Sunayana Dumala tentou mais uma vez entrar no quarto de adoração que ela e o marido, Srinivas Kuchibhotla, tinham montado em casa para as orações diárias. Ele, inclusive, tinha feito um oratório de madeira intrincado, à mão, dois anos atrás, um pequeno monumento sagrado diante do qual se ajoelhavam todos os dias. Meses após sua morte, virou o local onde ela o reverencia.
Em uma noite de quarta-feira, em fevereiro, um homem com uma pistola semiautomática e uma noção distorcida de orgulho patriótico transformou pessoas comuns em vítimas e sobreviventes, deixando Sunayana viúva.
Srinivas, engenheiro nascido na Índia, foi confrontado em um bar por causa de sua condição de imigrante e acabou tomando um tiro. Quando a polícia chegou, ele já agonizava; o amigo, Alok Madasani, estava ferido. Outro cliente que tentara impedir o ataque também tinha sido atingido.
Exatamente três meses depois da morte do marido, Sunayana ficou parada na porta do quarto de oração, sozinha, olhando para a janela que emoldurava as nuvens carregadas e se afastou. "Tudo nesse quarto, tudo nesta casa, me faz lembrar do meu Srinu", disse ela depois, usando o apelido que dera ao marido quando ainda namoravam.
Foi no silêncio da manhã seguinte que Sunayana, 32 anos, decidiu que aquele seria o dia em que entraria no quarto. O que parecia insuportável no dia anterior agora se mostrava superável, mesmo que somente por ser o próximo passo, ainda que doloroso.
Assim, encontrou forças para subir as escadas, passando pela colagem de fotos do casamento nas paredes, e entrar no quarto. Limpou cada uma das estatuetas das divindades em água quente e então rezou, pedindo paz, em um sussurro um pouco acima do som das crianças brincando no pátio da escola primária ali ao lado.
De certa forma, aquilo que um homem gritou, raivoso, e uma mulher proferiu, em meio à dor, refletem uma das combinações mais problemáticas dos EUA.
"Sai do meu país!", o atirador gritou antes de abrir fogo contra os dois indianos que, em depoimento posterior, afirmou acreditar serem iranianos.
"O nosso lugar é aqui?", a viúva questionou, em postagem no Facebook, seis dias após a tragédia.
O episódio ocorreu no horário do jantar, em um bar de bairro, e faz parte do espasmo de ódio que parece estar ganhando corpo tanto nas cidades pequenas como nas grandes, e em números cada vez maiores.
"Lemos várias notícias nos jornais sobre tiroteios e agressões à bala", disse Sunayana, na coletiva de que participou, em fevereiro, na sede da Garmin, onde Srinivas era engenheiro de sistemas de aviação.
"E sempre imaginávamos até que ponto estávamos seguros."
A percepção de que seu marido foi morto por causa da intolerância e por não ter nascido nos EUA foi o que a forçou a sair de seu inferno particular. Achou que se as pessoas soubessem o que acontece depois de um crime de ódio, o vazio imenso e as perguntas sem respostas que deixa, se as vítimas ganhassem contornos sólidos, tridimensionais, talvez então houvesse menos medo, menos ódio.
"A minha história tem que ser compartilhada. A história de Srinu tem que ser conhecida. Temos que fazer alguma coisa para reduzir os crimes de ódio. Nem que seja para salvar uma pessoa só, acho que isso daria alguma paz a ele – e a mim, a satisfação de que seu sacrifício não foi em vão", afirmou ela, com simplicidade.
Na manhã do fatídico dia de sua morte, Srinivas saiu para trabalhar antes da mulher. "Tchau", disse, passando apressado por ela, em uma despedida casual que viria depois a atormentá-la pela brevidade e imutabilidade.
Pouco antes das seis da tarde, Sunayana mandou um torpedo e ligou para o marido para planejar a noite. O celular dele estava desligado. Ela torcia para que pudessem passar um tempinho no quintal, bebendo chá e vendo o sol se pôr no horizonte.
A seguir, ligou para os amigos dele. Talvez tivesse ido com Alok tomar uns drinques no Austins Bar & Grill, bar onde gostava de fazer um pitstop após o dia de trabalho; mas o telefone do amigo também estava desligado.
Então começou a procurar alguma coisa no Facebook. Logo apareceu a notícia em sua linha do tempo que dizia que três pessoas tinham sido alvejadas no Austins.
"Estava ficando assustada, um mal-estar terrível começou a tomar conta de mim. Eu estava só. Não era coisa do Srinu, eu comecei a dizer a mim mesma; ele teria dado um jeito de me avisar se estivesse tudo bem", ela conta.
O instinto dela não se enganou; os dois amigos estavam no Austins, à mesa que sempre ocupavam no pátio, a mais próxima à porta.
O agressor se aproximou. Segundo as testemunhas, usava uma camiseta branca cheia de bottons em estilo militar, a cabeça enrolada por um tipo de pano branco. Parecia ter uma única intenção: descobrir o que os homens daquela mesa faziam no país.
Adam W. Purinton, branco e reservista da Marinha, se virou para os dois homens de compleição escura que viviam há anos nos EUA, e exigiu saber a condição imigratória dos dois.
"Do nada apareceu um sujeito estranho – e eu digo isso por causa do ódio que tinha no semblante. Não ouvi o que ele chegou dizendo, mas vi que a cara de Srinivas mudou drasticamente. Olhei para o Adam e ele veio na minha direção para perguntar se eu estava no país legalmente", relata Alok Madasani, 32 anos, que também é engenheiro de sistemas da Garmin.
O rapaz não respondeu; em vez disso, entrou para falar com o gerente. Ian Grillot, 24 anos, e outro cliente, pediram a Purinton que se retirasse e o levaram para fora do pátio, mas ele não foi muito longe, chegando só ao estacionamento.
Alok conta que ele e Srinivas já tinham decidido ir embora, mas foram impedidos por vários clientes que, um a um, resolveram se desculpar. Um deles pagou a conta; o gerente lhes ofereceu uma nova rodada de cerveja e uma porção de picles frito, que os dois adoravam. "Todo mundo veio falar conosco para dizer que não tinham nada a ver com aquilo e que nosso lugar era ali, sim", relembra.
Eram sete e quinze. O sol de inverno já tinha se escondido, mas a temperatura continuava agradável, na casa dos 20°C. O intervalo do jogo de basquete do time da Universidade de Kansas contra a Universidade Cristã do Texas tinha acabado. Além da clientela de sempre, o Austins estava lotado de torcedores do Jayhawks.
Srinivas e Alok estava à mesa, conversando.
Segundo as autoridades, Purinton voltou ao bar com uma pistola, parou na porta do pátio e apontou para os dois.
De repente, ouviu-se o barulho dos disparos. "Pop, pausa, aí pop, pop, pop. Bem diferente dos filmes, onde os tiros fazem um estrondo e chamam a atenção de todo mundo", descreve Tim Hibbard, dono de uma empresa de software que estava no balcão.
Conforme o pessoal se espalhou, Vincent Baird, que chegava ao posto de gasolina do outro lado da rua, correu em direção ao caos para ajudar. Com quatro anos de experiência como médico militar, foi direto em Srinivas, cuja respiração já estava ofegante e difícil.
Baird viu que o rapaz tinha sido alvejado no peito. Com a ajuda de outras duas pessoas, cortou um pedaço de um saco de lixo sem uso para proteger o ferimento.
Ele conta que Srinivas parou de respirar em várias ocasiões, e em todas lhe fizera massagem no peito até que voltasse a puxar o ar e a ambulância chegasse. Entretanto, sua morte foi confirmada no Hospital da Universidade do Kansas.
Em meio à confusão, Purinton fugiu, e acabou a 128 km dali, em um bar de Clinton, no Missouri, onde contou ao garçom que tinha atirado em "dois iranianos".
O homem de 52 anos foi formalmente indiciado logo depois, acusado de homicídio doloso, tentativa de homicídio doloso e crime de ódio.
O termo, aliás, foi usado repetidas vezes, pela polícia, pela imprensa e pelos políticos, para descrever a morte do marido de Sunayana. De repente, Srinivas se tornara uma estatística, um exemplo e motivo de reforço da legislação antiódio.
Sunayana ficou perplexa, sem entender o homem que tirara a vida de seu marido. "Esse sujeito foi muito machucado; não sei o que houve para deixá-lo assim. O que está fazendo, tirando a vida de uma pessoa? Será que lhe serviu de alguma coisa? Será que sente menos ódio agora? Eu também o odeio, mas isso não me permite ir lá e acabar com a vida dele."
Na tarde de uma terça-feira em Hyderabad, o corpo de Srinivas Kuchibhotla foi colocado sobre uma pira feita de toras de madeira. Seu funeral aconteceu nove dias antes de ele completar 33 anos.