Muito se fala sobre a Coreia do Norte, mas considerando que o país tem uma das políticas mais fechadas no mundo, pouco realmente se sabe sobre eles. Menos ainda se sabe sobre a vida de seus habitantes: em um país sem internet e com fronteiras fechadas, é difícil saber como se vive e o que pensa um norte-coreano.
Esse foi justamente um dos desafios encontrados pela jornalista Barbara Demick, enviada para a Península da Coreia por um jornal americano para ser correspondente internacional dos dois países. Demick morava em Seul, capital da Coreia do Sul, e fez poucas viagens ao país vizinho, que bloqueava constantemente a visita de jornalistas estrangeiros.
As únicas viagens que conseguiu realizar eram acompanhadas de perto por um guarda-costas, que não permitia que ela se desviasse do roteiro original ou falasse com outras pessoas que não estavam pré-estabelecidas na programação oficial, que se mantinham a um discurso de enaltecimento nacional.
O jeito que a jornalista encontrou para entender melhor o que acontece no país foi conversar com ex-moradores: pessoas que eventualmente conseguiram sair do país e estavam dispostas a contar suas histórias.
O resultado dessas entrevistas foi publicado no livro Nada a invejar: Vidas comuns na Coreia do Norte (Companhia das Letras, Trad. José Geraldo Couto). Ao longo de sete anos, Demick entrevistou seis pessoas, que contaram sobre suas vidas pessoais, as condições sociais no vizinho ao norte e como se motivaram a sair do país e irem para a Coreia do Sul.
Os relatos têm suas diferenças – conhecemos pessoas privilegiadas e pessoas à margem, algumas mais jovens e outras mais velhas, algumas que foram defensoras fervorosas do sistema e algumas que já tinham notado que algo estava errado. Ainda assim, um padrão se estabelece: todas passaram fome e viram um sistema social se desmontar ao longo de apenas alguns anos.
Depois da divisão das Coreias, resultado da polarização do período de Guerra Fria, as coisas pareceram boas por algum tempo. A sociedade ainda era instável, mas todas são quando saem de um conflito.
A maioria das pessoas trabalhava em fábricas ou plantações estatais, recebendo alimentação em troca. O resto do tempo era preenchido por atividades do partido. A vida girava ao redor o culto ao ditador Kim Il-sung, visto como um grande líder por toda a população.
Os relatos também confirmam uma grande política de hierarquização da população, em que membros do partido têm acesso a benefícios que não estão disponíveis para o resto da população, seja acesso a uma educação de mais qualidade, seja acesso a mais alimentos.
Qualquer pessoa que tenha cometido uma ação considerada traição entra na chamada "classe hostil", ou seja, a classe que não é apoiadora do governo. E não só a pessoa em si, mas toda sua família por incontáveis gerações.
Um dos exemplos disso é Mi-ran, uma das entrevistadas do livro. Seu pai era um sul-coreano, impedido de voltar para casa com o fim da guerra. Isso era suficiente para que a família fosse vista como impura – e inimigos, consequentemente.
Fome
Mas aos poucos o regime cai em um erro similar ao da China, e entra em um grande período de fome. Isso incentiva a criação de um mercado paralelo de alimentos (o comércio era então proibido), além de ter matado grande parte da população (ainda que o número real seja difícil de estimar).
Ajudas humanitárias da ONU ou de países tentaram distribuir alimentos para a população, mas tiveram a entrada de seus agentes barrada. Sem conseguir controlar ou nem verificar a entrega das doações, ajudas se tornaram cada vez mais raras.
A Senhora Song, uma das entrevistadas de Demick, é um exemplo disso. Inicialmente foi uma grande defensora do partido e do sistema, mas depois de perder seu emprego, ver o marido e o filho morrerem de fome e ter que começar a vender bolachas para sobreviver, suas crenças mudaram.
A transformação ocorreu quando visitou a filha que já tinha fugido primeiro para a China, depois para a Coreia do Sul, e percebeu o quanto a vida poderia ser diferente.
Culto ao líder
Talvez o centro da questão para se entender a vida na Coreia do Norte é entender a mentalidade local. O país é completamente fechado: sem acesso a internet ou outros meios de comunicação internacionais de forma legal (ainda que existam algumas maneiras de se fazer isso ilegalmente), a população não sabe amplamente como se vive em outros lugares.
Eles não falam outras línguas e todos os meios de comunicação são controlados pelo governo, o que garante que a mensagem passada constantemente para a população seja de estabilidade e crescimento.
Além disso, como também acontecia na China, o culto aos governantes é incentivado ao ponto de eles se tornarem figuras endeusadas. Em uma das músicas, afirmam que não têm "nada a invejar" em relação aos outros países – ao contrário, estão em uma situação muito melhor. Sem ter com o que comparar, acreditam que a vida transcorre em situações análogas de miséria em todos os países.
Um dos temas abordados pelos entrevistados de Demick é a morte de Kim Il-sung, em 1994. Todos se lembram onde estavam quando isso aconteceu e o quanto isso abalou a população. Afinal, neste momento a população teve que lidar com um aspecto de Il-sung que normalmente não era ressaltado: o fato de que era uma pessoa como qualquer outra.
Um país na escuridão
O número de pessoas saindo da Coreia do Norte e procurando asilo em outros países, principalmente na Coreia do Sul, tem crescido ano a ano, e o declínio da economia do país faz com que especialistas acreditem que ele está a beira do precipício. Ainda assim, o país resiste.
"A persistência do regime norte-coreano é um verdadeiro mistério para muitos observadores profissionais da Coreia do Norte. Durante os anos 1990, o colapso iminente era um consenso quase indiscutível", afirma Demick.
Uma reforma econômica recente, com uma troca de moeda para maquiar os efeitos da inflação, pegou a população em cheio: as pessoas podiam trocar apenas uma quantidade limitada da velha moeda pela nova.
Todos que tinham conseguido guardar economias com a venda de alimentos perderam seu dinheiro, e uma classe média emergente voltou a estar nas camadas baixas da população.
Demick começa seu livro com a descrição da Coreia do Norte sendo vista por satélite de noite: uma mancha escura perto das luzes dos países vizinhos.
A escuridão revela a falta de energia do país, mas é uma metáfora para como é visto pelo resto do mundo.
Atualmente, o governante do país é Kim Jong-un, neto do Grande General. Ainda não há liberdade de expressão, e ainda é difícil saber a condição real de vida da população, o que faz com que o livro de Demick ainda seja uma fonte essencial para entender o país.
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