Vaddey Ratner não teve uma vida simples. Ainda criança, viu o Khmer Vermelho tomar o poder no Camboja. E não só. Ela sobreviveu aos quatro anos seguintes, e isso é um feito impressionante – nesse período, cerca de um terço da população do país (um número estimado entre 1 e 2 milhões de pessoas) foi morta.
No livro "À Sombra da Figueira" (360 páginas, Geração Editorial. Leia no fim deste texto um trecho do livro), Ratner narra os horrores do período de revolução do país, transformando sua própria história em ficção. Ela é descendente da família real, deposta em 1970 em um golpe que estabeleceu a República Khmer, um regime supostamente democrático. O novo governo, porém, falhou em trazer uma estabilidade para o país, dando espaço para a nova revolução, desta vez ancorada em princípios socialistas. Esta, porém, logo se mostrou mais violenta e ineficiente para lidar com os problemas do país do que a anterior.
Quando o grupo de guerrilha Khmer Vermelho começa sua revolução, Ratner ainda era criança. Por mais que o país não fosse mais monárquico, sua família tinha um padrão de vida elevado, que começa a ser desfeito. A primeira medida da revolução foi esvaziar as cidades, levando toda a população para os campos e a alienando de seus bens. Havia um grande esforço para desestabilizar e desinformar as pessoas, criando um medo constante e impedindo a articulação de forças contrárias.
Depois de passar por esses "centros de distribuição" (no livro, um templo budista adaptado, já que a prática religiosa era então proibida), as pessoas eram levadas para morar com camponeses e trabalhar no cultivo de alimentos (principalmente arroz). Era comum que pessoas falecessem no processo – fome e doenças não tratadas eram causas recorrentes, além dos assassinatos, como foi o caso do pai da protagonista quando foi identificado como príncipe. Esse era o destino das pessoas consideradas inimigas da "Organização".
Durante os quatro anos em que o regime esteve no poder, a sociedade do Camboja viu a família, uma das estruturas sociais mais básicas, se desmantelar – assim como aconteceu na China. As pessoas eram levadas para diferentes regiões do país, sem saber onde estavam seus parentes e sem ter nenhuma maneira de manter contato. Nem o luto pelos mortos era permitido.
"À Sombra da Figueira" tem uma escolha narrativa interessante: a autora manteve a narrativa sob o ponto de vista de uma criança, que acompanha todas essas mudanças sem entender completamente a luta de forças que acontecia ao seu redor. O leitor consegue acompanhar a narrativa ao ver seus pais preocupados, a mudança constante de lugar, a desestabilização da vida como era conhecida para a narradora, e todo o impacto que as perdas e condições extremas causam à personagem. E nos mostra quem nem as crianças eram poupadas das medidas violentas impostas à população.
É importante mencionar também que, apesar do livro ser profundamente inspirado na vida de Ratner, ele é uma obra de ficção. "A história de Raami é, em essência, a minha própria. Eu tinha cinco anos de idade quando, em 17 de abril de 1975, o Khmer Vermelho invadiu a capital do Camboja, Phnom Penh, e declarou um novo governo, um novo modo de vida", conta a autora no posfácio do livro. Ainda assim, o livro não se trata de uma tentativa de recuperar suas próprias memórias do acontecimento, mas sim de criar uma narrativa que conte os horrores vistos por uma criança que viu sua sociedade mudar completamente num período de apenas quatro anos.
É difícil dizer se a história da autora teve um final feliz. De uma família de cerca de 10 pessoas, apenas ela e sua mãe sobreviveram. No final da guerra, encontraram uma missão da ONU, e eventualmente foram levadas como refugiadas para os EUA, onde Ratner mora até hoje.
Já o Khmer Vermelho foi derrubado em 79, quando o país foi ocupado por tropas vietnamitas. Até a década de 90, ficou sob influência socialista – e em 93, a família real retomou o poder, governando o país até hoje.
Trecho
Capítulo Nove
Alguns dias depois, ao anoitecer, um grupo de homens e mulheres de aparência solene começou a chegar ao templo. Como os soldados revolucionários, vestiam-se de preto da cabeça aos pés e andavam com os mesmos passos furtivos. Surgiram do nada, e de repente estavam no meio de nós. Flutuavam em direção aos edifícios escolares como uma massa de morcegos negros agitando o ar com inquietação. O modo como se moviam, flutuando como uma sombra gigante, me fez pensar que já os havia visto antes. Então, percebi que de fato os vira, dias antes, quando tomávamos banho na lagoa; as figuras negras percorrendo os campos distantes. Eles nos observavam sorrateiramente, de longe, fingindo supervisionar a colheita. O velho varredor havia nos alertado sobre isso. Agora eles se aproximavam, carregando cestas de arroz e pedaços de cana-de-açúcar balançando em redes de bambu como se quisessem nos atrair, como formigas, para fora de nossas tocas.
— Camponeses de aparência estranha… — murmurou Tata, observando de nossa porta. — Fico imaginando quem são realmente.
Apresentaram-se como Kamaphibal, para se distinguir, a nossos olhos, dos soldados revolucionários. Falavam cambojano usando vocabulário provinciano, como os produtores de arroz, apesar de parecerem professores ou médicos. Um deles até usava óculos. “Como vai, camarada?”, perguntavam, passando de porta em porta, de família a família, distribuindo a comida que carregavam, surpreendendo a todos com sua maneira de falar, com as palavras que usavam, como se não diferenciassem adultos de crianças, bebês de criancinhas. Chamaram todos para se reunir do lado de fora. O homem de óculos parou sobre o contorno de carvão vegetal da amarelinha. Enquanto se preparava para falar, os outros ficaram atrás, abrindo o caminho para ele com uma retumbante salva de palmas.
— Vocês devem estar imaginando por que estão aqui — disse, com a voz regular, monotonamente tranquilizante comparada ao errático estrondo proveniente dos soldados revolucionários. — Há uma razão, como verão.
Passou seu olhar lentamente, como a lente de uma câmera tomando uma grande multidão, demorando um pouco em um ou outro rosto.
— A guerra acabou. Nós vencemos. Nossos inimigos foram derrotados. Mas a luta não termina aqui. A luta tem de continuar. Qualquer um pode ser um soldado na Revolução, não importa se é um monge, um professor, médico, homem ou mulher. Quem se dá à Revolução é um soldado revolucionário. Se você sabe ler e escrever, a Organização precisa de você. A Organização os conclama para ajudar a reconstruir o país.
Seu olhar rolava de uma pessoa a outra, sem se perturbar com lactentes ou idosos, com tosses ou espirros.
— Vocês estão aqui porque acreditamos que muitos poderiam se juntar a nós nessa causa. Mesmo sendo novos na luta revolucionária, precisamos de sua experiência e habilidades comprovadas, seu conhecimento e prática.
Eu sabia ler e escrever bem, mas duvidava de que poderia realmente ser um soldado. Talvez ele estivesse exagerando. Como se estivesse lendo meus pensamentos, parou e olhou firmemente para nós com um sorriso ou uma careta, eu não saberia dizer. Uma piscada de compreensão. Papai, de joelhos, com o braço em volta de minha cintura, vacilou, e senti-o me apertar enquanto tentava recuperar o equilíbrio. Voltei-me para olhar para ele, perguntando-me se algo estava acontecendo, mas ele baixou o rosto, escondendo-o. Enquanto isso, o olhar do homem não se demorou e passou para outros rostos. Era óbvio que ele havia reconhecido papai.
— A história do Camboja é uma história de injustiça — prosseguiu, com seu tom conscientemente calmo. — Agora, temos que escrever uma nova história. Temos que construir uma nova sociedade sobre os escombros da antiga. Venham, não tenham medo. Vamos construir o novo Camboja Democrático juntos. Venham!
Esperou. Ninguém se moveu. Voltou-se para os outros membros do Kamaphibal. Eles responderam com um coletivo e silencioso aceno de cabeça. Depois, furtivamente como chegaram, começaram a ir, desaparecendo um a um entre a melancólica multidão como sombras absorvidas pela noite.
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