Três semanas depois da morte do papa emérito Bento XVI, um livro póstumo de sua autoria chegou às livrarias (por ora, apenas às livrarias italianas, e apenas na língua local). A obra traz uma combinação de textos escritos por Joseph Ratzinger nos seus últimos anos de vida, quando já havia deixado o papado. São dezesseis artigos ao todo. Quatorze já haviam sido publicados de forma escrita ou em discurso; dois são inéditos. Embora não traga revelações bombásticas, o livro — cujo título pode ser traduzido livremente como “O Que é o Cristianismo” traz algumas surpresas. A primeira delas é o livro em si: a obra foi publicada sem anúncio prévio, e apenas em italiano.
Além disso, a apresentação da obra já traz uma confissão de natureza pessoal. Nela, um dos organizadores do livro, o escritor e teólogo Elio Guerriero — autor de uma das biografias de Bento XVI — revela o teor de uma carta que lhe foi enviada por Joseph Ratzinger. O papa emérito afirma que não gostaria de publicar mais livro algum enquanto estivesse vivo. "Da minha parte, em vida, não quero publicar mais nada. A fúria dos círculos contrários a mim na Alemanha é tão forte que o surgimento de qualquer palavra minha de imediato provoca da parte deles uma gritaria assassina. Quero poupar disto a mim mesmo e à cristandade", escreveu Bento XVI.
A Igreja Católica na Alemanha, terra-natal do papa emérito, tem se envolvido em uma disputa com a Santa Sé e setores mais tradicionais da Igreja. Um número significativo dos bispos alemães discorda, dentre outras coisas, do veto ao reconhecimento de casais do mesmo sexo. Bento XVI foi por décadas o maior expoente de uma linhagem mais ortodoxa e apegada à tradição da Igreja.
Textos inéditos
Em meio a transcrições de entrevistas, cartas e discursos, os dois textos do livro inéditos tratam de nuances teológicas. Um deles, com o título de “O que é a religião”, traz reflexões profundas, apresentadas de forma elegante, sobre as características únicas do Cristianismo diante de outros credos. Depois de tratar dos cultos pagãos e de outras religiões monoteístas, Bento XVI concluiu, sem subterfúgios: "Toda a discussão da história das religiões entre Deus e os deuses não termina com o desaparecimento do próprio Deus, como uma ficção. Termina, em vez disso, com a vitória do único Deus verdadeiro sobre os deuses que não são Deus."
O segundo artigo inédito ganhou o título de “O significado da comunhão” e aborda a função da santa ceia nas celebrações cristãs. Neste texto, o papa emérito expõe algumas das discordâncias teológicas entre católicos e protestantes — especialmente sobre a presença real, ou apenas simbólica, de Cristo no compartilhamento do pão e do vinho.
Além de Guerriero, o livro foi editado pelo monsenhor Georg Gänswein, que foi secretário pessoal do papa emérito. Mesmo os trechos não-inéditos do livro ganham um peso especial por terem sido selecionados pelo próprio Ratzinger para compor a obra que, ele sabia, seria o seu último testamento público. Neles, o leitor pode encontrar o mesmo tipo de clareza e firmeza que tornaram o sacerdote alemão conhecido muito antes de ele se tornar papa, em 2005.
Os textos que compõem o livro não fogem da temática — e da postura — das obras anteriores de Bento XVI. São reflexões que conciliam uma observação astuta do momento atual, um vasto conhecimento histórico e uma visão teológica refinada. Os artigos incluem comentários sobre a rejeição pós-moderna da verdade, as relações com muçulmanos e judeus e a superioridade da música do Ocidente. "A música ocidental tem algo único, que não encontra igual nas outras culturas", escreve ele. A explicação: ela carrega em si uma "demonstração da verdade do cristianismo".
“Clubes homossexuais”
Os trechos mais controversos do livro tratam dos escândalos sexuais da igreja. Eles fazem parte de um artigo publicado em abril de 2019 em um periódico alemão e, em seguida, no jornal italiano Corriere della Sera. Nos escritos, Ratzinger faz menção a um encontro que o papa Francisco manteve em 2019 com todos os presidentes das conferências episcopais do mundo. O objetivo era articular uma resposta aos escândalos sexuais envolvendo sacerdotes.
O papa emérito diz que, à época, a constatação foi assustadora: “Em diversos seminários se formaram ‘clubes’ homossexuais que agiam mais ou menos abertamente, e que claramente transformaram o clima nos seminários", ele escreve. E acrescenta: "A Santa Sé sabia desses problemas, sem ser informada em detalhes.”
Bento XVI diz ainda que, apesar de o Vaticano ter tentado agir, "muitas forças se uniram para ocultar a situação real". E acrescenta que, em "não poucos seminários", estudantes que eram flagrados lendo livros do próprio Ratzinger eram considerados inidôneos para o sacerdócio. "Os meus livros foram recolhidos como literatura nociva e eram, por assim dizer, lidos somente às escondidas”, relata.
Na mesma passagem, ele também conta como um bispo, que antes havia sido reitor de um seminário, autorizou que os seminaristas assistissem filmes pornográficos, "presumivelmente com a intenção de desta forma torná-los capazes de resistir contra um comportamento contrário à fé.”
Como resposta à falta de punição efetiva de padres acusados de pedofilia, Bento XVI pede "um direito canônico equilibrado", que não seja "garantista" apenas na defesa dos direitos dos acusados, mas que também proteja a fé, "que igualmente é um bem importante protegido pela lei"."O que devemos fazer? Devemos criar uma outra Igreja para que as coisas possam se ajustar? Esse experimento já foi feito e já fracassou", ele escreve, em referência à Reforma Protestante. "Só o amor e a obediência ao nosso Senhor Jesus Cristo podem indicar o caminho correto", complementa.
Para Bento XVI, culpa dos escândalos de pedofilia envolvendo a Igreja se deve, em parte, à revolução sexual. “Nos anos 60, se constatou um processo silencioso, de uma ordem de grandeza sem precedentes na história da igreja”, argumenta ele, que completa: “Se pode afirmar que no vintênio 1960-1980 os critérios válidos praticamente em todas as eras no tema da sexualidade foram completamente desfeitos.”
Bento XVI reservou palavras duras à revolução sexual que teve início nos anos 1960. "Entre as liberdades que a revolução de 1968 queria conquistar estava também a liberdade sexual total, que não tolerava mais nenhuma norma. A propensão para a violência que caracterizou aqueles anos está intimamente ligada a este colapso espiritual", argumenta. Além disso, ele afirma, a rejeição da ideia de Deus é o caminho para a falta de limites. "Na verdade, a morte de Deus em uma sociedade significa também o fim da sua liberdade, porque morre o sentido que indica o rumo", escreve.
A quem espera críticas ao Papa Francisco, o livro não trará novidades. "Quero agradecer ao papa Francisco por tudo aquilo que ele faz para demonstrar continuamente a luz de Deus que ainda hoje não se enfraqueceu", afirma Bento XVI, no mesmo artigo.
Opção pelo silêncio
O livro recém-lançado também revela que Bento XVI estava lúcido, e produzindo, até o seu último ano de vida no monastério Mater Ecclesiae, onde passou os últimos anos de vida (o prefácio da obra foi concluído por ele no começo de maio, oito meses antes de sua morte). No breve prefácio da obra, Ratzinger explica a razão de ter feito tão poucas declarações públicas nos quase dez anos em que viveu como papa emérito. Ele diz que aprendeu a admirar São José, cujo nome carregava. "Quanto mais envelheço, mais me torna clara a figura do meu patrono. Dele não é nos é transmitida palavra alguma, mas a sua capacidade de escutar e agir. Compreendo cada vez mais que o próprio silêncio dele fala e, mais do que ao conhecimento científico, quer me guiar à sabedoria.”.
A inesperada obra final de Bento XVI também suscita perguntas. É razoável supor que, em silêncio, ele tenha produzido outros escritos na última década. Do que tratariam esses textos? Quais são as cartas que Elio Guerriero ainda não trouxe a público? Na resposta dessas perguntas pode estar uma explicação definitiva sobre a (ainda nebulosa) renúncia do papa, há exatos dez anos.
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