Em janeiro de 1988, Martin Pistorius chegou em casa reclamando de dor de garganta. Ele tinha 12 anos e já fazia todos os reparos da parte elétrica da casa. Adolescente tímido, ia bem na escola, tinha alguns amigos e gostava de informática. “Nas semanas e meses seguintes, deixei de comer e comecei a dormir diariamente horas a fio, reclamando de como era doloroso caminhar”, ele lembraria depois, em sua autobiografia que acaba de chegar ao Brasil, “Quando Eu Era Invisível” (editora Astral Cultural).
“Comecei me esquecendo dos fatos, depois das tarefas habituais, como regar o meu bonsai, e finalmente até dos rostos.” Mais ou menos um ano depois, deitado numa cama de hospital, ele pronunciou suas últimas palavras: “Quando casa?”
Até hoje ninguém sabe qual foi a doença que o atingiu. Os médicos especulavam que podia ser tuberculose ou meningite criptocócica, mas nunca chegaram a um diagnóstico definitivo. Com 13 anos de idade, Martin, que não tem ligação com o atleta paraolímpico Oscar Pistorius, também sul-africano, perdeu qualquer atividade cerebral. E assim ficou por mais 12 anos: o corpo travado, nenhuma comunicação.
Preso ao corpo
Na verdade, a vida intelectual de Martin retornou devagar. Ele acredita que suas primeiras experiências de consciência surgiram quando ele tinha 16 anos. “Gradualmente minha mente começou a se reorganizar. Minhas memórias são confusas, eu me lembro de ser movido, levantado da cadeira de rodas para a cama, sendo alimentado e cuidado” ele contou à Gazeta do Povo, em entrevista concedida por e-mail.
“Mas a partir do momento em que eu estava totalmente acordado, conseguia ouvir, ver e entender tudo. Mas ninguém percebia”.
Neste momento, o sul-africano era um jovem de 19 anos, sem nenhuma memória de sua infância ou de sua vida sobre a doença. Tudo o que ele aprendeu sobre si mesmo foi ouvindo as pessoas conversando a sua volta. Começou entendendo que aqueles membros na ponta da cama eram seus pés.
Percebeu que era diferente, porque tinha um corpo que só se movia involuntariamente. Assistia ao noticiário na TV e ficou triste com a morte da princesa Diana, em 1997.
Ficava eufórico quando o pai lhe buscava na clínica onde passava o dia, mas muito irritado quando tentava se comunicar com ele, sem sucesso – uma das poucas formas de comunicação que ele lembra de ter alcançado nessa fase foi morder a barriga do pai quando ele espremia algumas espinhas de suas costas e ele sentia dor.
Família arrasada
O pai, Rodney, era engenheiro mecânico. A mãe, Joan, técnica de raio-x. Quando, em 1989, todas as tentativas falharam e os médicos prepararam a família para o pior, o casal tinha mais dois filhos, David e Kim. Todos viviam em Pretória. Joan tentou se matar com remédios. Depois passou a focar na criação dos filhos funcionais. O pai deu mais atenção ao filho. Acordava de duas em duas horas para virá-lo da cama – e isso por anos a fio.
O casal discutia porque a mãe, quando se viu sem esperanças, queria Martin numa clínica em tempo integral. O pai discordava. Insistia para manter o jovem numa instalação hospitalar apenas durante o dia.
Depois de uma dessas brigas, ela disse algo que o jovem entendeu, ainda que ela não soubesse. Martin não teve como reagir e demorou anos para entender: “Você precisa morrer”, ela disse a ele, olhando em seus olhos.
Na entrevista, ele fala do incidente: “Minha mãe e eu temos um relacionamento muito bom. Ela teve uma jornada muito difícil. Acho que o que mais ficou marcado para mim foi a imagem da mãe que estava sofrendo demais por ver um filho naquele estado”.
Agressões
Na frente de Martin, o garoto invisível, pessoas cutucavam o nariz, se coçavam, ajeitavam as roupas íntimas, falavam sozinhas sobre as próprias vidas. Mas também o agrediam. Ele lembra do desespero de não poder avisar seus pais sobre uma clínica para onde era levado eventualmente, no interior do país. As enfermeiras assistiam, rindo, enquanto uma colega delas agia de maneira inacreditável. Martin conta em seu livro:
“Come isso, burro maldito — diz a assistente com rispidez.
— Depressa, seu monte de lixo. Vamos ficar horas aqui se você não acelerar e comer logo.
Ela puxa o meu cabelo — dois puxões rápidos que enchem os meus olhos de lágrimas — antes de erguer outra colher com comida na direção da minha boca. Os meus lábios se fecham sobre a colher e o meu coração acelera enquanto engulo. Sinto náuseas se formarem dentro de mim. Não posso vomitar. Respiro fundo.
— Vamos, aberração. O que há de errado com você esta noite?”
Ele lembra também de tomar tapas e beliscões, ser deixado nu em quartos frios ou fritando ao sol. Com frequência a água do banho ficava tingida de vermelho, porque os beliscões da assistente provocavam sangramentos.
“Se eu me encolhia quando ela me tocava, a mulher me batia com tanta força que me deixava sem ar. Ou ela me batia na nuca se eu gritasse depois de ter me deixado sentado em cima das minhas próprias fezes durante tanto tempo que a minha pele ficava em carne viva.”
Martin ficava meses sem voltar para lá. Mas sempre tinha medo do dia em que fosse levado de novo.
Casamento
Tudo isso mudou quando uma das assistentes da clínica onde ele passava os dias, chamada Virna van der Walt, depois de dois anos de convívio diário, começou a perceber que o movimento dos olhos do garoto não eram tão irregulares assim. Desconfiada de que ele conseguia se comunicar, Vrina convenceu os pais a levar o jovem para ser testado.
O ano era 2001. Martin, já com 25 anos, finalmente provou ao mundo que seu cérebro tinha voltado. Lentamente, começou a se comunicar usando um sistema de interruptores. Seus pais ficaram eufóricos.
Hoje o sul-africano tem 41 anos e um emprego: trabalha criando e atualizando websites. Desde 2013, tem diploma universitário em ciência da computação.
Aprendeu sobre sua infância e começou a ter vida social. Conheceu Joanna, uma amiga de sua irmã. Os dois se casaram em 2008. Hoje o casal vive em Londres. Ainda hoje os médicos não sabem como ele se recuperou o suficiente para retomar a vida — ainda que não tenha voltado a andar nem a falar.
Usa cadeira de rodas e se comunica por um sistema que emite textos e uma fala eletrônica. “Recentemente, estou começando a participar de corridas de cadeira de roda”, ele conta na entrevista.
“Nos últimos anos, a força do meu tronco e o controle da minha mão melhoraram muito. Sou feliz e extremamente grato pelo que eu alcancei.”
“Toda essa experiência me mostrou que todo mundo tem uma história, suas próprias lutas, seus desafios e inseguranças. As pessoas, algumas mais do que outras, vestem máscaras com as quais se apresentam ao mundo”, Martin relata por e-mail.
“Mas eu diria que, em geral, as pessoas são boas por natureza.”