Em mais uma decisão de legalidade questionável, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, dobrou a aposta na censura e confiscou das contas da Starlink e da rede social X, na sexta-feira (13), R$ 18,2 milhões para cobrir multas impostas por ele próprio ao X, do empresário Elon Musk. O X também está sob investigação da União Europeia.
A censura ao X inspirou duas cartas abertas internacionais. Uma, contrária a Moraes, obteve assinatura da ex-primeira-ministra britânica Liz Truss. Outra, contra Musk, atraiu como signatário o economista francês Thomas Piketty.
Um dos argumentos usados pelos defensores das ações de Moraes é que o Brasil estaria mais próximo de um modelo europeu de liberdade de expressão, alternativo ao americano, e que a União Europeia estaria cogitando tomar ações similares. A maior prova disso seria uma carta do mês passado em tom ameaçador contra Elon Musk publicada pelo francês Thierry Breton, então comissário europeu para o Mercado Interno. Mas a conjuntura política da União Europeia mudou rápido, forçando Breton a pedir demissão na segunda-feira (16).
O que aconteceu entre a ameaça a Musk e a abdicação
Thierry Breton se descreve como engenheiro, cientista, economista, empresário, professor, CEO e político. Ele tem passagem por grandes empresas como Thomson, Atos e France Telecom, e foi ministro da fazenda da França. Segundo a revista americana Wired, ele teve relativo sucesso nos anos 1980 como escritor de ficção científica em que “vislumbrou um mundo administrado por bilionários da tecnologia onde vírus de computador e fake news ameaçam a ordem global”.
Em 12 de agosto, Breton publicou no X um documento destinado a Musk e à chefe executiva da rede social, Linda Yaccarino. O burocrata afirmou que era motivado pelos protestos violentos anti-imigração no Reino Unido e pela conversa ao vivo que o empresário teve com o candidato republicano à presidência dos EUA, Donald Trump.
“Sou compelido a lembrá-lo das obrigações dispostas na Lei de Serviços Digitais (DSA)”, escreveu Breton. “Como você sabe, processos formais já estão em tramitação contra o X sob a DSA, destaco em áreas ligadas à disseminação de conteúdo ilegal e na efetividade de medidas tomadas para combater a desinformação”. Ele encerra a carta dizendo que “meus serviços e eu ficaremos extremamente vigilantes quanto a qualquer evidência que aponte para violação da DSA e não hesitaremos em fazer uso pleno dos nossos instrumentos”.
A reação negativa dentro da própria Comissão Europeia veio no dia seguinte. “Bruxelas acusou seu comissário de mercado interno de agir por conta própria”, noticiou o Financial Times. O órgão negou que Breton tivesse aprovação de sua presidente, Ursula von der Leyen. “A hora e o vocabulário da carta não foram coordenados ou tiveram concordância da presidente, nem dos [outros] comissários”, disse o órgão executivo maior da UE. Um comissário anônimo disse ao veículo que “Thierry tem a própria cabeça e forma de trabalhar e pensar”.
“A União Europeia precisa tratar do que é da conta dela em vez de tentar interferir na eleição presidencial dos Estados Unidos”, disse um porta-voz da campanha de Trump.
A Lei de Serviços Digitais, por cuja suposta violação o X de fato é investigado na União Europeia, foi aprovada em julho de 2022 pelo Parlamento Europeu. Ela prevê medidas mais fortes de moderação de conteúdo sobre o “discurso de ódio”, maior transparência nos mecanismos de moderação e maior cobrança sobre plataformas com mais de 45 milhões de usuários na UE.
Muitos que defendem leis mais duras de remoção de “desinformação” aprovaram a carta de Breton e traçaram comparações com o Brasil. “Assim como o Brasil, a União Europeia tem um problema com o X”, disse o canal France 24. “Com a ousada ordem de Moraes, o Brasil – um país em desenvolvimento que é um membro líder do Sul Global – tomou atitude e mostrou ao mundo quem está no comando da preservação da democracia”, afirmou Marco Cacciati, colunista da agência de notícias europeia BNE IntelliNews.
O próprio Breton, contudo, nunca fez declarações públicas sobre Moraes e suas decisões contra as empresas de Elon Musk. Há um ano, ele deu uma palestra no evento Painel Telebrasil Summit 2023 e afirmou que “a UE e o Brasil enfrentam desafios semelhantes no campo digital. A UE esteve na vanguarda enfrentando esses desafios (...) e optou por ser proativa e restaurar a confiança e a segurança no espaço digital. Nenhuma plataforma online deve sentir que pode comportar-se como se fosse grande demais para não se importar”. Ele elogiava a nova legislação europeia que usou para ameaçar Elon Musk.
A renúncia do comissário da União Europeia
No dia 16 de setembro, Breton usou o X mais uma vez para publicar sua carta de renúncia endereçada à presidente da Comissão Europeia. “Em 25 de julho, o presidente Emmanuel Macron nomeou-me o candidato oficial da França para um segundo mandato”, afirmou. “Poucos dias atrás, na reta final das negociações para a composição do futuro Colégio de Comissários, você pediu à França que retirasse meu nome por razões pessoais que em nenhum caso você discutiu comigo. (...) Nos últimos cinco anos, lutei sem descanso para defender e avançar o bem comum europeu acima de interesses nacionais e partidários. Foi uma honra”.
Segundo o site americano Politico, o divórcio institucional entre Breton e Ursula von der Leyen foi longo. “Substituí-lo na reta final foi arriscado, com o potencial de desestabilizar a estrutura delicada [da Comissão] e atrasar mais o começo oficial de seu segundo mandato”, diz a análise, segundo a qual a alemã já estava cansada do francês.
Com a ascensão da direita nas eleições do Parlamento Europeu, von der Leyen precisa fazer cálculos para evitar mais desgastes com esse eleitorado, especialmente após uma decisão judicial que condenou sua gestão anterior por violar o direito à informação dos europeus em contratos sigilosos com farmacêuticas durante a pandemia. Ela havia confiado especialmente a Breton muitas das tarefas mais difíceis da pandemia.
Não há reconhecimento oficial de que a ameaça a Elon Musk contou para a decisão. Segundo as fontes francesas do site, Breton estava arriscando o próprio pescoço fazendo muitas críticas públicas à superiora, e nos bastidores com frequência desafiava sua autoridade. Ele chegou a dizer que não se importaria se von der Leyen fosse substituída.
Uma das críticas que mais incomodaram foi feita no X em 7 de março. “Ursula von der Leyen é uma minoria em seu próprio partido”, disse Breton. “O próprio partido não parece acreditar em sua candidata”.
Breton “nunca a reconheceu como chefe e líder, isso é uma base ruim para uma relação”, disse um burocrata anônimo da UE. Os dois políticos já não se falavam há meses. A carta contra Musk fazia parte desse padrão de desafio e independência, bem como a insistência do francês em palpitar em áreas fora de sua seara na comissão.
Macron escolheu como substituto de Breton o chanceler Stéphane Séjourné. A Comissão Europeia tem feito pressão por mais mulheres indicadas para esse tipo de cargo, mas “claramente, era qualquer pessoa, menos Breton”, comentou um ex-funcionário do governo francês.
“Bon voyage”, disse Musk sobre a renúncia. “Merci! Sobrou alguma passagem para Marte? Tenho algumas ideias de regulamentação para lá”, respondeu Breton.
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