Famílias inteiras morando amontoadas em um barracão nos fundos da casa do senhor. Desde muito novos, os escravos trabalham sem salário, recebendo apenas um mínimo de alimentos. Fugas são punidas com tortura. E os filhos das escravas pertencem automaticamente ao proprietário daquelas terras – e pessoas.
Comum em livros de história, essa descrição parece não mais se aplicar ao século 21. A definição contemporânea de escravidão foi alterada e abarca trabalho análogo à escravidão e tráfico de humanos para fins sexuais, situações em que o salário é menor do que supostas dívidas cobradas pelo patrão e o direito de ir e vir é cerceado.
São casos em que as vítimas não são oficialmente escravas, ainda que na prática sejam forçadas a permanecer vinculadas aos patrões, ou aos maridos, nos casos de casamentos forçados. De acordo com o Global Slavery Index vivem nessa situação aproximadamente 40,3 milhões de pessoas no mundo. Os países que lideram essa estatística são Camboja, Paquistão, Afeganistão, Irã, Sudão do Sul, Etiópia, Somália, Mauritânia. No Brasil, entre 2003 e 2018, 45 mil pessoas foram resgatadas de em situação análoga à escravidão, especialmente em ambiente rural. O Ministério Público do Trabalho recebe aproximadamente mil denúncias por ano.
“Em um aspecto, a escravidão moderna é diferente daquela que se desenvolveu entre os séculos 16 e 19, no Oceano Atlântico mas também no Oceano Índico, no Império Otomano e virtualmente no mundo inteiro da época: atualmente, ela é ilegal no planeta inteiro. Até o século 19, era aberta, legal e financiada pelo Estado”, explica Damian Pargas, professor de história da Universidade Leiden, na Holanda. Nesse sentido, diz ele, ao se tornar ilegal, “a escravidão moderna é uma prática, enquanto que a antiga era uma instituição”.
Donos de pessoas
No entanto, ainda existem casos de escravidão declarada, em que um patrão mantém um grupo de pessoas oficialmente sob seu jugo, que é reconhecido pela comunidade no entorno, mesmo que não tenha valor legal. É assim, por exemplo, no interior do Mali, país do oeste da África com 19 milhões de habitantes, pouco menos do que a população da Grande São Paulo, e 1,2 milhão de quilômetros quadrados, o equivalente à área do Pará. Ali, a escravidão é tão corriqueira que, em 2002, a jornalista americana Kira Salak, em viagem ao trabalho ao país, comprou dois escravos a fim de libertá-los.
A escravidão foi formalmente abolida em 1905, quando o país era colônia francesa, mas o costume se manteve. Algumas das etnias da região se organizam em castas e aceitam que os grupos considerados inferiores sejam comprados e vendidos. Quem desobedece ao senhor costuma ser mantido amarrado por dias, no meio da vila, para que o castigo sirva de exemplo.
No país vizinho, a Mauritânia, a entidade australiana Walk Free Foundation, que produz o Global Slavery Index, estima que 4% dos 4 milhões de habitantes (ou seja, 160 mil pessoas) sejam escravas à moda antiga. Quando se amplia a definição de escravidão para os padrões atuais, a ONG local SOS Slavery estima que o percentual sobe para 20% do total da população total, que ocupa uma área de 1 milhão de quilômetros quadrados.
Os 4% formam um grupo de pessoas que não têm renda, sobrenome, nem direitos sobre os próprios filhos. “Nós simplesmente crescemos e vivemos dentro dessa hierarquia social”, relatou o mauritânio Malouma Said, ex-escravo e atualmente ativista contrário à prática em seu país. “Os escravos acreditam que, se não obedecerem a seus mestres, não vão ao paraíso”.
A Mauritânia, aliás, foi o último país do planeta a abolir oficialmente a escravidão, e o fez apenas em 1981. A prática foi criminalizada em 2007. Desde então, só quatro senhores de escravos foram condenados. Um deles passou dois anos na prisão. O outro, cinco anos. Em 2018, uma mulher foi condenada a dez anos de cárcere e um homem, a 20 anos (mas ele está foragido).
Prática disseminada
“A essência da escravidão é uma pessoa tratar outra como propriedade”, diz o professor Damian Pargas. “Ainda existem casos de escravidão literal, ainda que não sabemos com precisão quantas são vítimas, porque muitas organizações, ainda que bem intencionadas, usam o termo ‘escravidão’ para se referir a todos os casos de exploração, abuso e trabalho forçado”. Ainda assim, afirma ele, sabe-se que a prática é comum “em partes remotas da Nigéria e do Mali, onde as leis islâmicas que permitem a escravidão são aceitas, no lugar das leis do Estado que proíbem a escravidão”.
A escravidão formal, aceita pela tradição, também é encontrada em outros países africanos, como Nigéria, Togo, Benin, Gana e Somália – regiões onde é comum que os senhores de escravos vendam crianças para lutar nas guerras internas dos países vizinhos. Na Libéria e em Serra Leoa, os escravos são utilizados na exploração ilegal de minas de diamante.
Em Gana, mantém-se uma prática centenária conhecida como trokosi, que consiste na seleção de garotas virgens para se tornarem escravas de templos religiosos. Elas são consideradas noivas de deuses, mas quem força o ato sexual em nome das entidades sobrenaturais são os sacerdotes.
Elas são também obrigadas a cozinhar, fazer faxina ou trabalhar na colheita. “Pais oferecem suas filhas virgens para servir como escravas sexuais para pagar pelos pecados cometidos por membros das famílias”, descreve, em artigo sobre o tema, o professor da Universidade Central de Tecnologia da África do Sul Dennis Ya Dzansi.
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