A comissão especial da Câmara dos Deputados que discute a reforma da Previdência recebeu 277 sugestões de modificação no texto. Muitas delas foram feitas por influência de grupos de interesses, compostos por categorias que buscam condições especiais para si. Qualquer cidadão pode chamar a atenção dos poderes públicos para alguma questão ou situação. É o chamado “direito de peticionar”, popularmente conhecido como “lobby”. Embora esse tipo de movimentação seja legítima, não significa que elas sejam saudáveis para quem amarga o valor da conta.
Isso porque o lobby pode ser usado para que grupos de interesse pressionem autoridades políticas a chancelarem privilégios, restringindo ou mesmo proibindo a concorrência de agentes privados em determinado setor. Quando um grupo consegue, por exemplo, dificultar que empreendedores atuem em determinados mercados, quem realizou o lobby passa a ter maiores oportunidades de obter lucros. É o que ciência política classifica como “rent-seeking”, ou “busca por renda política”. Quando bem-sucedido, ele pode resultar em uma transferência de renda significativa da população para estes grupos. Entender em que contextos esse fenômeno ocorre é fundamental para compreender o funcionamento das instituições.
Taxistas x aplicativos
Um exemplo da força de um grupo de interesses citado pelo economista e diretor do Instituto Adam Smith Eamonn Butler é o dos taxistas de Nova York. Antes da ascensão de aplicativos de mobilidade, como a Uber, havia uma legislação que fixava o limite de 13 mil táxis para atender aos mais de 8 milhões de moradores da cidade. Contudo, oito décadas antes, quando a cidade tinha uma população menor, a legislação da época permitia o dobro de motoristas de táxi, 26 mil. Como a legislação proibia a entrada de novos concorrentes, à medida que a população aumentou e as permissões para novos taxistas diminuíram, os preços ficaram artificialmente mais altos, garantindo aumento de renda para quem atuava no mercado.
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A força do grupo dos taxistas também foi sentida no Brasil, com dezenas de projetos de lei em todo país que buscavam proibir aplicativos de mobilidade urbana como a Uber, 99 e Cabify, ou mesmo regulamentar a atividade de forma proibitiva. Em maio de 2019 o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucionais leis municipais que proibiram o aplicativo.
O rent-seeking distorce as decisões públicas e, em troca, distorce o mercado, reduzindo a competição, de modo que pequenos grupos são beneficiados e acabam causando prejuízo à comunidade em geral.
De acordo com estudos do economista Gordon Tullock realizados desde os anos 1960, o ganho potencial de uma atividade de rent-seeking é tão significativo que faz todo o sentido que grupos de interesse passem muito tempo investindo na tentativa de garantir privilégios. O problema é que isso pode resultar em atividade improdutiva, com perdas para a economia. Tempo, esforço, dinheiro, habilidade e visão empreendedora de muitas pessoas talentosas são desperdiçados ao longo do processo. O comportamento da busca por renda política, nesse contexto, não produz nada de valor para a comunidade.
Benefícios concentrados e custos difusos
Todo político é eleito por determinado tipo de eleitorado que o fará tentar atender os interesses do eleitorado para que seja reconduzido ao cargo e se mantenha no poder. Assim, ele tende a buscar a aprovação de legislações que beneficiem o grupo que representa ou a alocar recursos que beneficiem grupos específicos, mesmo que isso prejudique os demais grupos da sociedade.
Um exemplo de como minorias organizadas preponderam sobre maiorias desorganizadas foi a política de Campeões Nacionais capitaneada pelos governos Lula e Dilma Rousseff, por intermédio do BNDES. Entre maio de 2007 e maio de 2016, o custo dessa iniciativa foi de R$ 1,2 trilhão.
Essa política foi paga por todos os 200 milhões de brasileiros, tendo custado menos de R$ 6 reais por ano para cada um durante o período. Se, por um lado, há poucos incentivos para um brasileiro ir às ruas para protestar por causa dos empréstimos do BNDES — uma vez que esses empréstimos custarão, individualmente, um valor inferior ao preço da passagem de ônibus até os protestos — há muitos incentivos para que uma empresa como a Odebrecht, que recebeu mais de R$ 18 bilhões do banco, investisse centenas de milhões de reais em lobby para pressionar autoridades políticas a fim de obter a aprovação desses valores subsidiados. O mesmo vale para a JBS, beneficiada em mais de R$ 7 bilhões, FIAT (cerca de R$ 10 bilhões), Andrade Gutierrez (R$ 5,3 bilhões), e tantas outras.
Embora a Operação Lava-Jato tenha mostrado que muitas dessas operações foram realizadas graças ao pagamento de propinas, a mesma lógica se aplica a negociações e aprovações lícitas. A busca por renda política pode custar muito caro para a sociedade, mas não é necessariamente assunto de Código Penal.
Leis e salsichas: não queira saber como são feitas
Como a busca por renda política é inerente à política, o jornalista político Patrick Jake O’Rourke popularizou a frase “quando compra e venda são reguladas por lei, a primeira coisa a ser comprada e vendida são os legisladores”.
Os políticos, no entanto, não reagem apenas passivamente às demandas de grupos de interesses. Assim como se empreende no mercado, autoridades políticas também podem empreender na política, aproveitando-se de oportunidades para obter algum tipo de ganho. Entre as formas possíveis de se fazer isso, consta a chamada “rent-extraction, ou extração de renda, expressão cunhada pelo economista e professor da Universidade de Miami Fred Mcchesney. Trata-se de uma espécie de extorsão feita pelos políticos. Nesse caso, eles conseguem vantagens não para legislar em defesa de um grupo de pressão, mas para que suas ameaças de atrapalhar certo setor não sejam efetivamente postas em prática.
Para se ter ideia do quanto grupos de pressão influenciaram na elaboração da Constituição Federal de 1988, o cientista político Murillo de Aragão mapeou a participação de pelo menos 383 grupos de pressão e entidades públicas e privadas. O número pode ser ainda maior, já que não havia obrigatoriedade de identificação do grupo.
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Um dos grupos de interesses mais fortes da época eram os militares, que acompanharam de perto todo o processo da constituinte. Em um momento em que muitos integrantes das Forças Armadas ainda eram contrários à redemocratização, diversos militares ainda atuavam no dia a dia da política nacional. Segundo José Sarney, presidente da República durante o processo de elaboração da Constituição, quando o constituinte Bernardo Cabral tentou mudar a redação do que veio a ser o artigo 142 da Constituição Federal, dispositivo que trata do papel das Forças Armadas — desfazendo o acordado antes do início da elaboração da Constituinte —, houve “riscos reais de novo golpe militar”, o que indica o poder de influência que os militares tiveram no evento.
Quem manda no Congresso?
Um estudo que analisou todas as participações em audiências públicas e seminários nos anos de 2011 e 2012 mostrou quais foram os grupos de pressão mais atuantes e influentes do Congresso Nacional nesse período.
Entre as centenas de grupos que atuaram perante o Congresso Nacional, destacaram-se sindicatos, grupos de direitos civis, minorias raciais, entidades de portadores de doenças ou deficientes, agronegócio, entidades profissionais e de saúde. O levantamento concluiu que 14 grupos de interesses (1,43% do total) se destacaram pela maior capacidade de mobilização e articulação: eles demonstraram o poder de coletar e repassar informações, incitando pessoas e outras organizações, além de canalizarem recursos para fazer valer seus interesses.
Metade deles é composta por centrais sindicais (CTB, CUT, CONLUTAS, NCST, UGT) e suas organizações afiliadas (DIEESE e FST). O movimento de trabalhadores se destaca ainda pela atuação de sindicatos e associações de funcionários públicos, com a SINAIT (auditores do trabalho), ANPT (procuradores do trabalho), a ANAMATRA (juízes do trabalho) e a ANFIP (auditores fiscais), além de uma associação de aposentados (COBAP). Dois grupos empresariais, a CNI e a CNC, também merecem menção. Isto é, o lobby dos trabalhadores é muito superior ao de grupos empresariais.
Lobby não é crime
O lobby muitas vezes assume conotação pejorativa, sendo associado a atividades criminosas e de corrupção. Embora atividades ilícitas possam ocorrer a partir dessas movimentações, não significa que todo lobby resultará em negociatas.
O lobby pode ser explícito, como no caso da participação de grupos organizados em audiências públicas, protestos e envio de mensagens a autoridades. Já o lobby implícito pode ocorrer de todas as formas possíveis, nos bastidores, em gabinetes de autoridades, corredores do Congresso e eventos de entidades que convidam autoridades, por exemplo.
A regulamentação do lobby é discutida há cerca de quatro décadas no Congresso brasileiro. Neste período, já foram apresentados aproximadamente 30 projetos sobre a matéria. O governo Bolsonaro estuda uma proposição legislativa inspirada no modelo chileno, criando regras de maior transparência nas relações entre agentes privados e públicos.
E o que pode ser feito?
Os cientistas políticos ouvidos pela Gazeta do Povo foram unânimes em responder que o rent-seeking é algo “inerente à política”.
Para Bruno Carazza, ele será maior quanto mais oportunidades de negócios o Estado oferecer. “Quanto mais opaco for o processo de concepção de políticas públicas, maiores as chances de um comportamento rent-seeking por parte de grupos de interesses”, complementa o autor de Dinheiro, eleições e poder: As engrenagens do sistema político brasileiro.
Adriano Gianturco vai além. “[O rent-seeking] é inerente não só à política, mas aos seres vivos, seres humanos e outras espécies. Estamos falando de parasitismo. Em português pode ser um termo muito ruim, com uma conotação negativa, mas o rent-seeking, em essência, é isso. Ele existe em todas as espécies de animais, fungos, sanguessugas, há entre vegetais também. E há autores que tratam isso, como Gianfranco Miglio, Alessandro Vitale, Nicola Iannello”, diz.
Autor de A Ciência da Política, Gianturco explica que “é tendência do ser humano optar pelo poder e viver às custas dos outros, o que é chancelado a partir do Estado”. Ele analisa que o Estado é o ente que oferece “uma série de oportunidades de free-riding” (com indivíduos e grupos vivendo às custas dos demais). “Os grupos que buscam rent-seeking institucionalizam essa tendência de parasitismo a partir do Estado”, afirma.
Embora a busca por renda política seja inevitável, há formas de diminuir o tamanho, intensidade, magnitude e extensão do fenômeno. Entre as soluções, Carazza aponta menos burocracia, um sistema tributário horizontal (sem alíquotas ou regimes diferenciados para determinados setores), vedação a qualquer tipo de Refis (renúncias fiscais) e uma revisão completa de esquemas de subsídios e outros gastos tributários setoriais. “Quanto ao processo de concepção de políticas públicas e regulação, necessitamos de avaliações prévias, um processo legislativo transparente (inclusive quanto às atividades de lobby) e reavaliações periódicas de implementação e impacto”, diz.
Gianturco repete a receita: liberalizar, privatizar, desregular, desburocratizar. O maior problema dessa agenda, contudo, é simples: ela representa tudo a que os grupos de interesses costumam se opor no Congresso Nacional.