Depois de dez dias, o 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) chegava ao fim na noite de 24 de fevereiro de 1956. Enquanto os participantes dispersavam, parte dos delegados foi convocada a retornar ao Grande Palácio do Kremlin, em Moscou, para uma última sessão.
Os cerca de 1500 convidados foram informados de que membros da imprensa e dos partidos comunistas de outras nações não teriam acesso. O evento não seria gravado nem haveria espaço para debates. Enquanto os escolhidos se preparavam para voltar ao salão, os principais líderes da União Soviética se aproximavam do palácio em suas limusines.
Pouco antes da meia-noite, Nikolai Bulganin, chefe do Conselho de Ministros da União Soviética, subiu ao palco, abriu a sessão e rapidamente chamou ao microfone o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev, que estava no cargo desde a morte de Josef Stalin, três anos antes.
Durante quatro horas, Kruschev falou sobre as ações de seu antecessor. O discurso, batizado “О культе личности и его последствиях”, ou “Sobre o culto à personalidade e suas consequências”, deixou a plateia em choque – há relatos de casos de enfarto e desmaios entre os espectadores. Ao final, o secretário-geral se retirou entre aplausos nervosos.
Secreto, mas não muito
O discurso, que deveria se manter secreto, chegou rapidamente ao Ocidente. O jornalista britânico John Rettie, correspondente da agência Reuters, recebeu informações da parte de um informante que, segundo ele, só pode ter agido com anuência do Partido.
“Na época, um soviético que se atrevesse a falar com um ocidental sem autorização era automaticamente condenado por espionagem e mandado para os gulags”, John Rettie escreveu para a rede BBC, 50 anos depois do discurso. Os jornalistas viviam em apartamentos protegidos pela polícia secreta, a KGB, aos quais nenhum cidadão comum tinha acesso. Ainda assim, o informante, Kostya Orlov, abordou o jornalista em seus aposentos.
Semanas depois, nos Estados Unidos o jornal americano The New York Times publicou uma cópia do discurso. Ainda que a ordem oficial fosse evitar comentar as falas do líder, elas haviam sido impressas a mando do Partido Comunista para ser distribuído entre pessoas escolhidas a dedos entre os representantes comunistas dos países do Leste Europeu. Uma das cópias chegou às mãos do jornalista polonês Viktor Grievsky, que encaminhou o texto para o serviço secreto de Israel, com quem mantinha contato em busca de asilo político. Dali ele chegou às mãos da CIA, que vazou o documento para o jornal americano.
O discurso de Kruschev irritou os chineses, que acabariam rompendo suas relações até então amigáveis com a União Soviética. Também deixou os partidos comunistas em todo mundo em crise – inclusive no Brasil, onde o secretário geral do Partido Comunista do Brasil Luís Carlos Prestes precisou conter os ânimos dos seguidores decididos a rever os processos internos.
Como lembra afirma o pesquisador Frederico José Falcão, no artigo O “relatório secreto” de Kruschev e o Partido Comunista do Brasil (PCB): Desestalinização e crise, depois de dois meses de intensos debates Prestes defendeu, em carta, o “apoio firme e ativo à União Soviética e demais países do campo socialista”, considerando ser “inadmissível permitir que no seio do Partido sejam desferidos ataques contra a teoria do proletariado e veiculados na imprensa do povo os contrabandos do inimigo de classe”. Por fim, escreveu que “a unidade em torno do Comitê Central é sagrada para todos os comunistas”.
O evento também desencadeou uma série de manifestações populares em diferentes pontos da União Soviética, incluindo a Hungria e a Polônia. Kruschev seria derrubado do poder em 1964, e permaneceria em prisão domiciliar até a morte, em 1971. O discurso, na íntegra, só seria oficialmente divulgado em 1989.
Afinal, o que havia de tão surpreendentemente na fala de 1956? Acontece que, apesar de, em pleno 2020, ainda existirem militantes capazes de defender Stalin, naquela madrugada de 25 de fevereiro Kruschev enterrou a imagem do líder anteriormente chamado na imprensa soviética de “pai das nações”.
Denúncia detalhada
Kruschev começou seu discurso argumentando que o culto em torno de Stalin não tem fundamento no pensamento de Karl Marx e Vladimir Lenin. “Após a morte de Stalin, o Comitê Central começou a implementar uma política de explicar de forma concisa e consistente que é inadmissível e estranho ao espírito do marxismo-leninismo para elevar uma pessoa, para transformá-lo em um super-homem cujas características sobrenaturais, semelhantes às de um deus. Tal crença sobre um homem, e especificamente sobre Stalin, foi cultivada entre nós por muitos anos”.
O sucessor do “pai das nações” também afirmou: “Stalin deu origem ao conceito de ‘inimigo do povo’. Esse termo automaticamente tornou desnecessário que os erros ideológicos de um homem ou homens envolvidos em uma controvérsia fossem comprovados. Ele tornou possível o uso da repressão mais cruel, violando todas as normas da legalidade revolucionária, contra qualquer um que de qualquer forma não concordavam com Stalin”.
O secretário-geral também relatou ter criado uma comissão para investigar os crimes de Stalin, principalmente durante o período conhecido como Grande Expurgo, marcado pela ampla perseguição contra políticos e cidadãos, entre 1934 e 1939, com um saldo de pelo menos 750 mil mortos e mais 1 milhão de pessoas enviadas aos gulags, os campos de trabalho forçado.
A comissão concluiu, por exemplo, que dos 139 membros e candidatos do Comitê Central que haviam sido eleitos no 17º Congresso [do Partido Comunista da União Soviética, realizado em 1934], 98 pessoas, ou seja, 70%, foram presas e mortas a tiro”. Além disso, de 1.966 delegados que participaram daquele evento, 1.108 pessoas foram presas sob a acusação de crimes antirrevolucionários.
Kruschev então se pôs a listar casos específicos de membros do partido, de reputação ilibada, que foram presos e confessaram ter cometido crimes políticos sob tortura. Na sequência, culpou as derrotas iniciais dos russos na Segunda Guerra Mundial ao fato de que Stalin prendeu ou depôs importantes líderes militares, ao mesmo tempo em que confiava na palavra de Adolf Hitler, que garantia que não invadiria a Rússia – o führer descumpriria a promessa em 1941.
Na sequência, culpou o grande líder pelas deportações forçadas de povos inteiros, incluindo os chechenos, os karachais e os balcares. E finalizou com as frases: “Estamos absolutamente certos de que o nosso partido, armado com as resoluções históricas do 20º Congresso, vai levar o povo soviético ao longo do caminho leninista para novos sucessos, para novas vitórias. Viva a bandeira vitoriosa do nosso partido!”
Bode expiatório
Qual era, afinal, o objetivo de Kruschev, ele mesmo um membro influente do Partido Comunista durante o Grande Expurgo, em fazer a denúncia pública de Josef Stalin? “Quando Stálin morreu, em 1953, o caráter personalista de sua autoridade, alicerçado no controle pessoal da polícia política, das Forças Armadas e da mídia, criou um vazio de poder. Ocorreram tumultos e a sociedade pareceu erguer a cabeça diante dos arbítrios de quase quarenta anos”, responde o historiador Edgard Leite Ferreira Neto, professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio).
“Analisando a situação, os dirigentes se moveram para tentar se desvincular desse passado tenebroso. Eliminaram Laurenti Beria, o todo poderoso chefe da NKVD, a polícia política, um psicopata, e iniciaram uma tentativa de abertura, sob a liderança de Kruschev”. Beria seria condenado à morte em dezembro de 1953.
“Pareceu interessante a esses líderes se desvincular do fantasma de Stalin e preservar seu poder absoluto, acenando à sociedade com uma ordem política um pouco mais aberta”, prossegue o historiador. “Muitos presos políticos foram então liberados e muitas certidões de óbitos emitidas. Mas se preocupavam, acima de tudo, com a preservação do poder do Partido sobre o Estado e sobre os corações e mentes da população”.
Nesse sentido, afirma Edgard Leite, “o ‘discurso decreto’ foi uma denúncia do perfil criminoso de Stalin. Não do regime. Foi uma tentativa de responsabilizar alguém pelo fracasso da experiência soviética”. Stalin, diz o professor, não era um caso isolado, mas sim “expressão da natureza mentirosa e brutal de um sistema que se proponha construir uma sociedade de iguais eliminando a natureza desigual dos seres humanos”.
Enquanto a denúncia enfraquecia o regime e retirava grande parte de seu prestígio, a União Soviética, afirma o professor da Unirio, “entrou, a partir de 1964, num período de estagnação que o decompôs lenta e paulatinamente”. O regime soviético, diz ele, “estava condenado a ser permanentemente brutal ou a acabar. O que, no final, aconteceu, com um saldo de dezenas de milhões de mortos”.
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