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O entrelaçamento entre razão e fé é um dos principais motores evolutivos – em termos morais, culturais e intelectuais – da humanidade
O entrelaçamento entre razão e fé é um dos principais motores evolutivos – em termos morais, culturais e intelectuais – da humanidade| Foto: Pixabay

A última façanha de Jürgen Habermas vem com sua exuberância habitual: dois volumosos livros nos quais aborda a história da racionalidade, partindo das relações entre a filosofia e a religião. De suas confluências e transferências, afirma o filósofo, nasce nossa maneira de ver o mundo.

Não é a primeira vez que Habermas se ocupa das crenças religiosas. Tampouco é a primeira ocasião em que manifesta uma atitude positiva e aberta em relação a elas. E é que, desde que debateu com Joseph Ratzinger na Baviera, em 2004, pode-se dizer que ele tem atenuado seu ateísmo metodológico.

A erosão da moral pública e a crise de valores, fenômenos que, junto com o esgotamento da solidariedade e a exacerbação do consumismo, levaram-no a reconhecer que as mensagens religiosas ainda têm muito a oferecer para a regeneração da cultura, contribuíram para mitigar seus preconceitos iniciais.

Genealogia da razão

Agora, após uma vida dedicada a defender o projeto iluminista – e a endireitá-lo – ele dá mais um passo. Em "Una historia de la filosofía" [Uma história da filosofia] (Trotta, 2023, ainda sem edição no Brasil), o primeiro dos dois ensaios em que revisita o legado do pensamento ocidental, propõe reconstruir o caminho da razão, não tanto em busca de remédios para desanuviar nosso horizonte moral, mas para questionar o futuro da filosofia e da verdade.

Em alemão, já foram publicados os dois volumes; em espanhol, apenas um, e será preciso esperar até o final do ano para que o segundo seja lançado. O decisivo é que, em ambos, o pensador alemão reafirma a idoneidade da religião hoje e renova o diálogo entre esta e a filosofia.

É muito sintomático que ele olhe para o passado da fé e ajuste contas com nossa situação a fim de determinar qual é o futuro que nos aguarda. Claro está que Habermas sabe onde está situado e é consciente de que, em sua visão evolutiva sobre a racionalidade, não pode aceitar que a fé esteja em iguais condições cognitivas que a razão. Desse modo, sem evitar as crises que nos afligem, ele mantém um enfoque progressista que dá por aniquilada a metafísica.

Ao dissolver a verdade na comunicação e propor uma divisão de papéis entre o que oferece a ciência e uma filosofia já bastante reduzida, sem competência para sondar certezas últimas, também não está em condições de aprofundar na capacidade da fé para explorar o absoluto.

Frente à pós-modernidade

Isso, no entanto, não diminui o interesse de sua aventura, nem impede considerar sua obra mais recente como um respiro em nossa sufocante pós-modernidade. Apesar das reservas que suscita, ainda não se apagou em Habermas a luz dos valores nem a pretensão universalista da razão.

Frente ao pensamento fraco, a pós-modernidade e a dissolução do verdadeiro nos estudos culturais, é relevante que ele tenha percebido que a filosofia deve recorrer às mensagens religiosas para continuar garantindo seu futuro.

Sua intenção não é propor uma Ilustração ao contrário, adotando o discurso de Bento XVI, que falava do papel terapêutico da fé, da capacidade da revelação para nos curar do racionalismo. Para Habermas, o essencial não é a verdade revelada, mas não abdicar das certezas graças à enriquecedora confrontação da fé com a razão secular.

Simbiose entre razão e fé

Ocorre com Habermas o que ocorre com certos políticos: se antes atraíam críticas, à vista do raquítico panorama que nos oferecem os atuais, acabamos por desejar suas propostas e invejar sua postura. Que um herdeiro – mais ou menos fiel – da Escola de Frankfurt, com suas simpatias marxistas, seja hoje um dos cúmplices na defesa de convicções clássicas mostra sua altura intelectual.

E é que, no corpus habermasiano, a fé passou de ser uma espécie de rival, em linha com o discurso iluminista que herda e no qual se forma, a uma companheira mais ou menos confortável, uma brisa leve sob cujo frondoso frescor pode florescer e enraizar a semente da razão.

Ao voltar seu olhar sistemático para o desenvolvimento gradual da racionalidade, percebe que a riqueza desta provém dessa primeira simbiose entre fé e saber, bem como dos intrincados processos em que ambas as esferas se fundem em algumas ocasiões e em outras se separam.

Não destruir as pontes

Habermas entende o itinerário cultural como um processo de aprendizado – não sempre, justo é dizer, irreversível. A imbricação entre fé e razão é constitutiva dessa história: a filosofia nasceu definindo-se em relação à religião. O caminho do saber mundano está cheio de marcos nos quais se materializam transferências e empréstimos, alianças, entre a verdade das ciências e as convicções religiosas. Podemos acaso demolir as pontes que as unem?

Para o alemão, parece que não, por dois motivos. Primeiro, porque – como já apontou em outras ocasiões –, à luz da evolução moral, o afastamento da religião deixou tanto a pessoa quanto a esfera social paupérrimas. Ao secarem as fontes morais, as grandes tradições religiosas no capitalismo tardio não constituem um risco; devem ser consideradas, mais bem, aliadas, para não naufragarmos no mar de nossas dúvidas éticas.

E do ponto de vista teórico? A filosofia aprendeu muito com a religião e nada impede que continue se beneficiando de seu estímulo, claro está que sem restringir os direitos da razão. Isso significa reconhecer, aponta Habermas, que "nas tradições religiosas podem continuar sendo encontrados conteúdos de verdade".

Essa última convicção é a que Habermas aproveita para restabelecer a fé na esfera pública e incitar crentes e não-crentes a dialogarem, o que exige que o agnóstico respeite quem tem fé e obriga este último a traduzir sua verdade para a linguagem secular.

Problemas para o pensamento pós-metafísico

A fecundidade do pensamento ocidental não procede dos espasmos secularistas. Tampouco depende exclusivamente do desenvolvimento científico. Se há progressos, é pelo jogo de aproximações e afastamentos entre a razão e a fé, um jogo em que ambas ganham porque, no fim das contas, nele sempre triunfa a verdade.

É importante precisar neste ponto qual é o motivo real pelo qual Habermas aceita o papel da fé. O pensamento pós-metafísico oferece uma razão encolhida, algo convalescente ainda, mas curada dos excessos racionalistas. Ao reivindicar uma fé igualmente reduzida, há espaço suficiente para que ambas se acomodem.

O diálogo é frutífero porque o mundo de hoje não oferece muitas bases definitivas para decidir de uma vez por todas nossos problemas. Pense-se nas biotecnologias, no transumanismo e até – indica Habermas explicitamente – no aborto ou na eutanásia: "Não está em absoluto decidido de antemão qual parte [se a secularista ou a religiosa] pode apelar para as intuições morais corretas".

Semelhanças e diferenças

Historicamente, a filosofia e as tradições religiosas estiveram irmãs. A esse respeito, observa Habermas, compartilhavam dois objetivos idênticos: a razão filosófica, como a fé, oferecia uma ampla imagem do mundo e contribuía para esclarecer a posição do ser humano no cosmos. Por outro lado, esses recursos facilitavam a integração social e cumpriam funções de legitimação política.

Paulatinamente, aparecem novos campos de saber e procede-se a uma divisão do trabalho. A religião vai se desvencilhando de determinadas tarefas, especialmente a de justificar o poder, e limitando sua repercussão. As velhas religiões vão transferindo suas funções cognitivas e sociais e deixando-as em outras mãos, à medida que a ciência, a filosofia, a arte, etc. fazem sua aparição.

Esta é a causa de que hoje "o pensamento pós-metafísico navegue entre a religião e as ciências da natureza, sociais e do espírito, a cultura e a arte". Graças a isso, pode "eliminar da autocompreensão habitual erros e ilusões e reconhecer também seus próprios limites".

Menos religiosidade?

Habermas tem sido um dos principais pensadores a colocar em dúvida o paradigma secularista moderno, questionando que a evolução social leve necessariamente a menos religiosidade. No entanto, diz ele, a fé não teve outra escolha senão se adaptar, como o fez a filosofia, ao progresso do conhecimento, e as mudanças são irreversíveis.

Teoricamente, a religião já não pode aspirar a monopolizar a verdade, ele pensa. A verdade se deslocou para outras ordens. Sob uma ótica prática, além disso, a ética perde o respaldo da recompensa salvífica como consequência da secularização. Com base nisso, Habermas considera insustentáveis as posições fundamentalistas.

Por que, então, persistem os impulsos e anseios religiosos? Qual é o móvel que evitou sua desaparição? Ao explicar a tenacidade histórica da fé – de uma fé reduzida, mas fé, afinal – é onde a reflexão de Habermas se torna mais discutível. É como se o alemão duvidasse e não desejasse conceder muito à perspectiva religiosa.

E é que é lícito perguntar o seguinte: se a crença não tem nenhuma pretensão de verdade e não confiamos mais na força salvadora de sua mensagem, o que significa crer? Que necessidade satisfaz o sobrenatural?

O diálogo da fé e da razão

Habermas é pouco claro a esse respeito. O que é indiscutível é que ele considera que a religião deve se despedir de qualquer conteúdo ou declaração dogmática. Contudo, reconhece que dela continua fluindo um importante caudal expressivo e motivador. Por isso precisamente – ou seja, pelas renúncias que se impõem à fé – é que pode afirmar que "não existem dissonâncias cognitivas insuperáveis entre uma compreensão religiosa e ilustrada de si e do mundo e as formas racionais de pensamento e comportamento da modernidade".

O que Habermas deseja recuperar, portanto, não é a fé, mas a fé e a razão em sua confrontação, já que em seu entrelaçamento descobre um dos principais motores evolutivos – em termos morais, culturais e intelectuais – da humanidade. De fato, se bem é certo que atenua o valor cognitivo da crença religiosa, reconhece que nela habita algo de verdade.

Embora excepcionalmente, poderíamos matizar. Já que a verdade, para Habermas, é um atributo proposicional, e os conteúdos revelados não são, a este propósito, verificáveis de nenhum modo. Como não se referem a nada no mundo externo, a fé não pode ser nem verdadeira nem falsa em sentido estrito.

Práxis comunicativa

De novo, então, surge a pergunta: o que a religião dispensa? Purgada do dogmático e do institucional, despojada de seus diversos patrimônios, ela se mantém vigente para satisfazer as necessidades de pertencimento dos indivíduos. Habermas descobre nela uma práxis – um caminho de salvação comunicativo, chega a dizer – na qual os crentes "dão testemunho performativamente de sua fé".

Não devemos desprezar o que o modelo religioso trouxe para a própria conformação da filosofia habermasiana. Ele mesmo não nega, e entende que o teísmo judaico-cristão foi especialmente influente em sua proposta de racionalidade. A possibilidade de que o fiel se comunique, em diálogo orante, com o Tu que é Deus abre caminhos insuspeitados para a reflexão sobre o mundo e as relações humanas.

Apesar da desnutrição em que fica imersa a verdade religiosa para a proposta habermasiana – apesar, em definitivo, de que a filosofia só possa apelar à razão natural, jamais à revelação –, "a inequívoca delimitação do saber filosófico não implica necessariamente o abandono polêmico ou indiferente da confrontação com as tradições religiosas". Essa contenda é a que, efetivamente, assegura que ocorram transferências e enriquecimentos recíprocos.

A origem religiosa da modernidade

O grosso do percurso habermasiano ocupa uma investigação enciclopédica e minuciosa que tem por objetivo detectar, precisamente, a contribuição do cristianismo na origem da modernidade e, portanto, na configuração da razão pós-metafísica.

É comum indicar que não há saltos abruptos na evolução filosófico-política e que o projeto moderno tem uma origem teológica. Autores tão diversos como Carl Schmitt e Michael Gillespie estudaram a fonte medieval que nutre a cultura contemporânea. Tampouco Habermas vê renúncias ou revoluções, mas um processo contínuo de acomodação do religioso ao secular.

Em particular, ele alude à Igreja como impulsionadora de transformações extremamente benéficas para o progresso da razão e da política, como agente, poderíamos dizer, de uma conveniente e saudável secularização. Assim, a discussão em torno da racionalidade da fé – desde Santo Agostinho a Santo Tomás – desencadeou o potencial crítico e possibilitou o florescimento da ciência.

Duas separações

No entanto, a interpretação que Habermas faz dessa transição é mais nova – e questionável. Em sua opinião, a insistência na sistematização teológica é o que serviu para pulverizar de uma vez por todas a ontologia grega, a ponto de despojar a filosofia do absoluto e decidir que tomasse o humilde caminho da pós-metafísica.

Por outro lado, em sua luta contra o poder imperial, a autonomia da Igreja e sua proteção jurídico-social foram essenciais para o nascimento do Estado. As duas separações em que se funda a modernidade – a da fé e da razão, e a da Igreja e do Estado – devem sua origem a causas religiosas.

Sejam ou não interessadas as considerações de Habermas – e se apreciamos ou não seu empenho em que a história filosófico-social se encaixe com seu próprio modelo de razão –, ele tira duas conclusões incomuns: primeiro, que, frente a tantos particularismos, a razão tem um potencial universal e serve para unir os seres humanos. E, em segundo lugar, que seu vigor e energia exigem que não se interrompa esse diálogo crítico e construtivo que ela tem com a fé, tão benéfico do ponto de vista histórico, científico, político e moral. Não é pouco.

©2024 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: El enriquecedor diálogo entre razón y fe

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