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Opinião

As empregadas de Paulo Guedes na era da indignação permanente

A indignação é o caminho mais fácil, falsamente virtuoso e ineficiente para enfrentar o que consideramos injusto, como a fala do ministro Paulo Guedes. (Foto: Marcos Correa/ PR)

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Todo mundo está indignado porque o ministro Paulo Guedes disse que o dólar alto é bom para a economia do país e que empregadas domésticas não tinham que ficar viajando para a Disney. Antes disso, todo mundo estava indignado porque alguém teve a brilhante ideia de alugar micro-ondas para que as pessoas esquentassem suas marmitas, porque “Democracia em Vertigem” perdeu o Oscar, porque um tal capitão Adriano foi assassinado, porque Paulo Guedes (de novo!) chamou os funcionários públicos de “parasitas”, porque isso e porque aquilo.

(No momento em que escrevo este texto, ganha corpo a indignação com o Papa Francisco por ele ter recebido Lula).

Vivemos num estado permanente de indignação coletiva. E todo mundo com uma conta numa rede social faz questão de expressar essa indignação que pretende ficar virtualmente marcada para sempre na história. É como se o homem de Lascaux, em vez de desenhar animaizinhos e pessoas-palito nas paredes da caverna, tentasse marcar sua presença neste mundo por meio de insultos contra o trovão ou o vulcão – forças, note bem, sobre as quais ele não tem nenhum controle, assim como não temos nenhum controle sobre as bobagens que autoridades ou nossos semelhantes comuns dizem.

A que leva tamanha indignação? A mais indignação. Porque, a fim de refutar uma bobagem qualquer, não raro os indignados cometem bobagens ainda maiores, num círculo para lá de vicioso. O poder viciante da indignação é tamanho que as pessoas que ousam pedir calma e um mínimo de racionalidade no debate público costumam ser recebidas com pedradas e, surpresa!, insultos indignados.

Não se trata, aqui (e tenho certeza de que o indignado de plantão já pensou nisso), de “passar pano” para as bobagens ditas pelo ministro Paulo Guedes ou por quem quer que cometa a ousadia de dizer algo que o ouvinte (ou leitor) sensível considere indigno de seus preciosos ouvidos (ou olhos). É óbvio que erros devem ser apontados, questionados e, se possível, corrigidos. O problema é que, quando todo mundo está indignado o tempo todo por qualquer coisa, ninguém está de fato indignado por nada. E os erros acabam caindo no anedotário, em vez de serem corrigidos e, com alguma sorte e esforço, perdoados.

Atalho cognitivo

O jovem, seja ele aquela pessoa que acabou de ler Slavoj Žižek no centro acadêmico ou o empresário de meia-idade todo tatuado que vai trabalhar de patinete calçando seu indefectível all-star de couro, é o mais suscetível a se indignar por qualquer coisa – indignação que ele simplesmente não consegue conter e corre para expressar na parede das cavernas virtuais. O discurso juvenil indignado é uma profusão de pontos de exclamação e expletivos dos mais variados tipos, tudo para dizer que tal situação, fala ou comportamento é inaceitável, pô!

E por que ele age assim? Porque a indignação é o caminho mais fácil para se dar vazão a suas opiniões sem outro embasamento que não a intuição – o que em inglês é apropriadamente chamado de gut feeling, isto é, aquela sensação que vem das entranhas.

Vale reparar ainda que a indignação é, por definição, sempre virtuosa. É sempre uma pessoa que, por alguns segundos, se coloca num pedestal, ou melhor, num mirante de onde ele testemunha, impotente, as maiores atrocidades humanas. De mãos atadas pela preguiça, só lhe resta expressar sua indignação diante de um mundo que parece saído de um pesadelo de Hieronymous Bosch.

A indignação é um atalho cognitivo, um clichê comportamental que pretende, mas quase sempre fracassa, mudar determinado aspecto da realidade. Muito mais eficiente, mas difícil, seria tentar compreender o contexto em que uma coisa foi dita ou feita e pressupor sempre (como ensina Jordan Peterson) ignorância antes de má-fé. Isso serve para tudo, desde as empregadas turistas de Paulo Guedes até os devaneios do Youtuber de cabelos coloridos, sem falar nas diatribes de um depoente muito louco numa CPMI qualquer.

Referências literárias

O que me traz a três importantes referências literárias que, cada uma a seu modo, tratam da indignação. A primeira é do clássico 1984, de George Orwell, muito citado e pouco lido e, quando lido, interpretado apenas pelo viés macropolítico e quase nunca como o romance-espelho que realmente é. Na sátira orwelliana, uma das medidas para assegurar a obediência dos cidadãos é o Dois Minutos Ódio, durante os quais uma tela exibe imagens e falas de inimigos e opositores do Partido (Ingsoc). É um ritual diário de purificação, depois do qual as pessoas caninamente se sentem virtuosas por sua lealdade para com o regime totalitário.

"A pior coisa dos Dois Minutos de Ódio era que ninguém era obrigado a participar, mas ao mesmo tempo era impossível não fazer parte", escreve Orwell. "Depois de trinta segundos, já não era preciso fingir. Um êxtase horrendo de medo e desejo de vingança, uma vontade de matar, de torturar, de destruir rostos com uma marreta, parecia fluir pela plateia inteira como uma corrente elétrica, transformando as pessoas, mesmo contra sua vontade, em malucos a gritar, os rostos deformados pela fúria. E ainda assim a raiva que se sentia era uma emoção abstrata e sem direção, que podia ir de um alvo a outro como a chama de uma lamparina".

Outra é do bom e velho Leon Tolstoi em Uma Confissão. Neste trecho, Tolstoi reflete sobre a verborragia indignada da sua juventude, indignação essa que ele compartilhava com os outros aspirantes a intelectuais.“Estávamos todos convencidos de que era necessário falar, escrever e publicar o mais rápido e o máximo possível, e que tudo isso era o melhor para o bem da Humanidade. E milhares de nós, nos contradizendo e sendo violentos uns com os outros, publicávamos e escrevíamos – ensinando os outros. E, sem notarmos que não sabíamos nada e que para a simples pergunta “o que é bom e o que é o mal?” não tínhamos resposta, falámos todos ao mesmo tempo, sem darmos ouvido uns aos outros, às vezes apoiando e elogiando só para recebermos apoio e sermos elogiados, às vezes ficando com raiva uns dos outros – como num hospício”.

Qualquer semelhança com nossas redes sociais cotidianamente enfurecidas não é mera coincidência.

Por fim, o escritor David Foster Wallace tratou dessa reação instintiva ao que enxergamos como uma injustiça inaceitável em seu famoso e imprescindível This is water [Isso é a água], transcrição de um discurso de formatura que ele fez em 2005. Numa das passagens mais memoráveis, Wallace exorta os ouvintes a refletirem melhor sobre tudo aquilo que nos gera indignação. Ele cita como exemplo a indignação causada por um motorista que nos corta a frente no trânsito. Buzinamos e xingamos e instintivamente acreditamos que o motorista apressado nada mais é do que um apressadinho idiota. Mas, pergunta Wallace, o que sabemos de fato sobre o motorista apressado? E se ele estiver a caminho do hospital e com um filho doente no banco do carro?

O que ele propõe (e eu humildemente ecoo neste texto) é que tenhamos um olhar mais generoso diante das pequenas e grandes irritações do cotidiano, desde o caixa de mercado que não parece muito interessado no seu trabalho e o motorista agressivo no trânsito, passando, necessariamente, pelo que falam nossos líderes, nossos inimigos políticos e também nossos semelhantes enfurecidos.

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