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Pandemia

Em crise por causa da pandemia, restaurantes viram reféns de aplicativos

Entregadores de aplicativos como o iFood promoveram uma paralisação recentemente para protestar contra as condições de trabalho.
Aplicativos: taxas e contratos de exclusividade atrapalham os restaurantes, que já estão com as finanças combalidas (Foto: Gerson Klaina/Tribuna)

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A pandemia de Covid-19, que já causou mais de 280 mil mortes no Brasil, também tem causado estragos no setor de bares e restaurantes. Segundo dados de recente pesquisa da Associação Brasileira de Bares Restaurantes (Abrasel) o setor sofreu uma retração de 25% em 2020. Cerca de 300 mil empresas fecharam e mais de um milhão de empregos foram perdidos.

Com as restrições para tentar conter a pandemia impostas ao setor, considerado não essencial pelo poder público, bares e restaurantes foram obrigados a utilizar o serviço de aplicativos como iFood e Uber Eats para fazer vendas e até realizar as entregas. Mas muitos restaurantes têm reclamado das taxas cobradas, que podem ceifar até 30% do seu faturamento.

Outra queixa é uma suposta prática do iFood, empresa que detém 70% desse mercado, que privilegiaria no ranqueamento do aplicativo apenas os estabelecimentos que oferecem cupons de desconto. De acordo com restaurantes ouvidos pela reportagem, isso os coloca numa situação insustentável: ou oferecem os cupons e vendem com lucro ínfimo, ou deixam de oferecê-los e encaram a inevitável queda nas vendas.

Além disso, o iFood foi denunciado no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), acusado de práticas anticompetitivas por instituições e outros aplicativos, como Rappi e Uber Eats. Como resposta, no último dia 10, o Cade anunciou a imposição de uma medida preventiva contra o iFood, impedindo o aplicativo de celebrar novos contratos de exclusividade com restaurantes.

"Funcionário do iFood"

Tarcísio Mattosinho, de 42 anos, dono da hamburgueria Dom Carnívoro, de Maringá (PR), conta que nunca teve problemas de caixa, mas durante a pandemia seu faturamento sofreu queda de 40%. Acabou tendo que reduzir pela metade o número de colaboradores. A hamburgueria, cujo diferencial era o atendimento presencial, deu prioridade para o delivery, que antes da pandemia era responsável por apenas 15 % do faturamento. Essa relação foi invertida a partir daí, chegando a 88% do faturamento no auge da pandemia.

O que era pra ser uma solução se tornou um problema. Tarcísio percebeu que os cupons de desconto, que são oferecidos aos clientes pelo aplicativo, derrubavam o seu faturamento. A alternativa, não oferecer os cupons, faz com que o estabelecimento seja colocado no "fim da fila" do app, derrubando drasticamente as vendas. Ele lembra que os cupons eram limitados e subsidiados pelo próprio iFood no início, mas atualmente são pagos pelo próprio comerciante e podem chegar até a 200 por dia.

“O iFood te entrega esses cupons e você começa a ter pedidos. Ao dar os cupons, eles te colocam no topo da lista de procura. A lista, que era orgânica, não é mais. Você acaba tendo mais visibilidade, mas você subsidia e o iFood entrega pra quem ele achar melhor, segundo critérios deles. O cliente passa a ser fiel ao iFood, não ao restaurante. Eu acredito que é uma cultura predatória do iFood”.

O financeiro de Tarcísio o alertou que o Custo da Mercadoria Vendida (CMV), que nas vendas presenciais era de 27%, passou a 55% no delivery. Quando levado em consideração o cupom, chegava a quase 90%.

O CMV é um índice que ajuda os restaurantes a saberem quanto é gasto para produzir e distribuir determinado alimento e quanto sobra de lucro. Segundo especialistas, um índice de CMV ideal está na faixa de 35%. Mas esse valor pode variar de produto a produto. Um café, por exemplo, teria um CMV de 15%, enquanto um sanduíche, 35%. Comida por quilo tem CMV de 40% a 45%. O gigante Burger King, que tem ações listadas na bolsa e por isso os dados são abertos, opera com CMV de 40%.

Para ilustrar a situação, podemos utilizar como exemplo a venda hipotética de um hambúrguer no valor de R$ 10,00.  No caso dessa venda ser feita no balcão, R$ 2,70 seria o valor gasto com os ingredientes e a sua produção, Caso seja feita via iFood, mas com entrega sob responsabilidade do restaurante, esse custo vai a R$ 3,90. Se o comerciante utilizar o sistema de entrega do iFood, o custo totaliza R$ 5,40. E, se junto disso o estabelecimento oferece cupom, o custo pode chegar a R$ 9,00, sobrando apenas 1 real para pagar demais custos com funcionários e instalações.

Indignado com essa questão, Tarcísio resolveu não oferecer mais cupons pelo iFood e decidiu denunciar essa prática da empresa.

"Eu estava com a cozinha a toda, em plena pandemia, tendo que contratar gente, e percebi que o que sobrava era muito pouco. Não valeria a pena os riscos de contratação e de operação, pois você tem custos indiretos, que não estão no seu CMV. Você não tem um negócio mais, você é um funcionário do iFood”, diz Tarcísio.

Diante dos custos crescentes, o restaurante de Tarcísio abandonou os cupons e a entrega grátis. "Eu não vou ficar trabalhando pros outros, numa cultura que não é ganha-ganha, ela é ganha-perde. E tem restaurante fechando pra alimentar essa cultura”, afirma.

Apesar de toda essa irritação com o sistema, Tarcísio não deixou de utilizar a plataforma. Ele conta que, embora denuncie algumas práticas do iFood, entende que as taxas cobradas até são compreensíveis, pois há um trabalho forte de marketing e muito esforço envolvido no desenvolvimento e manutenção do iFood e outros aplicativos para melhorar a experiência dos usuários.

Proximidade com o cliente

Essa situação também é compartilhada pelo empresário alagoano Thiago Falcão, proprietário do restaurante Mestre Cuca, com 23 anos de existência. Embora o iFood seja o aplicativo mais usado, Thiago conta que utiliza todos os outros disponíveis no mercado e realiza vendas diretamente pelo WhatsApp. Essa diversificação teria a intenção de diminuir a dependência do aplicativo.

Segundo Thiago, o principal problema dos aplicativos é a mudança da relação entre clientes e restaurantes, que antes era direta e de proximidade. Com os aplicativos como intermediários, os clientes passam a ser dessas empresas e não de quem fornece o alimento. Isso faria os restaurantes entrarem numa concorrência com os aplicativos.

"Para nós comerciantes, que já sofremos muito com essas taxas altíssimas de aplicativo, termina sendo injusto. Porque não conseguimos mais tratar a nossa clientela de forma pessoal”, afirma.

Thiago também reclama da prática do iFood em relação aos cupons. De acordo com ele, os clientes são facilmente atraídos pelos descontos e fica impossível não oferecê-los. Mas isso faz com que os restaurantes fiquem no prejuízo, pois ainda restam outros gastos como impostos, energia elétrica, gás e funcionários.

“Se você tem a possibilidade de pagar só 30% do valor que você gasta normalmente é no mínimo atrativo. É fato, se você não estiver dentro das abas que o iFood tem, você não vende. Então, para que você venda, se vê obrigado a ofertar esses cupons. Mas dentro dessa lógica, na qual você paga uma taxa de 27% dentro do iFood e dá um desconto de 50%, nem os insumos serão cobertos”.

Falta de transparência

Célio Salles, conselheiro de Administração da Associação Brasileira de Bares Restaurantes (Abrasel), contou à Gazeta do Povo que a situação do setor está dramática. Além das restrições impostas pelos governos estaduais e municipais, os estabelecimentos enfrentam dificuldades com o ajuste dos aluguéis e o preço elevado dos alimentos.

Segundo Salles, os restaurantes já utilizaram todos os recursos que tinham para tentar se manter: linhas de crédito, enxugamentos de gastos e a mudança para o delivery. No entanto nada disso está sendo suficiente e quanto mais a situação se estender, mais crescerá a taxa de mortalidade do setor.

Sobre os aplicativos, Salles alerta que existem diferentes perfis de restaurantes, e que por esse motivo alguns sentem mais dificuldade que outros com delivery. Alguns seriam plenamente atendidos pelos aplicativos. Ainda assim, afirma ele, existem diversas deficiências compartilhadas pelos que aderem à essa tecnologia que dificultam a vida dos restaurantes. Como casos em que não há entregador disponível, processos de cancelamento injustos, insegurança nas operações financeiras e falta de transparência de dados.

Outros problemas apontados por Salles seriam a grande concorrência dentro das plataformas e as altas taxas cobradas pelos aplicativos.

“Se você quer comprar uma pizza na sua vizinhança você vai lembrar de 5 ou 10 pizzarias. Mas no app haverá 200 pizzarias. Esse ambiente favorece uma disputa por preços muito forte e gera um elemento ruim para o mercado, pois dificulta muito a sobrevivência dos restaurantes. As taxas são de 20% a 30%. O restaurante que opere com custo de mercadoria alto, e ainda pague essas taxas, quase não tem para cobrir os seus custos, quanto mais ter lucro”, diz Salles.

Regras do jogo

Nem todos os restaurantes estão insatisfeitos com o iFood. É o caso do curitibano Jonathan Borato, dono da Pizzaria Predileta, citada pelo iFood para que pudesse dar sua versão em relação à empresa.

Com um contrato de exclusividade com o iFood, que a impede de utilizar outros aplicativos, a Pizzaria Predileta opera também com um aplicativo próprio. Com o foco desde o início de suas operações no delivery, a Predileta teve facilidade em se adaptar à realidade trazida pela pandemia.

Perguntado sobre o motivo de ter sido citado pelo iFood para falar com a nossa reportagem, Borato disse que nunca tiveram problemas no relacionamento com o app e que houve aumento de vendas com o iFood.

“A gente tem um relacionamento muito bom com o iFood. Alavancou bastante nossas vendas depois que tivemos essa parceria com eles. De quando começamos até hoje, tivemos mais de 100% de aumento de vendas. Não tenho do que reclamar.”

De acordo com o contador, mestre em economia e professor de finanças empresariais carioca Marcelo Alvim, de 50 anos, as taxas praticadas pelos aplicativos são realmente altas. Mas Alvim alerta que é a “regra do jogo” e quem entra nessa situação já deve entrar ciente disso.

Alvim apresenta o dilema. Se o estabelecimento quer vender mais, tem que divulgar em propaganda e essa vai embutida nos custos do produto. Mas como o pequeno comerciante não tem capital para realizar uma grande campanha de marketing, acaba obrigado a entrar nas redes que têm um grande alcance.

“Você quer participar do jogo comercial com o iFood? Você tem que pagar o que eles querem. O preço a pagar é esse daí , infelizmente. Está havendo uma transferência de riqueza dos pequenos comerciantes às grandes empresas de tecnologia”, diz Alvim.

Alternativas

Na opinião de Marcelo Alvim, uma alternativa aos aplicativos de comida é a união dos estabelecimentos e a criação de aplicativos próprios em cooperativas, como a rede Camarão Camarada, que desenvolveu o próprio aplicativo e dá descontos aos clientes que compram por ela.

Para Célio Salles, da Abrasel, a saída estaria no lançamento de aplicativos próprios pelos comerciantes, com a oferta de descontos. "Mas existe uma barreira que é o limite de aplicativos que os telefones podem ter. Um celular tem limitação de memória e, por essa razão, as pessoas não baixam aplicativos indiscriminadamente."

A Abrasel fez uma denúncia junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) sobre práticas anticompetitivas do iFood. De acordo com a denúncia, feita também por outros aplicativos como o Rappi e o Uber Eats, o iFood estaria adotando práticas restritivas à concorrência, através da massiva celebração de contratos de exclusividade com restaurantes.

Em 10/03 o Cade impôs medida preventiva contra o iFood impedindo novos contratos de exclusividade e alteração dos contratos já celebrados sem a cláusula de exclusividade. A nota do Cade afirma que a decisão foi tomada em razão de o iFood continuar realizando esses contratos mesmo ao longo das investigações.

“A exclusividade é uma prática notoriamente condenada pelo Cade e por órgãos similares, e a Abrasel tem histórico de combatê-la. Importante salientar que a gente não está condenando o iFood, mas combatendo uma prática considerada danosa. Nenhum restaurante deve ser refém de um dispositivo de terceiros”, explica Salles.

A segunda iniciativa é o sistema “Open Delivery” que está sendo produzido pela Abrasel em parceria com entidades do mercado de apps, tecnologia e instituições financeiras. A intenção é padronizar em um só lugar o sistema de cardápios e recebimento de pedidos.  Segundo Salles, a expectativa é que em dois meses o aplicativo entre em fase de testes.

O que dizem as empresas

O iFood enviou nota explicando que, por conta do agravamento da pandemia e da volta de medidas restritivas mais rígidas para o comércio em muitas cidades brasileiras, anunciou na sexta-feira (05) uma nova redução de taxas para mais de 200 mil restaurantes parceiros. A opção com entrega via iFood passa de 23% para 18% (embora donos de restaurante apontem que esse valor já era aplicado anteriormente). Para os restaurantes que operam com entrega própria a taxa vai de 12% para 11%. Segundo o iFood, as taxas reduzidas irão até o fim de março.

Sobre a medida preventida do Cade, "a empresa vê com naturalidade a instauração de um procedimento preparatório pelo Cade para entender melhor o mercado de entregas de comida no Brasil. A empresa coloca-se à disposição da autoridade regulatória, como sempre fez, para esclarecer quaisquer aspectos sobre as suas atividades. O IFood reforça, ainda, estar convicto de que o mercado é saudável e que as suas políticas comerciais são benéficas a todas as partes do setor de alimentação, sobretudo restaurantes e consumidores”, diz o iFood sobre os contratos de exclusividade.

Sobre os cupons, o iFood conta que a responsabilidade sobre eles é dos estabelecimentos, que podem escolher quando parar de usá-los. Também confirma que privilegia em sua plataforma os estabelecimentos que oferecem cupons. “Em relação às políticas de cupons promocionais na empresa, o iFood cria diversas promoções para os restaurantes ganharem destaque. Uma das opções que o estabelecimento pode optar diretamente pelo Portal do Parceiro são os cupons de desconto para oferecer aos seus clientes. Existem cupons de desconto nos valores de R$ 5, R$ 10 e R$ 20 (com pedidos mínimos de R$ 15, R$ 25 e R$ 50, respectivamente), para uso exclusivo no restaurante que podem ser usados conforme a preferência do próprio parceiro como oferecer no almoço ou jantar, ainda é possível visualizar os retornos que a promoção trouxe e parar quando quiser. O limite é determinado pelo próprio restaurante. Os parceiros que oferecem descontos recebem uma tag indicativa com o valor do cupom disponível, que facilita a visibilidade dos clientes. Esses restaurantes entram ainda na lista do aplicativo ‘Restaurantes com cupom’, que compila os parceiros que oferecem o benefício aos usuários.”

Segundo nota enviada pelo Uber Eats a empresa também lançou diversos programas de apoio aos seus usuários. Zerou a taxa para transferência de pagamentos diários e  a comissão de serviço dos restaurantes quando os usuários fizerem um pedido pelo app na modalidade “Para Retirar”. Também deixaram de cobrar taxa, temporariamente, nos pedidos feitos na plataforma online disponibilizada gratuitamente pelo Uber Eats aos restaurantes. Além disso, reforçariam ações de marketing para pequenos e médios restaurantes.

Sobre sua política em relação a cupons de desconto, o Uber Eats explicou que os restaurantes têm à sua disposição uma ferramenta dentro da plataforma que permite que eles criem suas próprias promoções dentro do app, além de uma série de campanhas, visando atrair novos consumidores. Mas alerta sobre a utilização de cupons.

"Sabemos que a utilização excessiva de incentivo promocional não é sustentável e, por isso, é muito importante para nós que não nos tornemos reféns da lógica irracional das promoções e dos subsídios, colocando esses recursos em prática sempre de forma estratégica e pontual.”

Sobre ação protocolada no Cade contra o iFood, o Uber Eats afirma acreditar "que contratos de exclusividade devem trazer vantagens para os restaurantes parceiros e não devem ser usados como uma ferramenta para manter esses estabelecimentos reféns de uma única plataforma. Por isso, apoiamos uma investigação para apurar acusações feitas por restaurantes parceiros sobre ameaças de retaliações abusivas ligadas a contratos de exclusividade. Essas práticas, quando impostas por uma plataforma dominante, podem prejudicar parceiros, causar danos ao mercado e limitar a livre concorrência”.

A 99Food afirma que "desde o início da sua operação tem como característica o apoio aos pequenos e médios restaurantes locais, oferecendo alternativas que impulsionam o negócio. Um bom exemplo é a campanha chamada Compre do Pequeno, que oferece uma série de benefícios para os restaurantes parceiros."

A empresa ainda cita o "repasse semanal, um diferencial que ajuda no fluxo de caixa, que já tem sido afetado por conta da pandemia, ainda mais agora com o lockdown."

Sobre a exclusividade dos restaurantes, a empresa afirma que não a exige. "Os parceiros devem e têm o direito e toda a liberdade para escolherem em qual e/ou quais plataformas querem trabalhar".

Entramos em contato com a Rappi, mas até o momento da publicação desta reportagem não houve retorno.

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