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Escritora húngara mostra que ser estrangeiro é mais do que questão geográfica

"Todo dia", da húngara Terézia Mora, apresenta um personagem afásico perante os acontecimentos da própria vida. (Foto: Wikimedia Commons)

“Vamos chamar o tempo de agora, vamos chamar o local de aqui.” Com esse deslocamento do leitor (que pensa, obviamente, no seu próprio agora e aqui), Terézia Mora, autora húngara radicada na Alemanha, começa Todo dia. Publicado em 2004 em sua versão original e em 2018 no Brasil, com tradução de Aldo Medeiros, o livro é considerado por muitos críticos como uma das grandes obras alemãs contemporâneas.

Em um lugar e um tempo não definidos, o leitor pode acompanhar a vida — todo dia — de Abel, um estrangeiro. Sem cidades ou países definidos para a narrativa, fica claro que, para a autora, o ser estrangeiro é muito mais um sentimento do que uma questão geográfica. (Não é muito difícil para o leitor imaginar, com algumas informações dadas, que o país do qual Abel poderia ter vindo é da antiga Iugoslávia e estaria provavelmente na Alemanha. Mas esse é apenas um eco do livro, não sua voz mais alta.)

Mora constrói o livro de forma fragmentada, como se fosse possível recortar os dias da cronologia de uma pessoa, misturá-los e reorganizá-los de uma maneira que fizesse mais sentido temático. In media res, encontramos o personagem, divorciado, em uma situação estranha em um parque, pendurado de forma violenta e precisando de cuidados médicos (uma ocorrência que só se esclarece completamente no final do livro).

A partir disso, os diferentes momentos da vida de Abel se intercalam, mostrando a infância em outro país, a adolescência com a ausência paterna, o começo da vida adulta como um desertor (depois de ter fugido do serviço militar obrigatório) e como um acadêmico. Mas não só — entre eles se intercalam a vida de outras pessoas, estrangeiras ou não, que cruzam seu caminho. Assim, qualquer tentativa de fazer uma sinopse mais completa da obra me parece uma simplificação do processo de leitura — no qual o importante não é só o que, mas também o como e o quando.

Uma das características principais de Abel, porém, não pode passar batida: é considerado um gênio por muitos dos personagens por sua capacidade de falar fluentemente dez línguas. Mas o vocabulário extenso e diverso não dá ao personagem a capacidade de se comunicar — troca poucas palavras com aqueles que conhece. Afásico, é considerado um gênio atormentado. Ainda que faça pouco para manter esse status: vive de bolsas por algum tempo (ainda que os cursos não lhe rendam nenhum trabalho final) e, depois, trabalha minimamente com aulas e traduções para conseguir se manter. Uma figura que, certamente, guarda suas semelhanças com Bartleby, Stoner ou Oblomov.

Quero voltar ainda na questão das línguas. Abel é uma figura constantemente presa entre seu passado (frequentemente interrompido) e seu futuro incerto enquanto imigrante — uma figura sem um aqui e um agora definidos. Mesmo com suas dez línguas, não consegue dar conta, narrativamente, de sua existência. Afinal, um falante consegue se comunicar com alguma língua sem um aqui e um agora?

Pessoas e vozes

As técnicas que mais chamam atenção na escrita de Mora são a apresentação de novos personagens e a construção do narrador, feitas de maneira interligada constantemente. A autora apresenta os personagens em uma espécie de rede, deixando encontros e desencontros evidentes em todos os instantes da narrativa. O círculo de conhecidos de Abel se forma quase que por acaso, com as pessoas que encontra fortuitamente enquanto navega pela vida — Kinga, por exemplo, é uma mulher que conhece no trem enquanto está fugindo e que se tornará mais presente na sua vida no futuro; Konstantin, amigo dos primeiros anos, o encontrou em uma praça e o ofereceu abrigo na primeira noite na nova cidade.

Em parte, essa rede mostra os imigrantes como construtores de redes quase paralelas de socialização, já que a integração na nova sociedade acontece em poucos casos nessa narrativa. Uma cidade dentro de uma outra cidade. Acontece brevemente, por exemplo, com o próprio Abel, que encontra na figura de Mercedes (assistente de um professor que o ajudou quando chegou no novo país) uma maneira de prolongar seu visto e um ponto de afeto. O debate sobre migrações, identidade e integração é mostrado em diversos personagens e relações na obra de Mora.

Esses encontros são narrados em terceira pessoa na maior parte do livro. Mas, sem nenhum tipo de alerta, o narrador se transforma em uma primeira pessoa, fazendo um comentário espontâneo e com frequência irônico, revelando muitas vezes a intimidade de algum dos personagens. Não é incomum, principalmente no começo do livro, que o leitor se pergunte se deixou passar alguma coisa. Mas logo se percebe que essas inserções nada mais são do que comentários dos próprios personagens, deixados ali como fragmentos de vozes e pensamentos que agregam à obra uma complexidade muito maior, sem falar em uma camada de interpretação e significação nova.

Abel é um personagem em um lugar ao qual não pertence — e sem ter um lugar ao qual possa pertencer. Com questões no seu passado e incertezas do futuro, não têm um aqui e um agora para se situar no mundo. Flutuando, não há língua que seja capaz de usar para dar conta de sua própria narrativa. O narrador construído pela autora, porém, é quase o oposto do personagem. Tem uma linguagem flexível o suficiente para dar conta da multiplicidade de personagens, acontecimentos, sentimentos e histórias que se desenvolvem ao longo das mais de 500 páginas do livro. Um narrador que se transmuta sempre que necessário e se torna, assim, sempre uma personagem nova.

Mora alcança o que Abel não consegue: narrar os indivíduos em um mundo multicultural, com inúmeros aquis e agoras. Uma obra monumental para um mundo com cada vez mais exclusões, crises, políticas segregatórias e incertezas constantes.

© 2019 Rascunho. Publicado com permissão.

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