• Carregando...
Memorial das vítimas do massacre na escola na escola Sandy Hook, em Newtown, nos EUA: atirador sofria de transtornos mentais. | Mario Tama/AFP
Memorial das vítimas do massacre na escola na escola Sandy Hook, em Newtown, nos EUA: atirador sofria de transtornos mentais.| Foto: Mario Tama/AFP

Revolta. Isolamento. Impotência. Vingança. O peso destas palavras assombra quem guarda na memória o que é ser vítima de conflitos armados, ataques violentos ou ações terroristas. Mas há uma rota alternativa, embora cheia de obstáculos, que pode servir de atalho para superar até os mais profundos traumas: o perdão. Em vários cantos do planeta, pessoas afetadas pelas histórias de violência mais marcantes da recente narrativa internacional escolhem a reconciliação pacífica e a luta contra o ódio para mudar um pouco do mundo. Embarcar em missões de bem pode expurgar o sofrimento, sobretudo com iniciativas sociais para quebrar ciclos viciosos de violência.

Segundo Masi Noor, psicólogo da Universidade de Keele, no Reino Unido, mergulhar no perdão ajuda a transformar uma tragédia pessoal na busca por causas mais profundas à dor. E, assim, as vítimas podem abrir os olhos a todos os lados do contexto social-histórico no pano de fundo da agressão.

“O perdão faz entender que o violentador não nasceu com a intenção de nos machucar, mas algo aconteceu no caminho. Perdoar é humanizá-lo, embora não viremos amigos, e perguntar: Por que eu e você? Somos parte de um sistema maior?”, diz Noor, colaborador do Forgiveness Project, que promove histórias de perdão. “É sobre desconstruir narrativas simplistas e evitar mais violência.”

A complexidade do processo aumenta em casos extremos, como atos terroristas, quando os agressores são vistos sob o espectro obscuro de uma organização. O mesmo vale para tensões de zonas de conflito, que revelam ressentimentos históricos de comunidades divididas.

“Você pode estar pronto para superar o trauma, mas sua comunidade não, o que pode frear o processo”, explica.

O perdão é muito diferente da condescendência, que permite o ciclo de abusos: é uma noção de justiça que leva à compreensão, e não apenas castiga para corrigir.

Masi Noor psicólogo da Universidade de Keele

Compreensão do radicalismo

Num só dia de 2011, a Noruega registrou, atônita, 70% de todos os seus assassinatos daquele ano. Tudo aconteceu quando o extremista de direita Anders Behring Breivik colocou uma bomba em Oslo, matando oito pessoas, e em seguida invadiu um acampamento da juventude socialista numa ilha e lá, friamente, executou a tiros outras 69. No meio das vítimas fatais e pelo menos 300 feridos estava Bjørn Ihler, de 20 anos, que sobreviveu à tragédia — mas apenas por pouco. O atirador apontou a arma na sua direção, disparou, e errou.

LEIA TAMBÉM: Países nórdicos entram na mira do terror

Traumatizado, Ihler buscou ajuda profissional, mas precisava entender que força movera Breivik a quase matá-lo. Procurou sua biografia; foi ao julgamento; e passou a estudar radicalismo e violência. Tudo para desmistificar o assassino, que já se tornava folcloricamente assustador.

“As pessoas tinham medo de falar o nome de Breivik e esqueciam que ele era apenas humano, apesar das suas escolhas terríveis. Ele cresceu nos subúrbios de Oslo, como eu. Extremistas também têm histórias, passados e famílias.”

E, com o tempo, sua questão acabou sociológica. Queria desvendar os caminhos de ida e volta à radicalização, ou seja, por que o extremismo é capaz de fisgar tantos recrutados, e como tirá-los de movimentos violentos. Hoje, já iniciou estudos sobre Paz e Conflito e conheceu ex-radicais da extrema-direita em EUA, Reino Unido e Noruega.

“Extremistas se distanciam porque não acham que são apreciados. Precisamos ouvi-los e levá-los a sério para mostrar que há quem se importe com sua vida fora do radicalismo. Quero evitar que o que eu vivi aconteça com mais alguém.”

Ihler fala em compreensão e reconciliação. Explica que, no norueguês, a tradução para “perdão” sugere que a agressão foi quase esquecida. Pelo contrário, apela a conversas abertas sobre medo, terror e radicalização da extrema-direita no seu país, onde crescem as tensões sociais, sobretudo, com a chegada de novos imigrantes.

“Não queremos ver o problema aqui: gostamos de nos ver como sociedade pacífica. Mas a tensão sobe e muitos têm aderido à extrema-direita.”

Compaixão pelo algoz do seu próprio filho

Foi com um beijo e “eu te amo” que Scarlett Lewis se despediu do filho de 6 anos, Jesse, na manhã de 14 de dezembro de 2012. A mãe não poderia imaginar que seu caçula estava a caminho de um cenário de guerra na escola Sandy Hook, em Newtown, nos EUA. Ele foi uma das 20 crianças mortas no mais brutal ataque armado a uma escola da História americana. O atirador, Adam Lanza, que sofria de transtornos mentais, entrou na instituição e assassinou a tiros 26 funcionários e alunos para, em seguida, cometer suicídio ali mesmo.

LEIA TAMBÉM: “Allahu akbar”: temos um duplo critério quando se trata de religião e violência

Scarlett, ao chegar em casa depois do massacre, encontrou a última mensagem do filho num quadro: “Nutrir, curar, amar.” Ela decidiu fazer daquelas palavras — soletradas, porque Jesse ainda aprendia a escrever — o recado que guiaria o seu futuro: a compaixão pelo algoz do seu próprio filho.

“Se o atirador tivesse recebido tudo isso, a tragédia não teria acontecido. Alguém capaz de fazer algo tão horrível deveria estar sofrendo muito. Senti compaixão, e o perdão foi minha chave para a resiliência”, contou.

Até então uma mulher de negócios, Scarlett deixou o emprego, escreveu um livro e fundou uma organização que trabalha pela saúde mental e emocional nas escolas. Sua nova missão a ajuda a seguir em frente.

É necessária muita coragem para perdoar. E Jesse foi um exemplo de coragem: salvou nove amigos, levando-os à saída, e se recusou a sair de perto do professor. Meu filho de 6 anos morreu como herói de guerra na escola e ganhou um funeral militar.

Scarlett Lewis  mãe de Jesse, morto aos 6 anos no massacre da escola Sandy Hook

A fundação Jesse Lewis Choose Love desenvolve programas de prevenção ao bullying, suicídio e uso de drogas, tendo influenciado milhares de professores no mundo. A ideia é levar compreensão às salas de aula sobre problemas que, se ignorados, potencializam violência e traumas de infância. História parecida que aconteceu, afinal, com Lanza, de 20 anos, que sofria de transtornos de ansiedade, obsessão compulsiva e anorexia.

“Já estive em Oriente Médio, Alemanha, Austrália e Índia para espalhar a mensagem. Alguns professores dizem que o projeto transformou suas vidas ou até que os salvou. Queremos todos ser amados.”

Pela paz entre Israel e Palestina

Com uma bandeira palestina no jardim, já na infância Bassam Aramin testemunhava o histórico conflito entre árabes e judeus em Hebron. Fugia para evitar agressões de soldados israelenses, que invadiam casas. Na adolescência, acabou preso por agredir militares. Mas, hoje, após muitas reviravoltas e duras lições, incluindo a morte da filha na porta da escola, sua luta ganhou um novo foco: a paz. Símbolo de reconciliação para sua comunidade, ajudou a fundar uma organização para unir ex-combatentes dos dois lados que decidiram baixar armas para, juntos, se dedicarem à convivência não violenta.

Até ser preso, em 1985, Aramin se intitulava um combatente pela liberdade, cuja missão era estancar o drama da sua comunidade. Não nega, usou a violência. Chamado por muitos de terrorista, foi sentenciado a sete anos no cárcere. Mas, lá, entendeu que ele e seus inimigos queriam só uma coisa: a autopreservação. Desejou saber mais sobre os judeus e o seu sofrimento histórico; e hoje, já concluiu um mestrado sobre o Holocausto.

Se você não conhece seu inimigo, o vê como monstro. Só com a não violência vemos a sua humanidade. Hoje, temos mais vítimas, mais sangue e mais dor a cada dia. Precisamos nos transformar.

Bassam Aramin  pai de Abir, morta por um soldado israelense aos 10 anos, e cofundador da ONG Combatentes pela Paz

Em 2005, foi cofundador da ONG Combatentes pela Paz, que reúne palestinos e israelenses em atividades, reuniões e marchas. E nem a brutal perda da filha Abir, de 10 anos — morta por um soldado israelense na porta da escola - abalou sua crença no perdão.

“Eu perdoaria o assassino da minha filha; e esta seria a vingança. Ele não poderia lutar contra isso ou viver em paz ao reconhecer que a matou sem um porquê. Temos a autoridade moral para levantar a voz e dizer ‘basta’ à matança. Israelenses e palestinos cultivamos a mesma dor e as mesmas lágrimas. O perdão não é apenas possível, mas um fato: um dia, muito em breve eu espero, vai acontecer.”

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]