A compra do Twitter pelo bilionário defensor da liberdade de expressão Elon Musk reciclou um debate que já esteve nos trending topics no ano passado. Fazendo uso de um rigor seletivo, direcionado somente aos ricos que não são totalmente alinhados à agenda progressista, influenciadores digitais insatisfeitos com a aquisição da rede social passaram a denunciar uma suposta falta de sensibilidade de Musk que poderia ter usado os US$ 44 bilhões investidos no negócio para acabar com a fome no mundo.
Mesmo ignorando o quão oportunista e demagógica é esse tipo de cobrança feita a um indivíduo bem-sucedido, cidadão de um país democrático e que tem o direito de usar o dinheiro honestamente ganho como bem entender, a acusação cria a oportunidade para desfazer o mito de que muito dinheiro doado de uma única vez poderia resolver, para sempre, um problema estrutural milenar como a fome no mundo. Especialistas menos interessados em atacar Musk por causa de suas opiniões, e dotados de mais apreço aos fatos ajudam a explicar por que essa simplista solução é, na verdade, uma farsa.
Michael Shellenberger, ativista ambiental e fundador da ONG Environmental Progress, foi uma das pessoas a chamar a atenção publicamente de David Beasley, diretor do Programa Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas, que usou o Twitter em novembro de 2021 para pedir a Elon Musk e Jeff Bezos que doassem US$ 6 bilhões à iniciativa que dirige. Na época, o dinheiro seria destinado para ajudar 42 milhões de pessoas que “literalmente vão morrer se não as alcançarmos”, disse Beasley, completando em seguida com um lacônico e provocativo “não é complicado”.
Num extenso artigo publicado no New York Post, Shellenberger explica que, sim, acabar com a fome simplesmente doando dinheiro é um problema mais complicado do que parece. Naquela ocasião, em parte, o problema estava na própria estrutura burocrática do PMA, que enfrentava severas críticas de governos e doadores que reclamavam da falta de transparência no uso do dinheiro, da contabilidade discutível, mas, acima de tudo, dos métodos definidos pelos reclamantes como “despejar alimentos em nações pobres”, sem planejamento eficaz que as tornem autossuficientes, derrubando preços à força e levando agricultores locais à falência.
Para exemplificar, ele expõe três ocasiões em que o governo dos Estados Unidos decidiu mostrar solidariedade ao mundo, doando toneladas de alimentos que acabaram por gerar mais problemas aos destinatários. Nas décadas de 1950 e 1960, o trigo excedente dos EUA foi enviado para a Índia, prejudicando gravemente os produtores locais que estavam tentando viabilizar uma produção nacional sustentável. Em 1976, de novo com o trigo, os EUA enviaram o excesso para a Guatemala, em resposta a um terremoto, embora o país tivesse acabado de produzir rendimentos recordes. A queda dos preços foi tão ruim para os agricultores que o governo proibiu a importação de grãos. Seis anos depois, o governo peruano pediu ao governo dos EUA que parasse de despejar arroz no país, devido ao seu impacto sobre os pequenos proprietários rurais.
Um problema ainda maior, no entanto, é que a causa da fome na maioria dos países não é a ausência de alimentos ou de dinheiro para comprá-los, mas sim a ocorrência de guerras e a instabilidade política.
Poucos dias após a discussão entre Musk e Beasley, o PMA divulgou uma lista de países que receberiam alimentos e dinheiro, caso o bilionário fizesse o que o dirigente da instituição pediu via rede social. A lista incluía a República Democrática do Congo, Afeganistão, Iêmen, Etiópia, Sudão, Venezuela, Haiti e Síria. Todos atravessavam algum tipo de violenta turbulência política, alguns em pleno estado de guerra civil, o que dificulta muito o transporte de alimentos e facilita atos de corrupção com o dinheiro doado. Conforme a história tem provado em numerosos episódios, quando a causa dos conflitos tem raízes culturais e étnicas – e quase sempre tem – não há ajuda alimentar capaz de trazer paz à região.
Qual seria a solução?
Para Shellenberger, há cerca de 200 anos quase todas as nações que conseguem superar a fome o fazem da mesma maneira. Com estabilidade social suficiente para permitir que os agricultores produzam e transportem suas colheitas para as cidades, e para que as empresas nas cidades funcionem sem serem bombardeadas ou saqueadas.
É essa estabilidade que permite aos produtores locais se tornarem mais produtivos e também é o que viabiliza a instalação de indústrias, mesmo que sejam as mais rudimentares. “O aumento da produtividade agrícola significa que menos pessoas são obrigadas a trabalhar nas fazendas, e muitas delas se mudam para a cidade para trabalhar em fábricas e outras indústrias. Nas cidades, os trabalhadores gastam seu dinheiro comprando alimentos, roupas e outros produtos e serviços de consumo, resultando em uma força de trabalho e uma sociedade mais rica e engajada em uma maior variedade de empregos”, explica Shellenberger.
Ele destaca ainda que durante os últimos 200 anos, as nações pobres descobriram que não precisavam acabar completamente com a corrupção ou educar todos os cidadãos para só então se desenvolver – o que colocaria a esperança de dias melhores num futuro muito longínquo. Em vez disso, deu-se conta de que enquanto as fábricas pudessem operar livremente e os políticos “não roubassem demais de seus proprietários”, a manufatura poderia impulsionar o desenvolvimento econômico e, consequentemente, combater a fome de modo sustentável.
Outra fonte de recursos?
É inegável, contudo, que uma grande quantidade de dinheiro usada na distribuição e compra de alimentos em regiões vulneráveis seria capaz de amenizar o problema, podendo garantir ao menos algumas refeições a mais do que certas pessoas famintas teriam sem tal ajuda. Nesse sentido, doações generosas seriam mais um ato de caridade, com efeitos pontuais e temporários, do que uma solução definitiva para o problema social da fome.
Ainda assim, convém questionar se não seria mais legítimo cobrar esse tipo de engajamento de governos que fazem uso bem menos nobres de quantias nada desprezíveis do dinheiro público. Tomando o Brasil como exemplo, R$ 4,9 bilhões são destinados ao fundo eleitoral, dinheiro gasto sobretudo com produção de propaganda política, atividade que em alguns países desenvolvidos é financiado de forma privada, sem uso do dinheiro do contribuinte. Há também os R$ 2,6 bilhões de fundo partidário, verba que as siglas usam para promover convenções, pagar viagens e manter sedes físicas nas cidades que consideram eleitoralmente mais importantes. Se considerarmos que há desperdícios equivalentes na grande maioria dos países democráticos, a cobrança por repasse de valores tão expressivos de um único indivíduo, por mais rico que seja, fica ainda mais pobre de sentido.
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