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Nascida em Berlim, Johanna Klara Eleonore tinha 12 anos em maio de 1945 quando ela e sua mãe se viram cercadas por soldados da União Soviética. As duas foram estupradas repetidamente, por diferentes homens. Na sequência a garota foi arremessada pela janela do primeiro andar do prédio onde estavam.
Johanna Fraturou uma vértebra e nunca mais deixou de sentir fortes dores nas costas. Posteriormente, casou-se com Helmut Kohl, chanceler da Alemanha de 1982 até 1998. Passou a ser conhecida como Hannelore Kohl. Só relatou publicamente o ataque russo ao fim da vida, para o jornalista Herbert Schwan, que posteriormente publicaria uma biografia dela. Disse a Schwan que nunca mais suportou o cheiro de alho e de álcool, nem conseguia ouvir qualquer palavra pronunciada em russo.
Ela não foi a única a guardar segredo por décadas. Seja por vergonha, seja por trauma, as cerca de 100 mil mulheres submetidas a estupros pelas mãos de soldados soviéticos. Uma única vítima publicou uma denúncia pouco tempo após os acontecimentos — o livro "Anonyma – eine Frau in Berlin" relata, em primeira pessoa, o drama de uma mulher de cerca de 30 anos.
Publicado em inglês, fora da Alemanha, em 1954, o trabalho teve pouca repercussão. Em 1959, ganhou uma edição em alemão, que não só vendeu pouco como foi criticado por “sujar a honra” das mulheres alemãs. Apenas em 2003, dois anos depois da morte da possível autora, a jornalista Marta Hiller, é que a obra foi relançada, com grande impacto. Virou filme e ganhou edição em português, com o título "Uma Mulher em Berlim".
Na obra, a autora relata que foi cercada e estuprada dentro do apartamento onde vivia. No mesmo corredor, várias mulheres ouviram atrás de suas portas. Assim que os soldados largaram a jovem, todas correram para cuidar dela — mas nenhuma teve coragem de tentar intervir. Esses acontecimentos se repetiam, geralmente à noite, quando os soldados começavam a beber e a procurar pelas mulheres. Como a maior parte das janelas da cidade tinham sido explodidas, os gritos ecoavam pelas ruas todas as noites.
Luta pela sobrevivência
Em suas pesquisas para o livro "Berlim 1945: A Queda", o historiador Antony Beevor chegou à estimativa de 100 mil mulheres estupradas a partir do momento em que os soldados soviéticos tomaram a capital da Alemanha, em 20 de abril de 1945. E dez mil cometeram suicídio, muitas vezes ao perceber que estavam cercadas por agressores, outras vezes depois de estupros recorrentes.
Beevor relatou que os líderes da União Soviética eram informados dos abusos realizados nos territórios ocupados. “[Lavrentiy] Beria [o executor do expurgo soviético de da década de 1930] e [Josef] Stalin, lá em Moscou, sabiam perfeitamente o que estava acontecendo”, ele relata.
“Por um relatório, foram informados de que ‘muitos alemães declararam que todas as alemãs da Prússia Oriental que ficaram para trás foram estupradas por soldados do Exército Vermelho’. Davam-se numerosos exemplos de estupros em grupo — ‘inclusive de meninas com menos de 18 anos e as idosas’”. O livro de Beevor, aliás, é proibido em muitas escolas da Rússia, onde até hoje os ataques são tratados como propaganda mentirosa do Ocidente.
Já a autora de "Uma Mulher em Berlim" relata, de forma concisa e seca, o drama de mães e avós que escondiam as filhas em sótão — as crianças eram forçadas a ouvir, em silêncio, os ataques contra as mulheres mais velhas da família. Outras pediam para que os soldados as matassem depois dos ataques. Costumavam ouvir de volta: “Não somos alemães, não matamos mulheres indefesas”.
E havia aquelas que, como a própria narradora, buscavam um protetor, um único militar que garantisse proteção contra os estupros de vários homens simultaneamente. Esse acordo visava também garantir o mínimo de acesso a água e comida, num momento em que a cidade estava em escombros, boa parte dos maridos, irmãos e filhos ainda estavam em campo de batalha e os cartões de racionamento concedidos pelo antigo governo alemão já não tinham valor algum.
Abortos e abandonos
Nos últimos anos, os relatos de ataques sexuais, especialmente entre abril e junho de 1945, se multiplicaram. Beevor coletou vários em seu livro. “Um jovem cientista soviético soube por uma moça alemã de 18 anos, por quem se apaixonara, que na noite de 1º de maio um oficial do Exército Vermelho forçara o cano da pistola em sua boca e mantivera-o ali durante todo o ataque sexual, para garantir sua colaboração”.
Como lembra o historiador, as doenças venéreas se disseminaram pela cidade. “A penicilina logo se tornou o item mais procurado no mercado negro”. E a taxa de abortos também disparou, aponta ele. “Estimou-se que cerca de 90% das vítimas que engravidaram conseguiram fazer um aborto, embora este número pareça extremamente alto. Muitas mulheres que deram à luz abandonaram o filho no hospital, em geral porque sabiam que o marido ou noivo jamais aceitaria sua presença em casa”.
Em poucos casos, os homens que ainda estavam na cidade tentaram reagir, especialmente crianças tentando defender as mães, avós e irmãs. Em geral, eram esforços inúteis. “Dieter Sahl, de 13 anos, jogou-se com os punhos cerrados contra um russo que estuprava sua mãe na frente dele. Só conseguiu ser morto com um tiro”, relata o pesquisador. “Um ator famoso, Harry Liebke, foi morto com uma garrafa quebrada na cabeça quando tentou salvar uma jovem que se protegia em seu apartamento, mas parece que seu caso foi bastante excepcional”.
Os aliados ocidentais também praticaram violências sexuais no período imediatamente posterior à derrota da Alemanha – há casos de mulheres alemãs, judias, que sobreviveram a campos de concentração e acabaram sendo estupradas. Mas nenhum outro corpo de militares agiu da forma sistemática como os soviéticos.