O Ministro da Cidadania, Osmar Terra, engavetou um estudo realizado pela Fiocruz sobre o uso de drogas no Brasil. A pesquisa custou aos cofres públicos R$7 milhões e, pelas declarações do ministro, os resultados apontam para a inexistência de uma epidemia de drogas no Brasil – o que vai contra o senso comum tanto do ministro quanto de boa parte da população.
Em entrevista ao jornal O Globo, Osmar Terra disse que a epidemia de drogas no Brasil é evidente para qualquer pessoa que ande pelas ruas das grandes cidades. Um argumento de difícil refutação. Tão difícil que o governo brasileiro decidiu em algum momento gastar R$7 milhões, mobilizar 500 pesquisadores e entrevistar 16 mil pessoas para confirmá-lo – ou refutá-lo empiricamente.
Assim, o ministro se junta a uma pequena multidão de notáveis que, nos últimos tempos, insiste em fazer prevalecer sua experiência subjetiva do mundo. É o que faz o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao negar enfaticamente a possibilidade do aquecimento global em meio a uma nevasca. E o que faz todo mundo que insiste em reproduzir o mito de que pessoas canhotas são mais criativas dos que as destras.
Viés de confirmação
Osmar Terra, Trump e quem mais refutar a experiência objetiva com base na observação subjetiva dos fenômenos sofre do que os psicólogos chamam de “viés de confirmação”. Trata-se da tendência a interpretar, defender e se lembrar de informações apenas com o intuito de confirmar hipóteses ou crenças pré-existentes. Todos, em maior ou menor grau, sofremos disso.
O fenômeno foi identificado ainda nos anos 1960, depois de uma série de experimentos realizados por Peter Cathcart Wason e que deram origem à Regra da Descoberta de Wason. Em resumo, as pessoas sempre tendem a analisar os fatos de modo a encontrar uma regra, uma lógica por trás de fatos aleatórios. E, uma vez que encontrem uma regra que as satisfaçam, elas se apegam a ela, independentemente de a regra ser, mais tarde, refutada.
O psicólogo e professor de Stanford Robert MacCoun, em seu trabalho sobre “análise cega”, foi além, explicando que esse processo de interpretar dados equivocadamente, de modo a confirmar crenças anteriores, nasce de uma combinação de mecanismos cognitivos e emocionais. Ao engavetar a pesquisa da Fiocruz, por exemplo, o que o ministro Osmar Terra está fazendo é pegar uma espécie de atalho cognitivo a fim de satisfazer um desejo emocional – no caso, o desejo emocional de se deparar com uma epidemia de uso de drogas contra a qual ele possa fazer alguma coisa.
Estudiosos de todos os tipos de vieses cognitivos concordam que poucas coisas são tão difíceis quanto romper com o viés de confirmação das pessoas. Uma das explicações possíveis para isso é, na verdade, bem simples: estar com a razão, independentemente dos fatos, é algo que deixa as pessoas mais felizes. Além disso, crenças compartilhadas também afetam nosso senso de comunidade e nos ajuda a formarmos grupos coesos. O que explica, inclusive, as bolhas ideológicas que se formam nas redes sociais.
História
Antes mesmo de os psicólogos se debruçarem sobre o assunto, o filósofo inglês Francis Bacon já mencionava a tendência das pessoas de analisarem dados tendenciosamente, de forma a comprovar uma hipótese subjetiva anterior. Em seu Novum Organum, Bacon, considerado o pai do empirismo e da ciência moderna, já atenta para o fato de as pessoas, uma vez que tenham certa opinião, “usarem de todas as coisas para sustentá-la e apoiá-la”.
O filósofo Arthur Schopenhauer, com sua língua afiada, também já falava daqueles que facilmente se curvavam à própria opinião, desprezando a objetividade. “Uma hipótese nos faz termos olhos de lince para tudo o que seja capaz de confirmá-la e nos cega para tudo o que a contradiz”, escreveu ele em seu O Mundo como Vontade e Representação.
O escritor inglês Charles Dickens, por sua vez, personificou o viés de confirmação no personagem Uriah Heep, do romance David Copperfield. Heep acredita que tem razão em tudo porque interpreta o mundo de modo a ter razão em tudo, ignorando qualquer sinal que o contradiga ou distorcendo a realidade objetiva de modo a encaixá-la em sua visão de mundo.
O método científico
O método científico foi criado no século XVII justamente para confirmar ou refutar ideias que antes se baseavam no acaso, em superstições, em interpretações enviesadas dos fenômenos observáveis e, claro, em correlações ao acaso – vejo pessoas caídas na sarjeta por causa das drogas, então definitivamente há uma epidemia.
O processo todo tem início com uma hipótese (“há uma epidemia de drogas no Brasil”, por exemplo) que, posteriormente, é submetida a testes (pesquisas de campo, entrevistas, coleta de dados) a fim de se chegar a uma tese que confirme ou refute a premissa original.
Em questões como a levantada pelo ministro Osmar Terra, o método científico passa ainda pela consolidação de conceitos importantes para a confirmação ou refutação da hipótese. O que é e o que configura uma epidemia? Sendo uma epidemia definida como um “surto de doença”, quais drogas se enquadram nos critérios de vício? E vício em drogas é de fato doença para configurar uma epidemia?
Ou seja, muitas são as perguntas a serem feitas e, posteriormente, respondidas até que se chegue a um diagnóstico final. Diagnóstico esse que não está imune a análises e interpretações também enviesadas.
Uma hipótese
Claro que há a hipótese de o ministro Osmar Terra estar certo em seu diagnóstico de que há, sim, uma epidemia de uso de drogas no Brasil. Afinal, as Cracolândias espalhadas por todo o país, com seus “nóias zumbis”, são sinais claro de que há algo de muito errado. E é claro que o estudo, a despeito de ter entrevistado 16 mil pessoas e de ter mobilizado 500 pesquisadores, pode estar equivocado e, pior, ideologicamente enviesado.
Mas somente com a divulgação do estudo e com uma posterior análise paritária criteriosa é que poderemos objetivamente confirmar ou refutar essa má impressão e, mais importante, tentar fazer alguma coisa a respeito dela.