Em meio a um cenário hostil, os turcos decidem neste domingo (16) se concordam ou não em dar mais poderes a Recep Tayyip Erdogan. Eles votam em um referendo convocado pelo partido governista com o objetivo de consolidar a autoridade do presidente e confirmar a aprovação do governo, divididos pela política e pelo medo. E a vitória de Erdogan não está garantida. A última pesquisa de intenção de votos do instituto ANAR aponta uma vitória apertada do “sim”, com 52% dos votos.
Veja cinco perguntas e respostas sobre a votação de hoje na Turquia
O projeto do novo texto constitucional prevê 18 alterações. Caso o “sim” saia vitorioso, a Turquia deixaria de ser um parlamentarismo e passaria ao sistema presidencialista. O mandato de Erdogan aumentaria de quatro para cinco anos, e ele poderia, potencialmente, ficar no poder até 2029. O cargo de premier seria abolido, o número de deputados subiria de 550 para 600 e a idade mínima para se eleger cairia de 25 para 18 anos. Além disso, o presidente poderia nomear quatro dos 13 juízes para a mais alta corte do país.
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“O governo turco deu um tiro no pé ao organizar o referendo. Eu acredito na vitória do “não”. Com isso, começaremos uma nova fase política, em que o governo terá que fazer alianças e entender que não pode administrar o país sem o apoio dos partidos da oposição” explicou o cientista político Mehmet Perinçek. “Todo o processo do referendo, da convocação à realização, dividiu a Turquia. Os turcos estavam unidos na luta comum contra o terrorismo, mas agora temos uma completa polarização no país.”
Além do partido governista AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), o “sim” é apoiado pelo MHP (Partido do Movimento Nacionalista), representando a direita nacionalista, religiosa e conservadora. Por outro lado, o “não” é apoiado pelos dois partidos de oposição (CHP, ou Partido Republicano do Povo, e HDP, Partido Democrático dos Povos), que abarcam a importante minoria curda e grupos sociais minoritários de esquerda.
Os apoiadores de Erdogan votam “sim” no referendo e desejam uma Turquia forte. Eles creem que concentrar os poderes no Executivo ajudará no combate ao terrorismo.
“Voto “sim” porque a Turquia precisa de estabilidade política. Com o sistema que o governo propõe no referendo, teremos a chance de uma continuidade administrativa, em vez de termos governos destituídos o tempo todo devido a desavenças políticas. O “sim” também é a melhor maneira de vencer inimigos externos e internos”, afirma Süleyman Yumusak, de 23 anos, estudante de Direito.
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O temor em fazer comentários
O “não” é defendido pelos opositores, que temem que a vitória de Erdogan legitime o autoritarismo do presidente e concentre ainda mais o poder nas suas mãos.
“Em um país tão grande e diverso como a Turquia, seria um erro que uma pessoa controlasse tudo, inclusive o Judiciário. Além disso, o país mudou muito nos últimos três anos. E para pior. As pessoas estão com medo, pessimistas ou resignadas. Esse não era o espírito da Turquia”, explica o intérprete Bilge Eroglu, 22 anos.
O medo tem sido um sentimento constante na sociedade turca. Desde julho de 2015, mais de 500 pessoas morreram no país vítimas de atentados terroristas organizados pelo autoproclamado Estado Islâmico ou pelas milícias curdas. Um outro temor dos turcos é o de serem vistos pelo governo como suspeitos de conspiração contra o poder central.
Em 15 de julho do ano passado, houve uma tentativa frustrada de de golpe de Estado. Ancara acusa o líder muçulmano Fethullah Gulen, radicado nos Estados Unidos, de ter conspirado contra o governo, juntamente com seus apoiadores (“gulenistas”). Desde então, a Turquia está em estado de emergência, e mais de cem mil pessoas foram presas, demitidas ou suspensas, alegadamente por terem algum tipo de filiação gulenista.
“O meu marido (turco) trabalha em um dos ministérios aqui e estamos com medo. Muitos colegas dele foram suspensos ou demitidos. E eu parei de usar as redes sociais porque tenho medo de que qualquer comentário, talvez até mesmo de um amigo, seja um motivo para que o governo suspeite dele e da nossa família”, conta uma brasileira que mora na Turquia há cinco anos e preferiu não se identificar.
Votos no exterior serão decisivos
A caça às bruxas contra a oposição afetou funcionários públicos, policiais, militares, professores, jornalistas, intelectuais e juízes. De acordo com dados da oposição, 152 jornalistas estão presos.
“Muita gente diz que apoia Erdogan ou se declara apolítica por não querer ser tachada de antipatriota ou por medo de represálias. Na hora das urnas, espero que a oposição a Erdogan prevaleça. O descontentamento com o governo é muito forte, mas a Turquia está realmente dividida”, diz a brasileira.
Diante de uma sociedade polarizada e um grande número de indecisos, Erdogan foi buscar na Europa os votos dos turcos no exterior. São três milhões fora do país com direito a voto, um número crucial para o governo. No último mês, no entanto, seus partidários foram impedidos de fazer comícios em diversos países europeus. Isso irritou Erdogan e terminou em uma intensa troca de ameaças e acusações entre o governo turco e os dos Países Baixos e da Alemanha.
Durante a crise diplomática, o presidente usou o sentimento patriótico para unificar os turcos contra um suposto mal comum. Bandeiras da Turquia — muitas com o rosto do mandatário — foram mais uma vez levadas às ruas e continuam por todas as partes do país.
A religião também assumiu um papel importante no atual governo da Turquia, país secular há quase cem anos. Erdogan tenta agradar os conservadores com demonstrações públicas da fé islâmica. Além disso, aumentou o imposto sobre o álcool e permitiu que mulheres pudessem usar o véu nas instituições públicas.
“A religião sempre foi algo pessoal. Não me importo em ser amigo de turcos de diferentes origens ou classes. Mas só me sinto confortável sendo amigo de turcos seculares. Antes, até mesmo pessoas religiosas concordavam que não deveríamos misturar religião e política. Tudo mudou”, conta Umit Oncel, 25, psicólogo.
Nem todos veem uma alteração brusca: “Será que tudo mudou de repente mesmo?”, pergunta um amigo de Umit que preferiu não se identificar. “Talvez os turcos sempre tenham sido conservadores e agora estão quase dando amplos poderes ao presidente com quem eles mais se identificam.”
Veja as 5 possíveis consequências do referendo na Turquia
O resultado da consulta influirá no futuro das relações da Turquia com a União Europeia, na questão curda e na evolução das dinâmicas sociais.
A seguir, cinco perguntas para entender o que poderá mudar com o referendo.
Mais ou menos democrático?
Se vencer neste domingo, Erdogan será o detentor de um poder consideravelmente reforçado e poderá, em teoria, ficar no cargo até 2029. O executivo ficará concentrado nas mãos do presidente e o posto de primeiro-ministro desaparecerá.
Seus partidários defendem que uma medida assim é necessária para estabilizar o governo e estabelecer as barreiras claras em relação à justiça e ao poder legislativo.
Mas seus opositores no novo sistema não teriam qualquer contrapoder, o que abriria caminho para um regime autocrático.
Este sistema presidencial “reúne um poder sem precedentes em mãos de um só homem”, enfatiza Alan Makovsky, do Center for American Progress.
Uma vitória do não no referendo seria um desagravo para Erdogan, que se jogou de cabeça na campanha.
Que futuro com a Europa?
As relações entre a Turquia e a União Europeia (UE) se degradaram muito na reta final da campanha, quando Erdogan acusou alguns países europeus de “práticas nazistas”.
Erdogan indicou que a candidatura da Turquia à UE, em porto morto há anos, será colocado “sobre a mesa” depois do referendo. Também reativou o debate sobre a restauração da pena capital, uma linha vermelha para Bruxelas.
“A tática consistente em atacar constantemente à UE (...) visando à política interna, atingiu seu limite”, destaca Marc Pierini, do centro de reflexão Carnegie Europe.
Se Erdogan conseguir uma ampla vitória no referendo, poderá ter o espaço necessário para enterrar o projeto de adesão, para privilegiar as relações comerciais, mediante uma união alfandegária reforçada, por exemplo.
Guerra ou paz com curdos?
Desde a ruptura da trégua histórica com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) em 2015, o sudeste da Turquia mergulhou numa espiral de confrontos entre as forças turcas e os separatistas curdos.
A ofensiva militar de Ancara foi redobrada com uma repressão maior contra os círculos políticos e midiáticos pró-curdos, acusados de atividades terroristas vinculadas ao PKK.
Mas se o ‘sim’ vencer por estreita vantagem no referendo, Erdogan poderá se ver obrigado a adotar um enfoque mais conciliador da questão turca, aponta Asli Aydintasbas, especialista do Conselho Europeu Relações Internacionales.
No entnto, agora é a vez da retórica bélica e a imprensa ligada ao poder informa que, depois do referendo, será lançada uma ofensiva terrestre contra o PKK no norte do Iraque.
Reconciliação ou polarização?
A sociedade turca se polarizou nos últimos anos em torno da figura de Erdogan. Durante a campanha do referendo, o presidente demonizou seus opositores, acusando-os de conluio com os terroristas e os golpistas.
“Erdogan vence, mas no final, uma metade do país o ama e a outra o detesta. Daí vem a origem da crise da Turquia moderna”, explica Soner Cagaptay, analista do Washington Institute.
Mas Erdogan, que se aliou aos ultranacionalistas para vencer a batalha do referendo, deve fazer uso do pragmatismo do passad.
Alguns observadores esperam que adote um discurso mais tranquilizador depois da votação, se vencer.
Recuperação econômica ou crise?
Os mercados apostam prudentemente numa vitória do ‘sim’ e esperam uma volta à estabilidade tão necessária à Turquia, atingida há um ano e meio por uma onda de atentados e sacudida por uma tentativa de golpe de Estado em julho.
Mas, a meio prazo, domina a incerteza. O enfraquecimento da confiança dos investidores nas instituições, uma polarização crescente da sociedade e um atraso das reformas estruturais poderão afetar o crescimento.
Uma vitória do ‘sim’ poderá ser saudado pelos mercados em um curto prazo, indica a consultora BCG Partners, de Istambul. “Mas o crescimento continua frágil e as implicações em longo prazo do sistema (presidencial) ainda são desconhecidas”, acrescenta.
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