Pesquisas fraudulentas que servem a projetos ideológicos, professores que promovem a censura, alunos mais empenhados em “cancelar” colegas, mestres e funcionários do que em compreender, a fundo, as nuances da realidade e da natureza humana (o que deveria ser o objetivo das chamadas “artes liberais”, em países de língua inglesa, ou apenas “ciências humanas”). Se, por um lado, a corrupção das universidades está longe de ser um problema exclusivamente brasileiro, por outro, a solução para este ciclo vicioso parece simplesmente distante demais. Deve-se estabelecer “cotas” para professores minimamente críticos ao progressismo? Como fazer com que os conservadores sejam ouvidos e respeitados no ambiente universitário? Como orientar as vítimas do cancelamento?
Fundada em 2015 pelo psicólogo Jonathan Haidt, co-autor do best-seller “The Coddling of American Mind” (“A infantilização da mente americana”, sem tradução para português), a Heterodox Academy (Universidade Heterodoxa, em tradução livre) é um dos projetos mais corajosos e bem-sucedidos do mundo a perseguir a missão que se impõe com cada vez mais urgência no ensino superior: a diversidade de ideias. Em janeiro deste ano, coube ao professor de filosofia política John Tomasi, da Universidade de Brown, assumir os lemes da organização, que conta com mais de cinco mil membros em mais de 50 países. Em entrevista inédita à Gazeta do Povo, o presidente da Heterodox Academy (HxA) fala sobre o valor de um ambiente universitário onde conservadores se sintam à vontade e garante que o modelo é replicável no Brasil.
Há quanto tempo a falta de diversidade de opiniões na academia chama a sua atenção?
Na verdade, eu me interesso por este assunto há uns 20 anos, desde o comecinho da minha carreira na acadêmica. Eu tinha alunos que me relatavam nunca ter aprendido a pensar a partir dos dois lados do espectro político, e isso nos Estados Unidos. Fui simpático a estes estudantes. Em 2005, eu iniciei um projeto na Universidade de Brown para valorizar a importância da diversidade de opiniões. Muitos anos depois, quando Jonathan Haidt idealizou a Heterodox Academy, ele me convidou para ser um dos membros-fundadores.
Como o senhor definiria a Heterodox Academy? Trata-se de um projeto de defesa da liberdade de expressão na academia?
A primeira coisa importante a ser dita é que há uma diferença entre liberdade de expressão – um direito constitucional nos Estados Unidos – e o conceito mais amplo, mais ambicioso, que nós chamamos de livre questionamento, e é o princípio norteador da Heterodox Academy. É parecido com liberdade de expressão, mas é maior do que isso. O livre questionamento implica em fazer perguntas e compartilhar ideias sem medo de ser censurado ou criticado só por ter feito a pergunta. É claro que sua ideia pode ser criticada - inclusive, o motivo pelo qual nós defendemos este princípio é justamente para que possamos decidir juntos quais são as melhores ideias.
Além disso, o livre questionamento é uma forma de fomentar a escuta e a boa vontade para tentar entender o mundo. Na minha opinião, a principal diferença entre a HxA e nossos maiores críticos é o fato de que nós realmente acreditamos na democracia. Nós acreditamos de verdade que é possível trabalhar com pessoas que não pensam como nós, e é disso que se trata a democracia. Não se trata apenas de decidir em quem votar, de chegar ao poder ou dos truques sujos para continuar nele, mas de acreditar que, como sociedade, nós podemos avançar por causa das nossas diferenças. Temos ciência de que é um ideal bastante alto, e é a mensagem mais importante do projeto.
Como o senhor avalia os resultados do trabalho da Heterodox Academy nos últimos sete anos?
Penso que há dois aspectos diferentes. A situação nas universidades piorou bastante, sobretudo nos últimos cinco, dez anos. As forças que se opõem ao livre questionamento e que são a favor do autoritarismo ficaram mais fortes na sociedade americana. Não vou falar pelo Brasil, mas não ficaria surpreso se soubesse que o cenário é parecido.
O senhor não faz ideia...
Entendo. Acompanho um pouco à distância, mas não sei o suficiente para falar a respeito. De modo geral, o clima do discurso político na sociedade está pior do que estava há uma década. Por outro lado, a HxA é uma organização relativamente nova e vem crescendo consistentemente conforme a academia fica pior. Atualmente, nós temos cerca de 5 000 membros em 57 países, temos grupos muito ativos na Coreia do Sul, na Nova Zelândia, na Suécia. Não somos muito fortes na América do Sul, mas espero que não demore muito.
Nossa principal função é reunir pessoas e fazer com que elas adentrem o elevado terreno moral de não apenas criticar as coisas ruins, mas construir coisas boas; lembrar às pessoas do que é a democracia e que de que as pessoas que discordam de você não necessariamente são suas inimigas. E a universidade é um lugar privilegiado para isso.
No Brasil, há algumas tentativas de tornar a academia mais plural. São, contudo, pontuais e geralmente abafadas. O modelo da Heterodox Academy é replicável em outros países?
Eu diria não apenas que o modelo é replicável, mas que as pessoas podem, literalmente, se juntar à Heterodox Academy. Qualquer pesquisador, professor ou funcionário acadêmico, de qualquer país, que partilhe dos nossos princípios, pode participar. Nosso comprometimento é com três ideais: o primeiro, como já mencionei, é o livre questionamento. O segundo é diversidade de pontos de vista, a ideia de que o fato de membros de um grupo ou de uma comunidade abordarem problemas de formas diferentes é uma coisa positiva. O terceiro é a discordância construtiva, o entendimento de que somos todos falíveis, nenhum de nós é dono da verdade e isso serve para a política e outras ideias, e que nós podemos aprender uns com os outros.
Qualquer um que acredite nisso pode se juntar a nós. E a partir daí, fornecemos ferramentas no nosso site, temos um blog bastante ativo onde falamos sobre as questões mais complexas que professores e administradores vêm enfrentando, sobre os problemas que estão acontecendo nos campi nos últimos anos. As universidades andam falando muito de raça, por exemplo, e de novas formas de olhar para o racismo. Muitas delas são positivas, mas alguns elementos estão fechando portas para pessoas que questionem a abordagem. Falamos sobre isso no blog e no podcast, e fornecemos ferramentas que os membros podem usar em sala de aula. Por exemplo, temos programas de estudos que orientam o professor a criar um ambiente no qual os alunos se sintam encorajados a falar.
Vocês fornecem algum tipo de treinamento?
Sim, nós fornecemos treinamentos para reitores, administradores e professores. Eu assumi a presidência da HxA em janeiro, e minha ideia é começar a organizar nossos membros em comunidades de apoio. Nós estamos em todos os estados americanos mas, até agora, a maioria dos nossos membros trabalha individualmente. Temos uma comunidade online bastante ativa e alguns destes grupos são organizados por país ou região, mas também temos divisões por área - “HxA Ciências Políticas”, “HxA Ciências Exatas”, “HxA Estudos Hispânicos” e por aí vai. Quem entra na HxA pode participar destas comunidades e conhecer professores em suas áreas que compartilham destas ideias. Podem contar quais problemas estão enfrentando e buscar soluções em suas próprias universidades.
O professor de filosofia Peter Boghossian (leia aqui sua entrevista à Gazeta do Povo), perseguido por se opor ao ativismo identitário, conta que o reitor da universidade onde ele lecionava afirmou ter “orgulho” de ver sua instituição mal colocada no ranking da HxA, que elenca as universidades mais propícias para o livre questionamento. Quais são as maiores dificuldades enfrentadas pela HxA hoje em sua missão?
Acho que o maior problema é a crescente falta de confiança na democracia, um sentimento crescente tanto à direita quanto à esquerda de que o sistema democrático está falido e se transformou em uma arena de guerra cultural. Ocorre que os lados mais extremos desta guerra não têm qualquer respeito pela liberdade de expressão nem pelo diálogo franco. Eles acreditam que têm a verdade, e se puderem empurrá-la goela abaixo enquanto silenciam as pessoas, ficarão satisfeitos. Não sei quem é o reitor que Boghossian citou, mas ele tem uima ideia similar às de outros que conheço. Há universidades que se sentem imbuídas da verdade, em vez de se entenderem como um instrumento para que os alunos as procurem. Estas não terão pudor em impor suas ideias.
Falando de radicais: devido à predominância de professores de esquerdas, conservadores veem a universidade com desconfiança e, em muitos casos, até evitam o ambiente universitário. Por outro lado, a esquerda acredita que dar espaço aos conservadores significa validar o “discurso de ódio” e o “negacionismo”. Como os conservadores podem contribuir para um ensino superior de qualidade?
Eu acredito que a maior contribuição dos conservadores e defensores da liberdade de expressão seja lembrar as pessoas dos princípios básicos, de voltar às perguntas originárias, à natureza dos argumentos e dos debates. São eles que nos lembram de perguntar: o que é a democracia? Nós acreditamos nela? Ela requer que certas pessoas sejam silenciadas? Na base de tudo isso, está o respeito à dignidade humana. Os radicais pensam que sua verdade é mais importante que a democracia e que a dignidade, não estão dispostos a fazer o trabalho sério, vagaroso, de buscar as mudanças sociais. O avanço só acontece quando você convence as pessoas, aos poucos, a seguir por um caminho melhor.
O senhor mencionou o “trabalho sério, vagaroso” da busca por mudanças. Isso não é um princípio conservador a ser exaltado?
Sem sombra de dúvida. E acho muito importante que os conservadores façam essa conexão entre o princípio da preservação, o conhecimento acumulado pelas gerações anteriores e o valor da democracia. Porque um regime democrático requer uma forma mais lenta de avançar as pautas na sociedade, requer uma certa prudência.
Novamente, você pode ser progressista e ser um democrata de verdade, mas essa prudência costuma estar associada aos conservadores, que tendem a buscar a sabedoria no passado, nas tradições, enquanto os progressistas se ancoram na razão, no que é novo, no futuro. Há sabedoria e pontos cegos nos dois lados. Por isso a democracia precisa que estes dois grupos consigam conversar.
Além disso, se você ameaça pôr abaixo todo o sistema institucional, ao invés de se ancorar aos valores da Constituição, você se torna vulnerável aos movimentos dos radicais. É sequestrado pelo pêndulo ideológico. É um outro princípio a ser conservado.
Muitos progressistas defendem ações afirmativas para corrigir as desigualdades de raça e de gênero na academia e em outras instituições. A Heterodox Academy defende esse tipo de ação para alcançar a diversidade de pontos de vista? Vocês defendem, por exemplo, que haja uma cota para conservadores?
Em primeiro lugar, quando eu falo em diversidade de opiniões, me refiro a uma forma muito mais ampla do que meros partidos políticos. É claro que podemos começar a pensar em termos de direita e esquerda e é importante que os dois lados estejam representados nos campi universitários, o que infelizmente não acontece com frequência. Mas é importante dizer que a diversidade de pensamento defendida pela HxA é maior do que a política.
Nós pensamos que há uma diversidade de ideias que vêm das experiências das pessoas, de pessoas de classes diferentes, por exemplo. É importante ter pessoas com diferentes experiências sociais. Também é importante ter pessoas de diferentes raças, diferentes experiências históricas em suas comunidades, diferentes famílias e sexualidade. Também é extremamente importante, eu acho, ter pessoas com diferentes crenças – crenças profundas e genuínas – no campus, e é essencial que elas sintam que podem trazer suas perspectivas religiosas para a conversa, ao lado do ponto de vista secular que tende a dominar as universidades.
Quanto às ações afirmativas, quando falamos deste assunto, geralmente estamos nos referindo a sistemas de cotas e eu acho que eles causam um monte de problemas. Mas eu acho, sim, que a universidade tem a obrigação de estar ciente de quando a diversidade estiver em declínio em suas salas de aula, quando estudantes ou professores de uma determinada corrente política ou crença religiosa não estiverem se sentindo mais à vontade não porque há críticas a suas ideias, mas porque são vistas como inerentemente racistas, sexistas ou nocivas.
Nesse sentido, acho que é importante, sim, que as universidades levem muito a sério seu critério para admissões e se questionem: “há algum viés aqui, que não estamos percebendo? Estamos privilegiando estudantes só porque pensam de uma certa forma? Como podemos corrigir isso?”. Uma vez que isto esteja estabelecido entre os alunos, podemos pensar nos professores, na administração e outras equipes.
Vale lembrar que as universidades são um tipo de comunidade da qual é muito difícil participar: você precisa enfrentar um monte de provas e precisa mostrar que é digno do investimento. É justo que tentemos promover as melhores conversas possíveis e que nos perguntamos se estamos perseguindo esta missão ou tentando impor uma agenda política. A política deve ser estudada e debatida nas universidades, mas não pode domina-las.
A Heterodox Academy dá algum tipo de recomendação para quando seus membros são vítimas de tentativas de “cancelamento” ou outras formas de intimidação?
Sabemos que é uma situação muito difícil. Quando a multidão está contra você no Twitter, a própria estrutura da rede deixa tudo pior. No site da Heterodox Academy, temos alguns textos explicando o que se deve fazer quando isso acontece. Alertamos para o fato de que professores ou alunos vítimas do cancelamento certamente passarão por tempos conturbados e devem se aproximar dos amigos, da família e de pessoas capazes de lembra-los que não estão sozinhos.
Também é natural que alguns pensem que devem contra-atacar, mas isso normalmente piora as coisas. Outros querem pedir desculpas imediatamente e, segundo nossa experiência, isso raramente ajuda – a não ser que, depois de alguma reflexão e sem ceder à pressão da internet, a pessoa entenda que fez algo de errado. No mais, é preciso que a vítima mantenha sua integridade e se dê conta de que não é a única na história a ser injustamente atacada. Ninguém que tenha passado por essa experiência achou divertido, mas há algo de heroico em ser alvo de ataques e, de forma polida, com clareza e generosidade, manter a cabeça erguida e evitar tratar nossos críticos na mesma moeda. Juntar-se a um grupo como a HxA também pode ser uma ajuda importante. Vale a pena integrar estas redes de apoio antes mesmo do ataque.
O psicólogo Jonathan Haidt sugere que a razão, ou a mente consciente, é como um domador tentando controlar um elefante – sendo que este representa nossas emoções e vieses. Isso dá a entender que os problemas morais são muito difíceis de resolver de forma consensual - às vezes, impossíveis.
Considerando a influência de Haidt na Heterodox Academy e a imagem do domador com o elefante, há alguma esperança de construir um consenso acerca da importância da diversidade de opiniões?
Acho que há, sim, e o primeiro passo é justamente o de se dar conta do quão difícil é raciocinar de forma livre. A mente humana é uma estrutura muito complexa, estudada há anos por muita gente, e se há algo que sabemos com certeza é que a razão vem em segundo lugar na maior parte das vezes. Nossas reações são majoritariamente emocionais e nós tentamos racionalizá-las depois.
É importante ter consciência de que todos temos vieses tão enraizados que simplesmente não é possível nos livrarmos deles. E quando falamos de organizações, instituições e universidades, o caminho para responder ao fato de que nossos cérebros são como um elefante conduzido por um ser humano é entender que precisamos de instituições capazes de contrabalancear as tendências. Esse é o grande insight da diversidade de opiniões, na verdade. Se a verdade nunca estará completamente visível para mim, a solução está na experiência em comunidade, e não na melhoria da mente individual.
No começo da nossa conversa, o senhor disse que o cenário ideológico no ensino superior está pior e eu já ouvi, mais de uma vez, de brasileiros e americanos, que há de piorar muito antes de começar a melhorar. De onde tirar alguma esperança?
Penso que a esperança está em recordar sempre que a história costuma passar por esses tempos sombrios e, nestes momentos, o mais importante a ser feito é procurar pelos pontos de diálogo para que consigamos nos fazer ouvir. Sempre haverá pessoas questionando as bases da política, das universidades e do conhecimento. No limite, é um convite para que reflitamos uma vez mais sobre estes valores. As discordâncias acabam por nos lembrar do que nos faz humanos e de nossa intrínseca necessidade de conexão. Acabo de receber, neste instante, a confirmação de que há 26 professores membros da Heterodox Academy no Brasil. Seria muito legal que eles se conhecessem.
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