A fim de expressar seu patriotismo e exaltar o espírito empreendedor do brasileiro, o vice-presidente General Hamilton Mourão recorreu às redes sociais para, no sábado (28), escrever uma tuíte que era uma pequena ode às Capitanias Hereditárias. O tuíte gerou revolta por sua visão diferente de uma iniciativa que a historiografia brasileira considera um irrefutável fracasso. “É hora de resgatar o melhor de nossas origens”, escreve Mourão.
Mas as Capitanias Hereditárias representam “o melhor das nossas origens” mesmo? E, mais importante, elas refletem mesmo o espírito empreendedor do brasileiro?
O que foram as Capitanias Hereditárias?
As capitanias foram uma forma encontrada pelo rei Dom Manuel I para tentar administrar e explorar da forma mais eficiente possível as terras recém-conquistadas por Portugal. O sistema foi empregado pela primeira vez no início do século XVI em dois territórios minúsculos, os arquipélagos de Madeira e Cabo Verde. No Brasil, as capitanias foram implementadas primeiro na então Ilha de São João (atual Fernando de Noronha) em 1504.
Foram necessários 28 anos, contudo, para que o sistema de capitanias fosse de fato usado no Brasil. Até então, o velho Tratado de Tordesilhas teoricamente dava conta de garantir a Portugal a posse das terras brasileiras. Diante dos ataques cada vez mais frequentes de piratas franceses, contudo, o rei D. João III percebeu que o Tratado não bastaria. “A sugestão lhe foi dada por Diogo de Gouveia, humanista português, residente em Paris, onde dirigia o respeitado colégio Santa Bárbara. Apesar da experiência bem-sucedida nas ilhas, o império ultramarino português estava mais preparado e interessado em descobrir, conquistar, comercializar e, eventualmente, em pilhar, do que em colonizar”, escreve o historiador Eduardo Bueno em Brasil, uma história (Leya).
Para a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, em Brasil: uma biografia (Companhia das Letras), “a filosofia [do sistema de capitanias] era simples: como a Coroa tinha recursos e pessoal limitados, delegou a tarefa de colonização e de exploração de vastas áreas a particulares, doando lotes de terra com posse hereditária”.
Assim, o Brasil foi dividido do atual Maranhão até onde hoje é a cidade de Laguna, em Santa Catarina. De acordo com Eduardo Bueno, as capitanias tinham de 30 a 100 léguas (180km a 600km de extensão litorânea). No extremo norte, a Primeira Capitania do Maranhão ia desde a atual fronteira do Pará e do Maranhão até a Baía de Cumã, em Guimarães (MA). No extremo sul, a Capitania de Santana ia da ilha do Mel, no Paraná, até Laguna (120km ao sul de Florianópolis) – território que permaneceu abandonado até o século XVII.
As Capitanias Hereditárias foram um sucesso?
Os historiadores são unânimes em dizer que o sistema de capitanias hereditárias foi um grande fracasso. Na verdade, somente duas delas prosperaram, a de Pernambuco e de São Vicente. Para os indígenas, então, elas foram um desastre. “A instauração de capitanias hereditárias impactou relações relativamente pacíficas. O confisco de terras indígenas e o trabalho agrícola forçado imposto às populações foram um golpe mortal aos autóctones”, escreve Mary del Priore em Histórias da gente brasileira: Volume 1 - Colônia (Leya).
Nem todos os povos indígenas, contudo, foram passivos em relação à colonização portuguesa. Credita-se aos aimorés, por exemplo, um grupo não-tupi também chamado de botocudo, a derrocada das capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo. “[Os aimorés] só foram vencidos no início do século XX. Eram apenas 30 mil”, escreve Eduardo Bueno.
A aleatoriedade da divisão do território brasileiro também contribuiu para o fracasso do sistema. Os donatários enfrentavam os indígenas, de um lado, e a falta de comunicação entre si e com a Metrópole, por outro. A elite burocrática que recebera os lotes tampouco parecia muito interessada no generoso dote. “Dos 12 donatários, quatro jamais estiveram no Brasil. Dos oito que vieram, três morreram em circunstâncias dramáticas; um outro (Pero de Campos Tourinho) foi acusado de heresia, preso por seus próprios colonos e enviado para os tribunais da Inquisição em Portugal; três pouco se interessaram por suas propriedades e apenas um, Duarte Coelho (...), realizou uma administração brilhante, em Pernambuco. Dos 15 lotes, quatro nunca foram ocupados (Rio de Janeiro, Ceará, Ilhéus e Santana); em quatro, as tentativas de colonização falharam (Rio Grande do Norte, São Tomé e as duas do Maranhão); em cinco, a precariedade dos estabelecimentos facilitou sua destruição por nativos hostis (Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Itamaracá e Santo Amaro)”, escreve Bueno.
Assim, as únicas duas capitanias hereditárias que prosperaram, e ainda assim por um brevíssimo período, foram as de Pernambuco e a de São Vicente. O segredo estava na produção de cana-de-açúcar e no convívio pacífico com os nativos próximos. A Capitania de Pernambuco foi a mais próspera e duradoura. A de São Vicente, apesar do início promissor, não resistiu ao descaso do seu donatário, Martim Afonso de Souza, que a administrava a distância.
Ameaçada por ataques de nativos e de estrangeiros e largada à própria sorte, a iniciativa ainda resistiu até 1615, quando, de acordo com Bueno, “o almirante holandês Joris van Spilberg deu uma espécie de golpe de misericórdia: investiu contra o litoral paulista, e o outrora imponente Engenho de São Jorge dos Erasmos foi ocupado, saqueado e incendiado. Com tantos senões, e escassos incentivos, seus proprietários acharam por bem abandonar o empreendimento”.
Fim melancólico
Coube ao Marquês de Pombal pôr um fim às Capitanias Hereditárias. De acordo com Antonio Paim em História do Liberalismo Brasileiro (LVM Editora), Pombal “eliminou o estado do Maranhão, que se vinculava diretamente à Metrópole, e extinguiu as capitanias hereditárias remanescentes, medidas que contribuíram para cimentar a unidade nacional, que se evidenciaria como elemento capital no processo da independência”.
Oficialmente, as capitanias, a maioria das quais já transformadas em províncias e sem vínculos com os donatários originais, foram extintas em 1821, um ano antes da Independência.
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