Na noite em que o matariam, Chris Gueffroy saiu de casa por volta das 21h sentindo-se seguro o suficiente para fugir da Alemanha Oriental pulando o Muro de Berlim. Era 5 de fevereiro de 1989 e o jovem alemão de 20 anos tinha ouvido de um oficial de fronteira que a ordem para a polícia atirar contra fugitivos havia sido suspensa. Mas a informação era falsa.
Gueffroy e seu amigo Christian Gaudian deixaram o apartamento onde moravam e, por volta das 22h30, chegaram a um pequeno jardim no bairro de Treptow, em Berlim Oriental. Depois de esperarem por mais de uma hora em um galpão de ferramentas, observando o movimento na fronteira, eles decidiram agir.
A dupla chegou às barreiras em frente ao Canal Britz às 23h30 e usou âncoras para escalar o muro interno de três metros de altura. Quando rastejavam para atravessar a cerca de sinalização, um alarme foi disparado. Eles corriam em direção ao terceiro obstáculo, uma cerca alta de metal, quando foram surpreendidos pelos guardas da fronteira.
Cercados, Gueffroy e Gaudian ainda tentavam pular a cerca quando os guardas abriram fogo contra eles. Um tiro acertou os pés de Gueffroy, que não mostrou reação ao ferimento, levando o guarda a disparar novamente. A bala acertou o coração do jovem, que caiu e morreu ali mesmo. Ferido, seu amigo foi preso.
Gueffroy morava em Berlim desde os 5 anos de idade e sonhava em tornar-se ator ou piloto. Mas, ao encerrar os estudos na escola, se recusou a seguir carreira como oficial do Exército Nacional do Povo e, como consequência, foi proibido de entrar na universidade, o que reduziu suas chances de emprego.
Ele começou a trabalhar como garçom e passou por vários restaurantes até que, em janeiro de 1989, soube que seria recrutado para o exército e, junto com seu amigo, bolou o plano de fuga. Nove meses depois de sua morte, o muro seria derrubado.
Para o historiador Vinícius Liebel, professor adjunto de História Contemporânea no Instituto de História da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o muro tem um simbolismo próprio, “como uma cicatriz na memória coletiva dos alemães”, por envolver muitos aspectos históricos do país. “No imaginário alemão, o muro remete à divisão, à guerra, mas remete também, hoje, à superação das diferenças, à reunificação e a todo um esforço de reinserção da Alemanha no cenário mundial”, diz Liebel.
Nascimento do muro
Após a derrota na Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em quatro territórios ocupados pelos Aliados: Reino Unido, Estados Unidos, França e União Soviética. Berlim, que ficava na zona de ocupação soviética, também foi dividida em quatro setores. Em 1949, as três zonas de ocupação capitalistas formaram a República Federal da Alemanha, também conhecida como Alemanha Ocidental, enquanto os russos apoiaram a criação da República Democrática Alemã (RDA), a Alemanha Oriental, comandada pelo SED (Partido Socialista Unificado da Alemanha).
Entre 1949 e 1990, cerca de quatro milhões de pessoas deixaram a Alemanha Oriental rumo à Alemanha Ocidental. A emigração em massa causava não só a perda de mão de obra qualificada, mas também de força política. Para conter esse êxodo, as fronteiras entre os países começaram a ser fechadas já em 1952. Berlim, cujas fronteiras continuavam abertas, tornou-se a última brecha para os fugitivos.
Em 13 de agosto de 1961, com apoio da União Soviética, foi iniciada a construção do Muro de Berlim, um dos maiores símbolos da Guerra Fria. Bloqueios de arame farpado foram instalados em torno de Berlim Ocidental. Pouco tempo depois, paredes de concreto foram erguidas ao longo de 155 quilômetros. “Ele separou vidas, desmembrou famílias e criou uma distância onde antes não havia”, explica Liebel. As barreiras foram continuamente reforçadas e ampliadas para frear as tentativas de fuga, e a fronteira passou a ser composta por um complexo sistema de barreiras além do muro.
No início dos anos 80, um muro interno era o primeiro obstáculo que os fugitivos encontravam. Em seguida, vinha a cerca de sinalização que, se tocada, disparava alarmes nas torres de observação onde ficavam os soldados. Junto a essa cerca, havia um tapete de espinhos. Depois de tudo isso, vinham bloqueios feitos de trilhos de ferrovia envoltos em arame farpado e uma vala. O muro de quase 3,6 metros era o último obstáculo separando as duas partes de Berlim.
A construção do muro teve efeito imediato e reduziu as tentativas de fuga, que ainda aconteciam, sendo muitas sem sucesso. É impossível precisar o número de pessoas que morreram tentando atravessar as fronteiras alemãs. O número de mortos ao longo das fronteiras entre Ocidente e Oriente varia de 270 a 780. Apenas no muro, calcula-se que 140 pessoas tenham morrido, de acordo com o Memorial do Muro de Berlim, entre 1961 e 1989.
“O Memorial do Muro de Berlim representa não apenas a divisão da cidade e do país, mas a Cortina de Ferro como o fato político mais importante da Guerra Fria na Europa e no mundo”, diz o professor Jens Gieseke, diretor do Departamento de Comunismo e Sociedade do Centro de História Contemporânea de Leibniz. “O memorial é o lugar perfeito para honrar as vítimas da ditadura comunista da Alemanha Oriental”, completa.
Em relato aos historiadores responsáveis pelo livro “The Victims at the Berlin Wall 1961 - 1989” (As Vítimas do Muro de Berlim 1961 - 1989, em tradução livre) a mãe de Gueffroy disse ter ouvido os tiros na noite em que seu filho morreu, sem saber que ele estava tentando fugir. Ela, que foi presa no dia seguinte pela Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, só foi informada sobre a morte do filho no meio do interrogatório.
Chris Gueffroy foi enterrado em 23 de fevereiro de 1989 em meio a uma forte comoção pública. Uma cruz em sua homenagem foi colocada no lado ocidental do canal Britz. Grupos de oposição na Alemanha Oriental divulgaram o assassinato em uma carta aberta. O caso gerou tamanha repercussão que Erich Honecker, secretário-geral do Partido Comunista e presidente da Alemanha Oriental, teve de tomar uma atitude. Em 3 de abril de 1989, ele revogou a ordem de atirar em fugitivos no Muro — cuja existência sempre tinha sido negada.
Em 21 de junho de 2003, quando Gueffroy completaria 35 anos, um memorial em sua homenagem foi erguido no local onde ele morreu. Apesar de ter sido a última vítima da ordem de disparo contra fugitivos, ele não foi a última pessoa a morrer tentando atravessar o muro. Em 8 março de 1989, Winfried Freudenberg morreu quando o balão de ar quente caseiro com que atravessou a fronteira caiu em Berlim Ocidental.
“Sabendo que essas mortes aconteceram apenas alguns meses antes da queda do muro, elas são lembradas, em certo sentido, como vítimas particularmente desnecessárias de um regime cruel que passou a ser história pouco tempo depois”, afirma Gieseke.
A queda
A decadência da União Soviética se refletia nos países do bloco comunista. Desde que assumira o poder em 1985, Mikhail Gorbachov iniciou uma série de reformas e determinou que os aliados dos soviéticos não precisavam mais seguir as ordens de Moscou. Sem a intervenção direta da URSS, países do bloco comunista não conseguiram conter a onda de movimentos democráticos que avançava pelo leste europeu. Mudanças em países como Polônia e Hungria logo se refletiram na Alemanha Oriental.
Para tentar conter a população, o governo da RDA passou a fazer algumas concessões, como permitir que os cidadãos viajassem. Durante uma coletiva de imprensa em 9 de novembro de 1989 para anunciar as mudanças, o porta-voz do SED, Günter Schabowski, se antecipou ao comunicar que a suspensão das restrições para viagens passaria a valer imediatamente. Milhares se dirigiram às fronteiras em Berlim, que foram abertas para evitar tumultos. As cenas de pessoas escalando e quebrando o muro ganharam o mundo e são a imagem da derrota do regime comunista alemão, que cairia oficialmente um ano depois com a reunificação do país.
“A antiga divisão da Alemanha ainda é um tópico importante na memória política aqui, já que ainda lutamos com as diferenças resultantes entre o Oriente e o Ocidente. Os restos do Muro são o símbolo mais tangível de Berlim como capital da Alemanha unida”, diz o professor Gieseke, ao explicar a importância da existência de variados memoriais relacionados ao muro.
Para o professor Liebel, da UFRJ, os memoriais têm um papel psicológico e emocional importante. “Lembrar desse trauma, de sua condução e superação, serve como uma resposta coletiva a sentimentos que por vezes são bastante pessoais ou familiares. Serve como uma ligação coletiva com o passado, uma lembrança das violências que acabam unindo o povo alemão”, diz, destacando também seu papel informativo. “Um memorial do muro tem também a função de lembrar da Guerra Fria e das dinâmicas de poderes e violências que faziam da Alemanha o centro europeu daquele conflito”.