A imagem é surpreendente e quase inacreditável. Em plena manhã da última quarta-feira (3), bandidos usaram guindastes contratados legalmente para tentar roubar um reservatório de água em um condomínio do Programa Minha Casa Minha Vida em Triagem, na zona norte do Rio de Janeiro. Alertados pelos moradores, os policiais foram ao local e trocaram tiros com os bandidos. Quatro pessoas foram presas.
Infelizmente este não é um caso isolado. De acordo com um levantamento realizado em 2016, a cada 24 horas 7 pessoas são assassinadas no Brasil em casos de latrocínio, isto é, roubo seguido de morte. Os casos aumentaram 58% em 7 anos. A cada minuto, um veículo é roubado no Brasil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Latrocínio e roubo de veículos (sem falar no roubo de gigantescos reservatórios d’água) são crimes que demandam maior especialização por parte dos bandidos. O aumento do número de casos chama a atenção: ao contrário do que diz o ditado, o crime compensa, sim.
É o que alertam dois especialistas entrevistados pela Gazeta do Povo e que pesquisam as causas que levam indivíduos a optarem por entrar no mundo do crime. Ao contrário do que muitas pessoas podem pensar, os dados mostram que pobreza e desigualdade social não estão entre os principais motivos para isso ocorrer.
A referência acadêmica é Gary Becker (1930-2014), professor da Universidade de Chicago. Ele desenvolveu um modelo para analisar por que criminosos cometem crimes. Segundo os trabalhos do norte-americano, indivíduos respondem de forma racional e consistente a incentivos. Isto é, eles são agentes racionais que buscam maximizar suas ações. Dessa forma, eles consideram os possíveis benefícios da prática daquele crime (o ganho financeiro), bem como os ônus (probabilidades de serem pegos pela polícia e a severidade da punição). Os trabalhos renderam a Becker o Prêmio Nobel de Economia de 1992.
Em resumo, quanto maior a probabilidade de punição e mais severa for a pena em relação aos benefícios dos crimes, maior a capacidade de dissuasão para que indivíduos não migrem para atividades criminosas.
Profissionalização do crime
O PhD em Economia pela Fundação Getúlio Vargas Pery Shikida analisa a economia do crime (ramo que estuda os incentivos que fazem os indivíduos optarem pelo mundo do crime) a partir de pesquisas realizadas dentro de estabelecimentos penitenciários há mais de duas décadas.
“Os resultados de seus estudos confirmam os pressupostos básicos da teoria econômica do crime de Gary Becker, isto é, quando o indivíduo percebe que a expectativa de lucro da prática ilícita supera os custos percebidos, a tendência é de que seja efetuado o delito”, explica.
Segundo ele, os criminosos dos anos 1990 eram “menos profissionais” do que os contemporâneos. “Na média, [os bandidos] estão cada vez mais aperfeiçoados no tocante à criminalidade de cunho econômico, como assaltos, tráfico e contrabando”, alerta.
Ele entrevista detentos que cometeram crimes patrimoniais, como furtos, roubos estelionatos e extorsões. O tráfico de drogas e outros crimes que envolvam ganhos financeiros também entram no escopo da pesquisa, que busca compreender os motivos que levam um indivíduo a migrar para uma atividade criminosa, além de identificar as circunstâncias em que isso ocorre.
Criminosos em potencial fazem um cálculo: quando percebem que o tráfico de drogas, o roubo e o furto serão mais rentáveis economicamente do que trabalhar em atividades econômicas de baixa qualificação, o mundo do crime passa a ser visto como mais vantajoso.
Quando a probabilidade de ser detido pela polícia, julgado e condenado pelo crime é baixa, a criminalidade passa a ser mais atrativa. Entre 2015 e 2018, apenas 4,2% dos roubos registrados motivaram a abertura de investigações no Estado do Rio de Janeiro. Os demais casos são engavetados. Já a Polícia de São Paulo solucionou apenas 3,6% dos casos de roubo registrados no estado em 2018.
O que não quer dizer que essa parcela ínfima dos criminosos foi efetivamente punida. Na fase policial, basta a identificação do suspeito para que o inquérito seja encerrado. Depois disso, o caso é remetido ao Judiciário para julgamento e possível condenação.
Outro fator levado em conta pelos bandidos são as perspectivas de punição. Se o poder Judiciário é lento e as punições são consideradas brandas, o efeito de desestimular bandidos a cometerem crimes é menor.
Há ainda os custos morais (custo de ser chamado e de ser conhecido em sua comunidade como “ladrão” e “traficante”, por exemplo). Quando a percepção é a de que os benefícios superam os custos, eles tendem a migrar atividade ilícita.
Quando um indivíduo decide cometer um crime patrimonial há, portanto, racionalidade nessa escolha. O indivíduo raciocina e calcula os custos e benefícios decorrentes dessa atividade ilegal. Caso a conclusão seja a de que é mais vantajoso entrar no mundo do crime, logo ele planeja a atividade ilícita e a executa. Se for bem-sucedido, ele terá lucros na execução.
Um exemplo de aplicação da economia do crime é o estudo do doutor e especialista em Economia do Crime pela Universidade Federal do Rio Grande Cristiano Oliveira. O trabalho mostrou que mudanças na punição para menores podem reduzir em até 63% a quantidade de homicídios praticados pelos infratores dessa faixa etária.
Custo x benefício
Shikida conta que, quando começou a entrevistar os presos, ainda nos anos 1990, bastava autorização das instituições responsáveis pela administração penitenciária para fazer as pesquisas de campo nos estabelecimentos penais. “Agora também tenho que ‘conversar’ e me apresentar à ‘liderança’ informal das organizações criminosas que estão detidas, explicando os objetivos da pesquisa, especialmente para romper uma barreira de desconfiança dos detentos. Quando consigo o “aceite” das lideranças, os demais detentos são ‘autorizados’ a participar da pesquisa”, conta. Ele explica que a amostra não é enviesada, já que a premissa metodológica é de amostragem aleatória.
Os resultados obtidos por Shikida ajudam a entender os altos índices de criminalidade no Brasil. “O que se observa atualmente, e ao longo dos últimos 20 anos, é que, em média, o benefício percebido das atividades criminosas tem sido superior ao custo. Infelizmente esta é a nossa realidade”, diz.
A conclusão é endossada por Cristiano: “Quando se pergunta se o crime vale a pena, a própria pergunta já pressupõe que há uma análise de custo/benefício. Nesse sentido, acredito que sim, [o crime] vale a pena porque os benefícios são altos e/ou os custos são baixos. Ou seja, os benefícios são maiores do que os custos. No Brasil, especificamente, acredito que a resposta está nos custos baixos”, defende o pesquisador.
O “mito” da pobreza e desigualdade
Pobreza e desigualdade, no entender de Shikida, não são causas da entrada para o crime. “As razões para um expressivo percentual de pessoas migrarem para os crime patrimoniais são cobiça, ambição, ganância e a ideia de ganho (pecuniário) fácil. As dificuldades econômicas (dificuldade financeira, endividamento, ajudar no orçamento familiar, desemprego) como causas de migração para o crime lucrativo são um fator de menor peso, pelo que mostram os estudos”, diz.
Na verdade, o pesquisador afirma que a pobreza e a distribuição de renda não são nem citados pelos detentos como razões para eles terem entrado para o mundo do crime.
Segundo Cristiano, porém, é possível que haja alguma influência da pobreza na motivação para a entrada de indivíduos para a criminalidade. Isso porque os ganhos financeiros com roubos e tráfico são muito altos. “Considerando que o modelo parte da premissa de que, quanto menor o custo de oportunidade para entrar no mundo do crime, maior a tendência de essa migração acontecer, é razoável pensar que um indivíduo que não tenha oportunidades no mercado de trabalho formal ou que ganhará pouco se atuar na legalidade pode estar mais impelido a entrar na criminalidade”, explica. Mas ele reforça que isso não quer dizer que toda pessoa pobre tenda a ser um potencial criminoso, nem que esse seja o principal fator de entrada para o mundo do crime.
Já sobre desigualdade, o pesquisador explica que a questão é muito relativa. “Desigualdade pode ser calculada em termos agregados, dentro de um determinado grupo, em dado local e em dado tempo”, diz. “Porém, o fato de um indivíduo ter algo motivar outro a querer subtraí-lo me parece um caso de problema de correlação espúria realizado por parte de alguns estudos”, critica. “Há outras variáveis que afetam o crime e afetam simultaneamente a desigualdade que muitas vezes não são consideradas por esses levantamentos”, opina.
Para Cristiano os estudos que buscam as explicações do ponto de vista do indivíduo são preferíveis. “Não consigo enxergar alguém em um ambiente desigual e decidindo ‘ah, fulano tem, também quero ter, então vou tirar dele, fazer uma espécie de distribuição de renda e me tornar um criminoso Robin Hood’”, diz.
O professor afirma ainda que há um custo moral ao violar regras. Logo, é comum os indivíduos buscarem justificativas morais para infringi-las. Isso ocorre tanto para pequenas infrações, como a violação de um direito autoral, até para crimes mais graves, como homicídios.
Por isso, o discurso de que a sociedade é injusta e que o crime é uma forma de distribuição de renda pode ser prejudicial. “É tudo o que criminosos querem ouvir para seguirem cometendo crimes sem maiores pudores”, critica.
Um exemplo do que Cristiano diz é o traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, conhecido como Nem da Rocinha. Antes de migrar para o mundo do crime, ele trabalhava como supervisor de equipes de uma empresa de TV a cabo. Atualmente, cumpre penas que somam mais de 162 anos por homicídios, tráfico de drogas, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. A justificativa que ele deu para deixar o emprego e entrar para o tráfico foi uma doença que acometeu sua filha em 1999 e a necessidade de pagar as despesas médicas do tratamento. Ele afirma não se arrepender de sua escolha.
Travas morais
O perfil sócio demográfico das pessoas pesquisadas por Shikida mostram que as três grandes travas morais - religião, família e educação - que contribuem para conter a criminalidade estão bem fragilizadas. “A maioria dos entrevistados acredita em Deus e diz ser devota de alguma religião, mas muitos não a praticavam”, diz.
“No tocante à família, constatou-se que várias uniões, formais ou informais, já haviam sido desfeitas, sendo esta prática comum também para aproximadamente um terço dos pais dessas pessoas pesquisadas. Aproximadamente um terço também foi o contingente de entrevistados que disseram ter sofrido algum tipo de violência familiar”, argumenta. “Como elementos adicionais que estão relacionados com a má formação e exemplo familiar, verificou-se o expressivo uso de bebida alcoólica, fumo e drogas ilícitas para grande parcela dos que colaboraram com este estudo. Evidentemente, a combinação desses vícios está calcada em um tipo de vida considerada inapropriada, denotando falta de base familiar”, expõe o professor.
Já em relação à educação formal, Shikida conta que a maioria dos detentos tem apenas o ensino fundamental. “É comum a formação ser interrompida por envolvimento com o crime, drogas e a prisão”, diz.
Quando as travas morais são fragilizadas, a perda moral proveniente da execução do crime exposta na equação do modelo de Becker é menos expressiva. Isso acaba por facilitar o cálculo de que a prática criminosa é mais vantajosa do que o custo moral de se entrar para o mundo do crime.
Cristiano diz que a religião é uma referência, mas sua influência para impedir o cometimento de crimes não é categórico. “Os resultados dos estudos são desanimadores. Mesmo os mais recentes, com metodologias mais robustas, ainda são, em sua maioria, inconclusivos”, diz.
A situação muda quando o fator analisado é a relação com a família. “Os estudos estão mostrando maior influência do papel dos pais na redução da tendência de se cometer crimes por parte dos filhos”, afirma Cristiano.
Shikida destaca ainda duas descobertas de sua pesquisa: “o delito mais frequentemente motivado pela expectativa de ganho financeiro fácil, cobiça e ganância é o tráfico de drogas”. Além disso, ele destaca que seus estudos mais recentes, realizados no Paraná e no Rio Grande do Sul, revelou a “expectativa de vida” dos delinquentes. “Eles morrem cedo e quase sempre são vitimados de forma violenta. Em média, os criminosos morrem com 25,5 anos”, diz.
Embora a baixa expectativa de vida possa ser vista como um fator de alto desestímulo e haja criminosos avessos aos riscos, segundo Shikida a maioria deles gosta de correr riscos. “Por mais que estejam cientes desses riscos, eles não titubeiam para fazer aquela atividade que consideram vantajosa”, explica.
O que pode ser feito?
Diante desse diagnóstico, os especialistas dizem o que deve ser feito para o crime deixar de compensar.
Cristiano afirma que criar políticas públicas eficazes no combate à violência é uma questão complexa. “Elas passam por um conjunto de medidas que vão desde a nutrição na infância (que afeta o desenvolvimento cerebral e consequentemente a tomada de decisões futuras) até as intervenções na forma da lei, punindo severamente ações que a sociedade não aprova. Ou seja, leis com um caráter pedagógico de mostrar que o crime é errado e não compensa, melhorando o efeito de dissuasão”, afirma.
Já Shikida defende a necessidade de resgatar as travas morais: “Precisamos resgatar urgentemente o tripé família-escola-religião, se não vamos continuar a ver pesquisas, baseadas em dados primários, concluindo que o crime compensa em nosso país. Como diria Padre Antônio Vieira há séculos, ‘a pior coisa que têm os maus costumes é serem costumes, o que é pior ainda do que serem maus’”.
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