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Opinião

“Era uma vez… em Hollywood” revela um Tarantino acidentalmente conservador

A Sharon Tate de Tarantino é a personificação de uma felicidade infantil e semiestúpida como só o cinema é capaz de proporcionar. (Foto: Andrew Cooper/ Divulgação)

O filósofo Sir Roger Scruton diz que ser conservador é encontrar o que você ama e agir para proteger isso. A alternativa seria encontrar o que você odeia e agir para destruí-lo. Em Era uma vez... em Hollywood, Quentin Tarantino surpreende o espectador ao mostrar esta sua faceta conservadora, protegendo o cinema que ele tanto ama de uma mácula histórica – o assassinato de Sharon Tate por seguidores de Charles Mason – e do intelectualismo sempre muito profundo, muito pesado, muito carregado de segundas intenções e muito triste da Hollywood contemporânea.

Tarantino conservador?, você pergunta, talvez até indignado com minha ousadia. Afinal, como é possível que um diretor famoso por celebrar a violência, quando não as drogas e o sexo e toda a sorte de transgressão moral, que faz verdadeiras odes ao submundo e à superficialidade, que evoca em seus filmes aquilo que o ser humano tem de mais abjeto – o uso da força para resolver conflitos – pode ser chamado de conservador?

Diria, então, e espero que cheguemos a um acordo quanto a isso, que Tarantino é, ao menos por seu Era uma vez... em Hollywood, um conservador acidental.

E os progressistas, os revolucionários estéticos e narrativos que andam por aí policiando a criatividade alheia, na esperança de destruir tudo o que odeiam, sabem disso. Intuitivamente, de punhos cerrados e gritando palavras de ordem, eles sabem. Tanto que Tarantino está sendo acusado até de fazer – veja só! – uma ode à violência, algo que ele faz desde Pulp Fiction, e também de ser misógino e sexista neste filme que é apenas uma declaração de amor ao cinema.

Uma declaração de amor não exatamente ao cinema como arte, daquelas que a gente encontra em Cinema Paradiso ou O Artista. A declaração de amor de Tarantino é mais ampla. É ao cinema como cor e música, por um lado, e ao cinema como estilo de vida dentro e fora da tela, por outro. O cinema como diversão, como imaginação, como uma expressão da (vou repetir a palavra aqui) superficialidade, da banalidade, de tudo o que é vão e fugaz. Da transitoriedade.

É este o cinema exaltado por Tarantino em Era uma vez... em Hollywood. Um cinema que desde o seu nascimento criou deuses os mais imperfeitos possíveis, de Chaplin a Brad Pitt, passando por Sharon Tate e Polanski. Para o diretor, o cinema é uma espécie de Olimpo, um lugar mítico onde pecados como a ira e a luxúria perdem seu caráter mais sujo e ganham contornos de Eternidade.

Veja, por exemplo, a Sharon Tate retratada por Tarantino em Era uma vez... em Hollywood. Tate é a grande razão dos ataques ao diretor, que não teria dado falas o bastante para a personagem e que a teria mostrado como um mero símbolo sexual. Sharon Tate, se é que você, leitor, não sabe, foi morta por seguidores de Charles Mason – episódio que é de certa forma redimido na cena final do filme.

Pois não há nada de machista, misógino, sexista ou sei lá o que na fantasia de Tarantino. O que há é uma homenagem à Hollywood dos sonhos realizados, da vaidade exacerbada, do hedonismo tolo, tão tolo que é quase puro. É por isso que Tate aparece o tempo todo dançando: a vida dela é uma sequência de dias prazerosos, sem crises existenciais, sem problematizações políticas, sem quaisquer dores cotidianas. É por isso que ela vai ao cinema para se ver na tela: Tate é a personificação de uma felicidade infantil e semiestúpida como só o cinema é capaz de proporcionar.

Ah, mas então quer dizer que todas as mulheres são assim umas dondoquinhas de minissaia embasbacadas com a própria beleza? Claro que não! Na vida real e, pior, agorinha mesmo, imperam nas ruas, entre homens e mulheres, o ressentimento e a infelicidade, com uma pitada de tédio e privilégio.

Aí é que está: Tarantino e o espectador inteligente de Era uma vez... em Hollywood não querem saber da vida real. Tiranias e teses não lhes interessam. O que eles querem é comer pipoca sem pensar na gordura trans, beber refrigerante sem pensar na diabetes, se afundar na poltrona sem pensar em germes e mergulhar nas cores de uma história que os leve a uma versão muito particular e íntima do Paraíso por duas, três horas.

O cinema que Tarantino quer conservar é um mundo onde, a despeito das drogas, da promiscuidade e da vaidade, e por mais contraditório que isso possa parecer a um conservador com cê maiúsculo, não há lugar para a infelicidade.

Veja, por exemplo, o personagem estoico de Brad Pitt, Cliff Booth, um dublê que vive à margem do esforçado Rick Dalton, interpretado por Leonardo di Caprio. Apesar dos revezes, e eles são muitos ao longo do filme, Booth não tira o sorriso do rosto. Não que ele seja um iluminado ou coisa que o valha; é que o cinema tem esse poder de nos fazer acreditar em improváveis finais felizes. Booth é a personificação do cinema de Frank Capra. E, meu Deus, como isso é lindo!

Por fim (e aqui vou dar um spoiler porque, sinceramente, não há como escrever essa análise sem mencionar a cena final), Tarantino usa de sua marca registrada, a violência gratuita e completamente irreal, com um quê de desenho animado, para subverter a realidade e simplesmente eliminar da história do cinema o episódio do assassinato de Tate. E ele só faz isso por um motivo: porque o cinema, enquanto obra de arte, ainda permite.

(Quem nunca quis apagar uma mácula de algo que ama? Quem nunca fantasiou se livrar de um só episódio vergonhoso da própria história?).

Com Era uma vez... em Hollywood (e as reticências sonhadoras no título do filme deixam isso ainda mais claro, explícito no limite da cafonice), Tarantino transformou sua famosa e até cansativa ode à superficialidade num libelo em defesa do sonho, da liberdade, da felicidade sem propósito, de uma existência sem ressentimentos e sem intermináveis análises semióticas ou sociológicas, enfim, um libelo em defesa daquilo que mais amamos e que mais nos esforçamos para proteger: a vida.

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