Há décadas gurus espirituais, pensadores pós-modernos e charlatães pseudo intelectuais em geral têm sido alvo de críticas de filósofos e cientistas por produzirem frases pseudo profundas sem sentido. O filósofo Daniel Dennett cunhou o termo “deepity” (algo como “profunditude”) para rotular o problema. O cientista Richard Dawkins ridicularizou feministas que alegam que a física dos fluidos fez menos progresso que a dos sólidos pois os fluidos representam a fisiologia feminina e, os sólidos, o órgão erétil masculino. Já o filósofo Harry Frankfurt lançou um livro com uma definição técnica desse tipo de linguagem enganosa: Sobre o Papo Furado (em tradução livre). Agora, um grande estudo publicado na revista Nature Human Behaviour envolvendo mais de 10 mil pessoas em 24 países (Brasil incluso) complexifica a questão: as pessoas são mais propensas a aceitar o papo furado se ele vier de cientistas.
O estudo, com primeira autoria de Suzanne Hoogeveen, do Departamento de Psicologia da Universidade de Amsterdã, usou um velho conhecido de debates na internet: um gerador automático de papo furado (bullshit). O usado no estudo foi produzido pelo programador Seb Pearce. No Brasil, temos diferentes versões do Gerador de Lero-Lero. Eis um exemplo de frase gerada por esses algoritmos: “A consciência consiste em frequências de energia quântica. ‘Quantum’ significa um chamado ao irrestrito. Nós existimos na forma de elétrons supercarregados”.
Cientista vs. Guru
Hoogeveen e os outros pesquisadores envolvidos argumentam que é inevitável que dependamos da confiança em autoridades. A maioria de nós é incapaz de explicar como Einstein chegou à equação E=mc², mas confiamos na inteligência dele e no consenso produzido após o debate da questão na física. Mas existe uma diferença entre não compreender uma proposição por falta de conhecimentos que são pré-requisitos e não compreender uma proposição porque ela é intrinsecamente incompreensível. No último caso, a confiança em autoridades aumenta o obscurantismo no mundo.
A grande novidade do estudo é justamente que a figura do cientista carrega hoje uma maior carga de autoridade que a figura do guru espiritual. Para ambos, os dez mil participantes deram notas para a importância e credibilidade das mensagens. As duas medidas se mostraram altamente correlacionadas positivamente entre si em ambos os casos. O efeito que melhor explica os resultados é que a credibilidade do cientista ao emitir o papo furado foi considerada maior que a do guru.
Os cientistas também avaliaram se a religiosidade dos receptores da mensagem disparatada seria um fator que influencia a sua aceitação da mensagem atribuída ao guru ou ao cientista. A razão de terem escolhido guru espiritual em vez de líder religioso foi a diversidade cultural dos 24 países amostrados, já que isso criaria um viés de aceitação, por exemplo, se fosse uma mensagem atribuída a um bispo e a maioria de um país fosse católica. De fato, a religiosidade foi preditiva para a credibilidade atribuída ao guru, mas não para uma atribuição de menor credibilidade ao cientista.
No caso do Brasil, o estudo mostra que o papo furado do cientista foi considerado mais credível que o do guru, independente da religiosidade dos participantes. Os indivíduos mais religiosos entre os brasileiros consideram o cientista e o guru igualmente confiáveis em seus disparates, sem colocar o guru acima do cientista.
A análise se aprofundou também no tempo de processamento e memória do papo furado: os participantes passavam mais tempo tentando decifrar a “profunditude” do que era atribuído ao cientista do que ao guru. O Brasil ficou no topo dos países em que as pessoas passavam mais tempo processando o papo furado, atrás somente da Croácia, China e Espanha. Foram incluídos 402 brasileiros. Quanto à memória, os participantes não apresentaram diferença na capacidade de se lembrarem do que foi dito pelas duas autoridades.
O estudo vira de ponta-cabeça a percepção crescente de que a solução para o problema da desinformação é ter mais “fontes confiáveis”. Afinal, as pessoas tendem a acreditar no que for atribuído a uma autoridade científica independente do conteúdo da mensagem. Se o conteúdo da mensagem é irrelevante, a ênfase em “fontes confiáveis” não serve para combater a desinformação, que diz respeito ao conteúdo.
Os resultados do estudo foram corroborados por uma análise adicional em um banco de dados de mais de 117 mil pessoas em 143 países.
Cientificismo
O erro da bajulação da ciência e dos cientistas é conhecido como cientificismo. Em um livro a respeito, a filósofa pragmatista britânica Susan Haack, que leciona na Universidade de Miami, dá seis sinais diagnósticos para o cientificismo:
- O uso de termos como “ciência” e “científico” como automaticamente honrosos. O problema, aqui, é que existe ciência ruim, ser científico não é garantia de que foi bem feito ou é verdadeiro.
- Adornos científicos adotados de forma inapropriada. Aqui, usam-se práticas comuns na ciência, como tabelas e equações, para dar um ar de respeitabilidade a algo que talvez não seja respeitável. Por exemplo, os ativistas identitários buscam alterar a definição de racismo com a “fórmula” racismo = preconceito + poder. Há, também, muito uso inadequado de gráficos no jornalismo e na publicidade.
- Preocupação com separar ciência do que não é ciência. Aqui, Haack suspeita que quem dá ênfase demais a distinguir o científico do não-científico está presumindo que o não-científico é necessariamente pior ou falso.
- A busca por um único “método científico”. Diferentes conjuntos de regras já foram propostos para tentar descrever como agem os cientistas ao produzir conhecimento. Nenhum deles é sem controvérsia. Para Haack, não há uma receita de bolo infalível para fazer ciência, depende da área. O que vale na biologia molecular pode não valer na astrofísica.
- Procurar nas ciências por respostas além de seu escopo. Por exemplo, quem busca em artigos científicos dados de consequências de políticas públicas, para afirmar que aquelas com menos consequências negativas são necessariamente preferíveis. Ocorre que essa solução “científica” pode ser uma violação a um princípio de liberdade individual. Essas questões envolvem ética, pensamento político, e não podem ser respondidas só pela análise científica de dados.
- Denegrir o não-científico. Esta é a outra face de bajular a ciência e os cientistas: desvalorizar conhecimentos e práticas produzidas por métodos que não são científicos, como o debate filosófico, a culinária, a arte, a jurisprudência etc.
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