Costurar relacionamentos entre empresários, políticos e juízes. Assim se poderia definir o papel do Grupo de Líderes Empresariais (Lide), de João Doria, que voltou aos holofotes nas últimas semanas, ao bancar a viagem de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a Nova York. O relacionamento do grupo com a Suprema Corte brasileira, no entanto, não teve início neste episódio que violou leis da magistratura e dos servidores, na avaliação de juristas ouvidos pela Gazeta do Povo. Em 2017, o Lide realizou um almoço com presença de Alexandre de Moraes, recém-escolhido para o STF, que concedeu uma palestra a um grupo selecionado de empresários, associados da organização, que pagam mensalidades da ordem de R$ 10 mil e compram cotas de patrocínio nos eventos. No mesmo ano, o então prefeito de São Paulo, João Doria, protagonizou polêmicas com viagens e eventos do Lide, em que ficava difícil separar público e privado.
Em 2019, o fundador do Lide e então governador de São Paulo, voltou a misturar funções públicas e privadas ao prestigiar um almoço-debate com o então presidente do STF, Dias Toffoli. E, mais recentemente, em 8 de novembro, outro ministro, André Mendonça, participou de um evento da regional do Lide, no Rio de Janeiro.
O Lide surgiu em 2003 e, rapidamente, conseguiu se firmar como um dos principais grupos de lobby do Brasil, ainda que esta palavra nunca seja utilizada nas comunicações da entidade. Em seu site oficial, o Grupo Doria prefere se definir como "especializados em potencializar a capacidade de fazer negócios com rapidez e eficácia, seja pela produção e disseminação de conteúdo, promoção de relacionamento ou experiência de marca”. A “promoção de relacionamento”, aliás, é claramente importante para as atividades do Lide.
Em entrevista concedida à revista VEJA já em 2007, poucos anos depois do lançamento do grupo, Doria explicava como conseguia reunir tantas pessoas influentes em seus eventos. “É um ganha-ganha. Quem vai ganha amigos, clientes, informação, conteúdo, negócios. A prova é que nunca houve quem não quisesse voltar”, disse. Ele também fornecia algumas dicas, incluindo enviar brindes (que preferia chamar de “delicadezas”) na véspera. E avisar a um concorrente que o outro confirmara presença no evento. Outra sugestão: nunca convidar pessoas de cargos abaixo de vice-presidente de empresas.
Trata-se de um clube exclusivo, de fato. Para participar do Lide, é preciso estar em cargos políticos de alto escalão. Ou, no caso de empresários, confirmar um faturamento mínimo de R$ 200 milhões anuais. Em 2006, os organizadores dos eventos do grupo informavam à Agência Estado que o Lide agregava 40% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.
Presente em cinco continentes, o Lide mantém no Brasil grupos de nível estadual, além de subdivisões exclusivamente femininas. No exterior, há unidades em países como Alemanha, Argentina, Austrália, China, Estados Unidos, Inglaterra, Itália e Suíça. A sede fica na Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo, um dos principais centros financeiros do país.
No Brasil, o lobby não é regulamentado por lei, mas está protegido pela Constituição Federal. “A atividade de lobby em si mesma não configura crime. Mas, diante da ausência de contornos claros, não é incomum que se confunda o lobby com os crimes de corrupção, advocacia administrativa e tráfico de influência”, explica Afonso Celso de Oliveira, advogado civilista.
Segundo ele, ainda assim, há o risco de que os limites ainda não regulamentados possam ultrapassar a barreira da legalidade para a ilicitude. “Se comprovada a existência de vantagem econômica ou política aos atores envolvidos na esfera pública (magistrados, ministros, servidores em geral), a atividade deixa de ser lobby para a concepção de atividade criminosa, onde se inclui os tipos penais de corrupção passiva/ativa, associação criminosa etc.”, detalhe o jurista.
Mesmo em situações em que a barreira da ilegalidade não seja transposta, Oliveira acrescenta que uma postura mais resguardada é sempre positiva para quem assume determinadas funções públicas, como juízes, por exemplo. "Prefiro conceber a ideia de juízes que guardem a discrição e a liturgia que seu cargo lhes impõe, evitando manifestar-se sobre assuntos polêmicos fora dos autos, para que não se configure o ativismo judicial, que é quando a atividade do juiz se confunde com a do legislador ou do poder executivo, misturando suas funções e ultrapassando suas prerrogativas, trazendo assim insegurança jurídica, por decisões que deveriam ser pautadas na melhor técnica do direito e, entretanto, foram pautadas pela visão ideológica e política do magistrado”, completa.
Público e privado
Mesmo enquanto foi prefeito e governador, Doria não se desvencilhou de sua rotina com o Lide, especialmente nos momentos em que buscou impulsionar sua candidatura à presidência. Em diferentes ocasiões, aproveitou viagens para participar de eventos como figura pública e também como empresário – era comum o grupo organizar almoços ou jantares no mesmo local onde o governador estaria.
Em agosto de 2017, quando ainda era prefeito da capital paulista, Doria “se deslocou a cinco cidades para comparecer a eventos que tiveram o Lide entre seus organizadores”, segundo reportagem publicada pelo Valor Econômico, intitulada “Doria usa rede do Lide para rodar o país”. O texto relata que, em poucos dias, “Doria foi a Fortaleza para evento do qual o Lide Ceará foi um dos três organizadores. Depois voou a Recife para seminário promovido pelo Lide Pernambuco, cujo presidente, Drayton Nejaim, desligou o telefone quando questionado pela reportagem sobre a iniciativa”.
“Em sua agenda pública, Doria não explicita quando os eventos têm o Lide na organização”, informava a reportagem, citando outros eventos dos quais participou na época, em Curitiba (PR), Brasília (DF), Salvador (BA) e Natal (RN) – onde “recebeu o título de cidadão natalense não na Câmara, mas no Teatro Riachuelo, pertencente a Flávio Rocha, dono da Riachuelo. “Na ocasião, sugeriu-se que os dois formassem chapa juntos para o Planalto.”
Na mesma época, João Doria buscou apoio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), que concordou em realizar uma palestra para o Lide. O cachê não foi confirmado, ainda que, naquele momento, o ex-presidente costumasse cobrar R$ 200 mil para participação em eventos.
No início de 2017, o Lide já havia sido destaque na Folha de S. Paulo por solicitar recursos a empresários para bancar uma palestra do próprio Doria, então prefeito da capital paulista. A publicação teve acesso a um e-mail do grupo enviado às empresas, "pedindo dinheiro para financiar o 'almoço-debate' com líderes empresariais no dia 6 de março, no hotel Grand Hyatt, na capital paulista, com apresentação do prefeito recém-empossado”. Na ocasião, uma cota de patrocínio de R$ 50 mil daria direito a sentar à mesa principal com Doria. Tanto o Lide quanto a prefeitura negaram conflitos de interesses na época.
Evento no Palácio dos Bandeirantes
Aliás, Rodrigo Garcia, vice de Doria e governador de São Paulo até o fim deste ano, é presença constante nos congressos organizados pelo grupo, incluindo a Lide Business Trip China, em 2019, e a viagem recente a Nova York.
Formalmente, o controle do Lide está nas mãos do filho do ex-governador, João Doria Neto – o pai passou o bastão quando decidiu se candidatar a prefeito de São Paulo, em 2016, e hoje é vice-chairman do Advisory Board do grupo.
Depois do encontro polêmico em Nova York, o grupo ainda vai entregar o prêmio Líderes do Brasil 2022, no dia 7 de dezembro, no Palácio dos Bandeirantes, edifício-sede do governo estadual de São Paulo. O evento mostra que o Lide segue empenhado em conectar empresários a parlamentares e, principalmente, líderes do judiciário.
A Gazeta do Povo procurou o Grupo Lide para uma entrevista, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
A gestão pública, um pouco menos engessada
Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura