente temperado com a mais alta erudição racional. Primeiramente com seus avós maternos na velha Irlanda e, depois, no Trinity College. Dessa forma, a erudição e a simplicidade cultural das tradições mais basilares ― herdada também dos Quakers ― encontraram-se em algum momento nas reflexões e moralidades do filósofo. Com isso, podemos ver Burke sendo extremamente eloquente e filosófico no Parlamento e em seus escritos, falando de arte, política e costumes com o mais comum dos irlandeses comuns.
O primeiro princípio que se destacou dessa sua capacidade de teorizar na praticidade foi a prudência como fator primordial na política. Vendo as sanhas dos revolucionários que avizinhavam as janelas do Reino Unido ― e outros que já estavam dentro dos muros do Rei ―, a imprudência dos tradicionalistas tories que flertavam com o engrandecimento dos poderes do monarca e o cerceamento das liberdades do parlamento, enfim, vendo que os radicais não dormiam em suas intenções torpes, Burke clamava em seus discursos que a capacidade de conservar os aspectos do bom senso político era a própria capacidade de bem fazer política.
Ao mesmo tempo em que defendia com ardor a liberdade dos americanos de criticarem e terem representatividades no parlamento inglês, avanços nos tratos econômicos e humanísticos na Índia, Burke também dizia ser indispensável manter a consciência da hereditariedade dos costumes, moralidades e versos democráticos daquela terra. Escreveu ele em Reflexões sobre a revolução na França:
[...] nossa Constituição preserva uma unidade na imensa diversidade de suas partes. Temos uma coroa hereditária, uma nobreza hereditária e uma Câmara dos Comuns e um povo herdeiro de privilégios, franquias e liberdades de uma longa linha de ancestrais.
Burke enxergava na história um tipo de conhecimento que é o próprio cimento ético da sociedade, o que chamou de “sabedoria sem reflexão”. Seguindo na mesma esteira de Adam Smith (1723-1790), o irlandês não enxerga na pura razão o projeto e nem uma via de execução de um país próspero e equilibrado. Para Burke, bem como para Smith, essa natureza comum era anterior à razão, isto é, a natureza da prudência e da razoabilidade.
Ele pregava no Parlamento, tal como um pastor no púlpito, que a política precisa ser praticada a partir da virtude reformista, isto é, avançar sim, sem dúvida, mas mantendo as estruturas que foram boas o suficiente para que todos chegassem até aquele patamar. Isso, argumenta o filósofo, é o modelo natural da própria existência humana. Ninguém abandona um joelho porque ele parece velho demais para uma maratona, ninguém demole uma casa por causa de goteiras e nem joga o bebê junto com a água suja da banheira. Para Burke, a sociedade nada mais é do que a extensão natural das nossas relações pessoais e familiares. As instituições tão vangloriadas no trato social por Adam Smith ganha a mesma relevância com Burke.
O irlandês tinha claro em suas reflexões que não era possível pensar o país tal como se pensa um projeto arquitetônico justamente porque as moralidades, tradições e vontades ali envolvidas, além da própria democracia pensada como a aplicação do contraditório no lugar da unanimidade, não permitem que a uniformidade que requer um planejamento centralizado e utópico ganhe efetividade. No próximo tópico veremos a importância dessa concepção em seu pensamento.
Dessa forma, só se pode guardar qualquer tipo de liberdade caso haja um conjunto robusto de éticas e valores que permitam que a própria liberdade não se esvazie em um conjunto de convulsões pseudopolíticas. Era assim que ele via a Revolução Francesa, uma desconstrução civilizacional perpetrada em nome de uma liberdade que era ela mesma a derrubada da liberdade anterior, pertencente a um conjunto histórico.
Reflexões sobre a revolução
Edmund Burke com certeza foi o mais eloquente crítico da Revolução Francesa. Sua crítica vai muito além de um nacionalismo abobalhado, um apoio tardio à monarquia de Luís XVI ou um reacionarismo fedendo a formol. Por muito tempo ele foi considerado um reacionário de primeira ordem, fazendo a sua crítica ser tratada com certa irrelevância nos países influenciados pelos dogmas políticos do iluminismo francês ― incluindo o Brasil, obviamente. No entanto, se uma mente sincera se debruçar sobre o escrito Reflexões Sobre a Revolução na França, logo perceberá uma consistência filosófica real, críticas sinceras a sinceros problemas que a revolução da ansiedade social perpetrava na sociedade francesa.
Escrito no auge da exaltação, as Reflexões sobre a Revolução ardem com toda a ira e com toda a angústia de um profeta que viu as tradições da cristandade e o tecido da sociedade civil se dissolverem diante de seus olhos. No entanto, suas palavras estão impregnadas de acuidade de observação, a marca do estadista prático. Este livro é magnificamente polêmico é um dos tratados políticos mais influentes da história do mundo.
Nada como um dia após o outro. As críticas às posturas revolucionárias, seguidas da análise do método revolucionário, legaram a Burke o posto do mais eloquente antirrevolucionário de seu tempo. Não à toa, ele se transformou popularmente no “pai do conservadorismo”, pensamento político esparso até então, daqueles que viam no progressismo exacerbado e acéfalo, assim como no reacionarismo irreal e quimérico, um suicídio social declarado.
Podemos, assim, resumir em três partes o pensamento de Burke sobre a mentalidade revolucionária ― o que seria o primeiro esboço filosoficamente ordenado e prático do pensamento politicamente conservador.
Primeiramente, para Burke a gênese do mal revolucionário estava nos “especuladores”, os teóricos de sociedades perfeitas. Burke, assim como seu amigo Adam Smith, contrariava as teses de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Para ambos, a sociedade não é passível de uma construção racional simplesmente porque não é a razão o elemento que une os indivíduos e mantêm as instituições. A própria crença de que a política é passível de modelação a partir de teorias abstratas, para Burke, não poderia dar em outro lugar que não no absurdo filosófico e na tirania social. Tentar construir uma sociedade abandonando todos os encargos tradicionais, religiosos e de costumes é como tentar construir uma casa a partir do telhado sem ter sequer um alicerce postado.
Dizia Burke:
Nenhum dos sofistas de seu país poderá inventar algo mais bem adaptado a preservar uma liberdade racional e viril do que o caminho que adotamos, procurando seguir a natureza ao invés de nossas especulações, nossos sentimentos ao invés de nossas invenções, e fazendo deles a salvaguarda e o depósito de nossos direitos e privilégios.
No entanto, argumentava Burke, quando o impossível passa a ser tentado, logo os absurdos começam a ser instrumentos dessa empreitada. E aqui vem a segunda parte das observações de Burke: sem demora os franceses começaram a destruir física, histórica e filosoficamente toda herança francesa que antecedia o movimento do iluminismo.
Havia uma forte crença de que os intelectuais progressistas haviam abarcado toda amarração racional e instrumentária necessária para dominar e criar sociedades, fazendo de toda herança histórica meras quinquilharias e lixos no sótão da sociedade. Os revolucionários, impulsionados pelos sonhos utópicos despejados pelos pensadores iluministas, viam na dominação do Estado o meio de imposição da razão e da justiça abstrata de seus pensadores aos demais. Nem é preciso dizer que tudo isso logo descambou em morticínios crescentes e aterradores.
Assustado, Burke questionava:
“Eram necessários todos esses horrores? Eram o resultado inevitável do combate desesperado de patriotas resolutos que, para alcançar a margem de uma liberdade tranquila e próspera, não tiveram outra escolha senão o tumulto e o sangue?”
Edmund Burke via na própria constituição soberba da revolução, isto é, uma criação racional a partir do nada, um mal intrínseco que ignorava a maior obviedade observável na sociedade: estamos e nascemos num ambiente que nos antecede e que não chegou até ali à toa ou por sorte.
A terceira parte da crítica de Burke é sobre a ilusão óbvia da missão revolucionária. A política guarda em si mesma a impossibilidade racional de um planejamento central. Se a sociedade é filha da livre interação dos indivíduos, naturalmente diferentes em suas vontades, práticas e crenças, como poderia uma ou várias mentes aglutinarem em uma teoria política todos os aspectos humanísticos, adiantando soluções e prevendo situações problemáticas de uma comunidade?
Para Burke, a política é a via do possível frente à realidade futura não completamente observável. Só pode o homem lidar com as situações que se apresentam tendo porte dos instrumentos e conhecimentos que a própria sociedade lhe oferece. Burke chama isso de “preconceitos”, algo que obviamente não tem a mesma conotação que ostentamos em nossa sociedade. Os preconceitos, para Burke, são as tradições e sabedorias transformadas em reflexos automáticos dos indivíduos frente as aporias sociais e morais do cotidiano.
A sociedade é uma conjunção de passado, presente e futuro ― de “nossos corações, nossos sepulcros e nossos altares” ― que guarda em seu seio o elemento da imprevisibilidade de seus desígnios maiores. Se a sociedade não é projetável, então também não é passível dos especuladores e suas cartilhas de mecânica revolucionária. Se não é possível que se crie uma sociedade utópica, a tirania e os morticínios se tornam injustificáveis, pois os ovos quebrados nunca verterão em omeletes efetivos.
Burke, por fim, demonstra do começo ao fim o porquê de os projetos totalizantes dos revolucionários não passarem de embustes filosóficos e o início do inferno social.
O pai do conservadorismo
Para finalizar, cabe salientar o porquê do título de “pai do conservadorismo político” dado a Burke.
Primeiramente, Burke nunca se considerou conservador e nem era prática usar o termo em sua época. Tal alcunha só começou a se popularizar como denominação de crenças políticas no final do século XIX e início do XX ― segundo Norberto Bobbio em seu Dicionário de Política. Tal adjetivo, por si mesmo, é extremamente relativo justamente pelo conservadorismo abdicar de manuais e cartilhas ideológicas. Prefiro chamar Adam Smith de “pai do conservadorismo político” pois considero o escocês o primeiro a dar os alicerces filosóficos estruturados dos valores sociais que hoje chamamos de “conservadorismo”.
No entanto, é indiscutível que foi Burke quem primeiro encarnou, de uma só vez, a prática e a filosofia política que hoje denominamos de práticas e pensamentos conservadores. Burke é pai do conservadorismo, assim como popularmente se diz que é pai quem cria e não quem gera. No entanto, não entendam o “ser padrasto” como demérito a Burke, pois ainda que não tenha sido ele quem gestou os primeiro alicerces do pensamento conservador, foi ele quem primeiro os defendeu efetivamente numa prática pública e ordenada, assim como quem primeiro teorizou os males daquilo que, desde então, sãos os antagonistas primordiais do conservadorismo: a mentalidade revolucionária que relativiza dignidades e heranças e o progressismo acéfalo que atropela moralidades e constroem utopias inalcançáveis.
Dessa maneira, de forma alguma é errado chamar Burke de pai do conservadorismo. O próprio pensamento conservador permite tais edições e asserções em suas linhas históricas. E, se me permitem mais uma consideração, julgo que ele também é o patrono da sensatez política e da liberdade de pensamento na modernidade. Um dos poucos homens que pisaram na era iluminista e que conseguiram aliar prática e teoria, lealdade e independência, altivez e prudência, mostrando na prática o que é ser um conservador: um indivíduo independente o suficiente para ser leal aos valores que formaram a espinha histórica de seu povo.
Um homem prudente o bastante para criticar com veemência os erros que colocam em risco os bens inestimáveis da civilização a que ele pertence.