No dia 28 de novembro de 2018, no anfiteatro da Universidade de Hong Kong, um jovem cientista de 34 anos chamado He Jiankui subiu ao palco fora da programação oficial do segundo Encontro Internacional sobre Edição de Genomas Humanos. Ele vinha desenvolvendo uma pesquisa em segredo, até que a informação vazou e a organização do evento abriu espaço para ele explicar seu trabalho.
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O auditório estava lotado de pesquisadores e jornalistas, mas o silêncio era tão grande que a organização teve que pedir que os fotógrafos esperassem o fim da apresentação para voltar a disparar suas máquinas. Visivelmente tenso, He Jiankui, professor da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China, em Shenzhen, falou por 20 minutos, acompanhado de uma série de slides. O conteúdo de sua apresentação era histórico: tratava-se do nascimento dos primeiros seres humanos cujo DNA passou por edição. Depois de mais de 4 bilhões de anos de existência de vida na Terra, é a primeira vez que uma espécie se torna capaz de driblar os mecanismos da evolução e manipular seu próprio código genético.
Mas a reação à notícia não foi nem um pouco eufórica. Em primeiro lugar porque os métodos utilizados por He Jiankui são questionáveis. E, em segundo, porque a pesquisa trouxe à tona um grave problema: o fato de que a comunidade científica se deu conta de que não é capaz de conter as experiências com genética humana.
Se derem errado, elas serão capazes de criar gerações inteiras de pessoas com deficiências ou doenças antes inexistentes – afinal, um único ser humano com o genoma editado pode transmitir essa mudança para todos os seus descendentes. Se derem certo, podem dar origem a uma era em que super-humanos, mais fortes, inteligentes e imunes a uma série de doenças suplantam pessoas mais pobres, sem acesso a técnicas de edição de genoma.
“Editar um embrião humano é relativamente simples, e qualquer médico competente consegue implantar o embrião em um útero”, diz George J. Annas, diretor do Centro de Legislação sobre Saúde, Ética e Direitos Humanos da Universidade de Boston. “O problema é que o procedimento é perigoso para a criança”.
Gêmeas imunes
Durante a apresentação, He Jiankui contou que produziu, em laboratório, embriões de pais portadores de HIV e mães que não têm a doença. Então, editou o código genético dos embriões para que eles não contenham o gene CCR5, utilizado pelo vírus da Aids para se espalhar pelo organismo. Editar o DNA de embriões humanos para fins de pesquisa é comum em centros de pesquisa, principalmente na China. Mas geralmente eles são coletados em clínicas de fertilidade e não são considerados viáveis para uma gestação.
He Jiankui foi além de apenas manipular embriões que a ciência considera descartáveis: ele fertilizou duas mulheres. Uma das mães deu à luz duas crianças, gêmeos que o pesquisador apelidou de Lulu e Nana. A outra estava, no fim do ano, em estágio inicial de gestação. He Jiankui garante que as identidades das crianças e dos pais serão preservadas e sua saúde monitorada por, pelo menos, 18 anos. Há indícios, inclusive, de que as duas não serão apenas imunes à Aids: a supressão do CCR5 tem o potencial de aumentar a capacidade cognitiva.
Por que publicar os resultados sem divulgar a pesquisa completa e submetê-la à revisão da comunidade científica? Há controvérsias sobre as motivações do pesquisador, mas sua apresentação durante o Encontro Internacional sobre Edição de Genomas Humanos foi incluída às pressas depois que a revista Technology Review, publicada pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), colocou no ar, no dia 25 de novembro, uma reportagem exclusiva sobre o estudo.
Rapidamente, He Jiankui reagiu apresentando seus resultados para a equipe da Associated Press. A repercussão levou o pesquisador ao palco do principal evento que discute precisamente os limites da edição de genes humanos – a primeira edição havia sido realizada em Washington, em 2015. À fala de 20 minutos, seguiram-se 40 minutos de perguntas, da comunidade científica e da imprensa.
Entre uma pergunta e outra, o biólogo David Baltimore, Prêmio Nobel de Medicina em 1975, pediu a palavra para criticar o estudo: “Não foi um processo transparente, só fomos informados depois que os bebês nasceram. Houve uma falta de regulação da parte da comunidade científica por causa da falta de transparência.”
Prisão domiciliar
As reações ao estudo foram violentas. O comitê organizador do evento emitiu uma nota no dia seguinte, em que afirma: “Tomamos conhecimento de um anúncio inesperado e bastante perturbador de que embriões humanos teriam sido editados e depois implantados, levando à gravidez e ao nascimento de gêmeos”. E conclui: “Mesmo que a execução das alterações seja confirmada, o procedimento foi irresponsável, e falhou em seguir as normas internacionais.”
As críticas ao estudo se multiplicaram. Os slides apontam uma série de indícios de que a edição de genoma não foi feita corretamente. “A falta de verificação independente e de publicação em revistas científicas fazem muitos cientistas desconfiarem até mesmo que o estudo tenha sido realizado”, afirma o professor George J. Annas.
O hospital onde as crianças nasceram e a universidade onde o pesquisador atuou correram para negar qualquer envolvimento com a pesquisa. O governo chinês pediu a suspensão dos trabalhos e a investigação dos procedimentos adotados por He Jiankui – que acabou demitido da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul da China e hoje está abrigado em seu apartamento funcional do campus, com a esposa e as duas crianças pequenas, sob forte vigilância de guardas.
“Conversei com ele por telefone algumas vezes. Ele está bem, mas sem acesso a seu antigo laboratório”, afirma, em entrevista a Gazeta do Povo, William B. Hurlbutt, professor do Departamento de Neurobiologia da Universidade Stanford e membro do Centro de Bioética e Dignidade Humana da universidade.
Hurlbutt conheceu He Jiankui enquanto o pesquisador chinês estudava nos Estados Unidos – o país é o maior concorrente dos chineses na corrida para desenvolver a edição de genoma. Diz que o estudo foi, sim, realizado, e que o colega errou ao fazer experimentos com humanos, mas tinha boas intenções. E, principalmente, não agiu sozinho, apesar de agora ser o único a receber punições.
De fato, há sinais de que o cientista foi transformado em bode expiatório solitário de um estudo complexo, que contou com o apoio das autoridades e instituições locais. Há registros de que um diretor do hospital onde nasceram as gêmeas elogiou publicamente a pesquisa e especulações sobre um possível aporte financeiro fornecido pelo governo da região de Shenzhen. Além disso, nenhum outro colega ou assistente de He Jiankui foi punido até agora.
Edição barata
“A divulgação do estudo foi uma catástrofe para ele”, diz Hurlbutt, um dos desenvolvedores da técnica mais utilizada para a edição de genes, a CRISPR-Cas9. “Ele queria publicar em um jornal científico e lidar com as revisões com calma, mas a divulgação antecipada mudou os planos”, relata. “Muitas pessoas sabiam que ele estava buscando esse objetivo, eu sabia, mas ele agiu rápido demais. É ambicioso e cometeu um erro grave, mas é idealista. Queria, sinceramente, o bem da humanidade. A Aids é um problema grave na China”.
Para o professor americano, havia outras pessoas, nos Estados Unidos e na China, trabalhando para gerar humanos com os genes editados. He Jiankui era apenas mais uma, e agiu em consonância com autoridades de seu país. “Ele não é um sujeito solitário e maluco. Muitos outros centros de pesquisa chineses estudam edição de genomas, mas o governo chinês alega que só He Jiankui sabia de tudo”.
O pesquisador pode ter interrompido seu trabalho, diz ele, mas outros cientistas seguem o mesmo rumo.
“O governo chinês está interessadíssimo na tecnologia de edição de genoma, tem objetivos ambiciosos em biotecnologia e tecnologia genética. Existem pesquisadores que acham que seria melhor não abrir essa porta, para um mundo de projetos perturbadores, muitos bancados por particulares. Mas vai acontecer, já está acontecendo”.
Essa porta foi aberta pelo desenvolvimento, nos últimos anos, da técnica de CRISPR. CRISPR é a sigla em inglês para Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas. A sigla faz referência a sequências de DNA de bactérias, bastante repetitivas, e que incluíam genes de outros vírus. Elas são conhecidas há três décadas, mas em 2007 uma fábrica de iogurtes percebeu que a mesma configuração estava presente nas bactérias que fermentam o leite.
A comunidade científica voltou a atenção ao CRISPR, até demonstrar, em 2012, que essa sequência de DNA é capaz de orientar o corte de partes de qualquer gene. Uma enzima, chamada Cas9, viaja junto e faz o papel de tesoura. O resultado é mais eficiente e preciso do que qualquer outra técnica de edição de genoma. A descoberta provocou uma verdadeira corrida na indústria. Ela tem centenas de utilidades, que incluem desde acelerar a fermentação de bebidas alcoólicas até produzir soja imune a praga e mosquitos resistentes a parasitas que provocam doenças em humanos, como a malária, passando pela melhoria de basicamente tudo o que sai de uma refinaria.
Entre humanos, as pesquisas podem levar a uma leva de pessoas imunes a problemas cardíacos, câncer ou diabetes, ou mais altas, fortes e inteligentes. Essa perspectiva parecia reservada a um futuro distante. Até que, em 2018, He Jiankui gerou Lulu e Nana e trouxe o futuro para muito mais perto.