• Carregando...
Repressão a protestos se intensificou na Venezuela em abril deste ano | FEDERICO PARRA/
AFP
Repressão a protestos se intensificou na Venezuela em abril deste ano| Foto: FEDERICO PARRA/ AFP

Já existe algum consenso sobre o tema. Há uma ditadura na Venezuela. A definição chega depois quatro meses de protestos na rua com repressão brutal; a aniquilação das instituições e poderes constitucionais; destituição, aprisionamento e perseguição de prefeitos e outros funcionários; inabilitações políticas; mais de 6 mil detenções arbitrarias, torturas, e centenas de julgamentos militares de civis. Entre abril e agosto de 2017, as mortes associadas com a repressão de protestos na Venezuela superam uma centena; aproximadamente 35% das 434 mortes oficiais nos 20 anos de ditadura no Brasil - número apontado no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, apresentado ao governo Dilma Rousseff, em 2014.

Leia também: Maduro manda prender marido de procuradora opositora

Presidentes, chanceleres e líderes de opinião do hemisfério já o reconhecem publicamente. Está à vista do mundo todo. As mortes são contadas e informadas "a quente", no momento em que ocorrem. Há sempre lamentadores em tempo real, mães e pais quase sempre. Mídia, ONGs, líderes políticos e a Procuradora-Geral Luisa Ortega fazem contas que se difundem através de redes sociais. Nos últimos quatro meses, o saldo é de 120 a 163 mortes, dependendo da fonte, em circunstâncias associadas a protestos, saques e tumultos. A maioria ocorre por armas de fogo, tiros de grupos civis pró-governo armados ou forças de segurança (pelo menos em 73 dos casos, segundo a ONU). 

Ainda que sempre em disputa, os números desta ditadura do século XXI não esperam por comissões da verdade. E em grande parte, isso se desenrola a favor do ditador. A difusão das suas atrocidades reforça o medo generalizado e a ameaça demostra o que ele é capaz de fazer. 

Venezuela reúne, em quatro meses, mais de 6,7 mil protestosRONALDO SCHEMIDT/ AFP

“O que não se consegue com votos, se conseguirá com balas” 

Maduro não é – nem quer ser - sutil com suas ameaças públicas. Ele prometeu balas no final de junho deste ano, em um evento da campanha eleitoral das eleições impostas para selecionar os membros da Assembleia Nacional Constituinte. Não é a primeira vez que ele ou outro porta-voz do governo ameaça aos cidadãos com violência. E apesar da repressão contra o protesto, a censura e o número de prisões políticas e torturas maiores desde 2014 no governo chavista, é com a eleição fraudulenta e instalação forçada da Constituinte (que foi questionada sobre seus resultados pela própria empresa que fornece o serviço de votação automatizado), que a comunidade internacional e outros atores públicos passaram a considerar que a ditadura de Maduro se consagrou. 

A Assembleia Constituinte, um grupo de 545 pessoas controladas pela esposa de Maduro, a chanceler Delcy Rodriguez, e o militar Diosdado Cabello, foi instalada na sede do parlamento –com ajuda e presença das forças militares -, para funcionar pelo menos por dois anos e tomar decisões de todos os tipos por cima da Constituição ainda em vigor. Já destituiu a procuradora-geral Luisa Ortega e nomeou ao ombudsman chavista Tarek William Saab em seu lugar. Espera-se que ele persiga e condene à prisão deputados da oposição e desmantele por completo o parlamento. Não está descartado que a Constituinte aumente o mandato de Maduro; ou, eventualmente, o tire da presidência. 

A Constituinte poderia ser vista como a encarregada de emitir o equivalente aos 17 Atos Institucionais que regeram o funcionamento da ditadura brasileira. 

Ditadura entre latino-americanos

“Não podemos ter um regime ditatorial entre nós”, disse o chanceler brasileiro Aloisio Nunes, diante das câmeras em 8 de agosto, por ocasião da Declaração de Lima. Se referia especificamente ao Mercosul, a aliança que tanto custou ao Chávez para entrar, e da qual Venezuela foi suspensa. Outros chanceleres americanos o seguiram, embora a palavra "ditadura" não apareça no texto da Declaração de Lima. 

Em 2017, já não há meias tintas nem petróleo. Ao contrário da ditadura brasileira, a venezuelana não tem, até agora, apoio internacional. O madurismo não quer nem pode salvar as formas "democráticas" que Chávez procurou salvar no passado. É muito impopular mesmo para tentar fraudar eleições universais, secretas e diretas. Maduro descobriu isso quando foi fulminado nos seus “territórios”, e com as suas próprias regras de jogo, nas eleições parlamentares de 2015 (mesmo depois de mudar a lei eleitoral para garantir vitórias desproporcionais). Foi a partir daí que as eleições na Venezuela se acabaram. 

Esse tem sido um dos mais importantes indicadores de ditadura para alguns atores da vida pública. Organizações de defesa de direitos humanos locais que foram imparciais durante a era Chávez, começaram a falar de ditadura em 2016, depois de negado o referendo contra Maduro impulsionado pelos cidadãos. 

Como se vive a ditadura no dia a dia na Venezuela? 

Diferentemente da ditadura brasileira e outras do século passado no continente, mortos, feridos e desaparecidos atualmente são difíceis de esconder. Na Venezuela há ainda internet - de muita má qualidade, velocidade de 3,88 Mbps-, e os smartphones são abundantes. Abusos, surras e ultrajes nas ruas são fotografados, gravados e compartilhados em redes sociais diariamente. Mas a posse de telefones é uma faca de dois gumes, e um risco para os cidadãos. Os telefones são prova de "terrorismo" se contêm vídeos ou qualquer evidência de oposição política. “A Guarda Nacional cobrou um milhão e meio de bolívares (mais ou menos R$ 360) a meu amigo ontem, sob ameaça de aprisioná-lo como terrorista depois de examinar seu WhatsApp”, relatou, em 14 de agosto, no Twitter, a jornalista de Univision e Caracol Radio Elyangelica Gonzalez. Os relatos de revista  e confisco de telefones, além de postos de controle espontâneos nas ruas crescem. As forças da segurança também roubam telefones durante a repressão de protestos. 

Leia também: Confronto em presídio deixa 37 mortos na Venezuela

Um vídeo da líder da oposição María Corina Machado, cumprimentando as pessoas em uma marcha, foi suficiente para manter um estudante de Caracas – que prefere permanecer no anonimato por segurança - preso por um mês. 

Protesto nas ruas de Caracas pede democracia no paísRONALDO SCHEMIDT/ AFP

Rumores e áudios de WhatsApp se propagam à velocidade da luz e são uma fonte de informação. Junto com o Twitter são a principal meio de divulgação da informação. Na Venezuela, isso de ligar a televisão para assistir ao noticiário e descobrir o que acontece, não existe. O governo fechou ou comprou os meios críticos. Existem ainda algumas estações de rádio e há um par de serviços de televisão online, VivoPlay e Venezolanos por la información (VPI), que transmitem ao vivo os protestos e as declarações de líderes da oposição. Seus jornalistas e cinegrafistas são atacados, feridos e detidos com frequência. Fotógrafos e fotojornalistas locais, contratados por agências internacionais de notícias, ainda conseguem capturar a brutalidade da repressão na rua usando máscaras de gás e coletes à prova de balas. 

Estão também as transmissões ao vivo via Periscope, Facebook Live e Instragram que os políticos fazem ao vivo. Mas é difícil de acessar tudo isso. Os serviços de Internet são muito pobres intencionalmente. Os sinais se caem com frequência. A ditadura considera que as redes sociais são uma “ferramenta cúmplice das ações terroristas”. 

Luta por sobrevivência

Os presos na Venezuela por envolvimento em protestos, mais de 6 mil em quatro meses, são submetidos a julgamentos militares, agredidos e torturados. Dependem das suas famílias e da caridade de estranhos para comer e sobreviver na prisão. O violinista do sistema nacional de orquestras Wuilly Arteaga, famoso por interpretar melodias nos protestos, foi preso em 27 de julho, brutalmente agredido, e ficou mais de 15 dias na solitária, sem comunicação com ninguém. As forças de segurança já tinham quebrado seu violino em protestos anteriores.

Wuilly Arteaga ficou preso por dias após tocar violino durante protestosFEDERICO PARRA/ AFP

Muitos dos detidos, mesmo com ordens judiciais de libertação, são mantidos em prisões pela polícia. É o caso do líder do partido Voluntad Popular, Yon Goicochea, com ordem de liberação de outubro de 2016. 

Entre 1,5 e 2 milhões de venezuelanos emigraram. Na fronteira com a Colômbia cruzam dezenas de milhares, apenas caminhando. Mas os exílios de figuras políticas são malvistos e criticados. São considerados uma indulgência e são mais valorizados os que permanecem no país e suportam espancamentos ou prisão. Cantores, atores e comediantes têm escolhido o exílio para sobreviver na profissão. É do exterior que eles se opõem expressamente à ditadura. Isso traz o escárnio dos porta-vozes do governo. 

Há áreas residenciais na Venezuela que se tornaram alvos de ataques violentos e ilegais das forças de segurança. Nas áreas de La Candelaria e El Paraiso, em Caracas, os uniformizados derrubam portões com tanques militares, entram em edifícios e apartamentos, destroem propriedades, fazem detenções, roubam, e até têm matado mascotes. O mesmo aconteceu em Lecheria, no estado oriental de Anzoátegui, em San Antonio de los Altos no estado de Miranda, e em zonas do estado andino de Táchira. Estas são áreas que têm mostrado ser mais ou menos combativas e estabelecido enclaves de protesto permanentes. 

Esta ditadura não se sucedeu de um dia para o outro. Os sinais de alerta precoce estavam na Venezuela que Chávez transmitiu a Maduro pela televisão antes de morrer. 

Manifestantes pró-Maduro carregam retrato do presidente venezuelano Hugo ChávezRONALDO SCHEMIDT/ AFP

Nessa Venezuela, se realizavam eleições, no final do dia. Mas também se fechavam e multavam meios de comunicação críticos do governo, e adversários políticos eram perseguidos criminalmente e inabilitados. Se prendiam juízes, líderes de opinião e jornalistas. Acusações de violações de Direitos Humanos contra o Estado venezuelano começaram a se acumular no sistema interamericano de proteção (com o que Chávez coexistiu desconfortavelmente e que Maduro decidiu tirar da Venezuela em 2013). Também se concederam habilitações legislativas a Chávez em matérias nas quais um presidente não pode e não deve legislar, e voltaram ao Código Penal os delitos de consciência e de "ofensa" contra as autoridades públicas, os chamados crimes de vilipêndio, desterrados de todos os sistemas jurídicos da região com a chegada das respectivas democracias. 

A prática reiterativa de transmissões forçadas e simultâneas, em todos os meios audiovisuais e radioelétricos, de alocuções governamentais se impôs. Chávez passou, em suma, quase dois meses falando à força na televisão e rádio, enquanto ele era presidente. O estado chavista foi inserindo-se, por vezes furtivamente, às vezes a gritos e empurrões, em todas as áreas da vida nacional, e instalou-se escondido atrás de eventos eleitorais mais ou menos fraudulentos. 

Um talão de cheques cheio de petrodólares não vai voltar. Este regime não tem "milagres econômicos" de nenhum tipo e já não poder ser catalogado com termos “sensíveis” como "governo com indícios de autoritarismo", "abuso da democracia", "autocracia moderna" ou "governo democrático de caráter autoritário".

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]