Imagine ser habitante de um país superpopuloso, de quase 2 bilhões de habitantes. Todo mundo vive em bolhas, em contato apenas com quem pensa igualzinho, compra as mesmas coisas, nos mesmos lugares, e faz questão de ofender todo o resto que pensa um pouquinho diferente. Nesta terra, não existe democracia: um ditador de hábitos excêntricos controla tudo o que pode ser publicado, mesmo que seja mentira – acontece que notícias falsas circulam com tamanha naturalidade que acabam até sendo mais lidas e comentadas do que as verdadeiras.
A imprensa depende da empresa do ditador. A publicidade também. Não é viável abrir uma loja sem participar do universo virtual que ele criou. E mais: é mais fácil ser violento, fazer apologia da justiça com as próprias mãos e divulgar teorias da conspiração sem pé nem cabeça do que simplesmente viver de maneira pacífica e sensata.
Pensou na China? Não: este é o Facebook. Nada existe fora da rede social, e dentro dela as regras de convívio social, de gestão política e de economia são tão ultrapassadas que você pode veicular um anúncio e escolher que ele não seja visto por negros (!). Mark Zuckerberg é o dono de tudo. E em suas mãos o planeta tem um futuro temerário pela frente.
Recentemente, o Facebook se envolveu em um dos maiores escândalos de vazamento de dados da história. Ao menos 87 milhões de usuários tiveram suas informações pessoais coletadas e compartilhadas, sem permissão explícita, pela Cambridge Analytica.
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“Podemos chamar o Facebook de plafatorma, rede de contato, fornecedor de conteúdo. Nenhuma dessas definições é correta. Até mesmo ‘império’ é uma palavra que não exprime totalmente o tamanho do poder que a empresa alcançou”, afirma Julia Powles, professora da Universidade de Cambridge e pesquisadora de políticas e legislação ligada à tecnologia.
O problema, diz ela, é que, somados, Google e Facebook dominaram todas as etapas do processo de comunicação, desde a escala micro (aquele seu primo que você adora, nunca mais viu, e só consegue acompanhar graças às redes sociais) até toda a cadeia da indústria de jornalismo, relações públicas e publicidade. “Juntos, Facebook e Google nos definem. Eles se tornaram o único meio através do qual as pessoas entendem o mundo. Este grau de poder e controle é inédito na história”, diz Julia.
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O monopólio é construído com base em pouca transparência. Veja o caso da aposta em publicidade em vídeo: em julho de 2016, a empresa anunciou que este era o futuro do Facebook. Eis que as empresas, de todos os portes, revisaram suas estratégias e começaram a correr na direção do vídeo. Pois o número tinha sido inflacionado: na verdade, a companhia estava levando em consideração casos em que menos de três segundos dos vídeos eram exibidos. Com isso, a estimativa havia sido exagerada em algo em torno de 60% a 80%.
Juntos, Facebook e Google nos definem. Eles se tornaram o único meio através do qual as pessoas entendem o mundo. Este grau de poder e controle é inédito na história
“No fim das contas, a tendência agora é que os vídeos realmente sejam mais usados, porque o Facebook induziu o mercado a correr nessa direção. Mas o fez de uma maneira reprovável, forçando o mercado com base em dados incorretos”, afirma Ellen P. Goodman, co-diretora do Institute for Information Policy & Law, da Universidade Rutgers, de Nova Jersey.
Censura arbitrária
Na ditadura do Facebook, é quase impossível entrar em contato com um representante da empresa. Os usuários têm contas bloqueadas ou excluídas sem explicação. Não existe um serviço de atendimento – algo que qualquer companhia, de qualquer regime democrático, é obrigada a manter. O professor escolar americano Stephan Neidenbach, por exemplo, passou por vários problemas com bullies que perseguiram uma página que ele criou a favor da divulgação de vacinas e de alimentos geneticamente modificados, We Love GMOs and Vaccines. “O Facebook parece reagir muito mal a denúncias e reclamações”, ele relata.
“Eu só consegui algum tipo de retorno sobre os meus problemas de suspensão da conta sem motivos claros porque um dos funcionários do Facebook é meu conhecido. De outra maneira, não sei como eu iria fazer”. O professor se diz chocado com a maneira como a rede social reage mal a debates mais acalorados. “Acredito numa internet livre e aberta. Não suporto a censura. O Facebook deveria funcionar como uma praça pública, mas eu me surpreendo ao ser monitorado de maneira tão arbitrária”.
“Os grupos anticiência aprenderam a driblar o sistema do Facebook”, explica o médico oncologista americano David Gorski, que já teve a conta bloqueada várias vezes ao tentar se defender de manifestantes religiosos que questionam seus posts sobre praticamente tudo, de conceitos de Charles Darwin à defesa da quimioterapia. “Eles aguardam que um de nós cometa qualquer deslize que possa se parecer com uma violação nos termos de conduta, enquanto que eles mesmos nos agridem usando termos que o algoritmo não considera proibidos”.
Acredito numa internet livre e aberta. Não suporto a censura. O Facebook deveria funcionar como uma praça pública, mas eu me surpreendo ao ser monitorado de maneira tão arbitrária
Enganar os mecanismos de controle de conteúdo do Facebook não é difícil, dado que, desde agosto, a empresa não tem mais editores humanos cuidando de textos, vídeos e fotos inapropriados. Todo o monitoramento é feito por máquinas que seguem um algoritmo, que é, obviamente, muito mais previsível.
Resultado: é mais fácil conseguir o bloqueio de contas de um professor que mantém um blog a favor de vacinas do que publicar uma foto de uma mãe amamentando, mesmo que os mamilos não apareçam. Ou mesmo uma imagem icônica, como a da garota vietnamita fugindo de um ataque americano com napalm. A foto foi bloqueada porque, no regime de Mark, a imagem mais marcante das últimas décadas e uma foto criminosa de estímulo à pedofilia não se diferenciam.
O veículo que publicou a imagem, o Aftenposten, maior jornal da Noruega, precisou estampar uma carta aberta a Zuckeberg em sua primeira página para que a imagem fosse liberada – isso porque o post em questão já havia sido publicado em referência a um episódio anterior, quando o escritor Tom Egeland teve a conta de Facebook bloqueada depois de publicar esta e outras sete fotografias de guerra icônicas.
Tudo isso indica que, no fim das contas, a ditadura do Facebook não é tão diferente assim da China. Zuckeberg, aliás, adora o país mais poderoso do mundo. Está aprendendo a falar mandarim, viaja para Pequim com frequência e, segundo fontes do jornal The New York Times, mandou desenvolver um aplicativo que permite ao Facebook censurar conteúdos de acordo com a localidade onde o usuário se encontra. Seria uma forma de concretizar a realização de um sonho antigo: colocar a rede social novamente dentro da China, de onde foi expulsa em 2009.
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Se o Facebook hoje tem ao menos 1,7 bilhão de usuários, o país forneceria outros potenciais 1,3 bilhão de cidadãos. Estes, sim, não estranhariam tanto as práticas absolutistas da empresa fundada nos dormitórios da Universidade de Cambridge.
Vida sob controle
Logo depois que Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos, o atual titular do cargo, Barack Obama, fez um alerta a respeito das notícias falsas veiculadas, contra Trump e contra Hillary Clinton, ao longo de toda a campanha eleitoral. “Se não levarmos os fatos a sério e não conseguirmos diferenciar argumentos sérios de propaganda, então temos um problema”, ele declarou. Pode parecer lamentação de um derrotado, mas Obama chamou a atenção para uma questão importante: de acordo com um levantamento do jornalista Craig Silverman para o site BuzzFeed, a soma de todos os tipos de reações (curtidas, compartilhamentos e comentários) para as 20 reportagens mais populares da campanha aponta que, entre agosto e o dia das eleições, as notícias falsas venceram as verdadeiras por 8,7 milhões contra 7,3 milhões.
As notícias falsas fazem parte de um conjunto cada vez mais influente. Elas estão no pacote de informações que fazem a cabeça dos eleitores: segundo o instituto Pew, 44% dos americanos adultos procuraram o Facebook para se informar sobre os candidatos. Entre os jovens de 18 a 29 anos, 35% acreditam que as redes sociais são a melhor fonte de informação.
A reclamação de Obama forçou Zuckeberg a se manifestar. “É uma ideia muito maluca acreditar que notícias falsas no Facebook influenciaram as eleições de qualquer forma”, afirmou, reforçando o velho argumento de que o Facebook é uma empresa de tecnologia, e não de mídia ou de comunicação. Nada mais incorreto. “Veja, querido Mark, você é o editor mais poderoso do mundo”, escreveu Espen Egil Hansen, o editor-chefe do jornal holandês Aftenposten, na carta aberta ao dono do Facebook. “Acredito que você esteja abusando desse poder”. Diante do tamanho da repercussão do caso, o Facebook anunciou que está revisando suas políticas de monitoramento de notícias compartilhadas na rede social.
O ditador sabe tudo sobre você
No Canadá, na Bélgica, na Austrália... O Facebook já foi processado várias vezes por invasão de privacidade. O fato é que tudo o que se publica fica nos bancos de dados da rede social, mesmo quando a conta é suspensa (a empresa alega que as informações desaparecem em definitivo apenas quando a conta é deletada). E estas informações podem ser vendidas a outras empresas. E usadas pela máquina publicitária criada pelo próprio Facebook.
“Infelizmente, o Facebook exerce controle total sobre o acesso a seus dados por fontes externas, como pesquisadores independentes”, afirma o professor da Universidade da Carolina do Norte, Zeynep Tufekci, em artigo para o jornal The New York Times. “É como se as empresas que produzem cigarros tivessem controle total e exclusivo a todos os registros médicos.”
E mais: seu feed não é nem um pouco aleatório. A empresa ecoa os posts de pessoas que o usuário costuma curtir – e não só no Facebook, mas também no Instagram e no WhatsApp, que pertencem a Mark. O resultado é uma bolha: você vê mais do mesmo, não tem contato com opiniões diferentes da sua. Isso facilita a venda de anúncios e posts patrocinados. E aumenta exponencialmente o clima de Fla-Flu sobre qualquer assunto.
Racismo é permitido
Imagine um jornal impresso que ofereça anúncios veiculados apenas nos exemplares que vão para bairros onde vivem pessoas brancas. Certamente seus escritórios seriam depredados e a empresa entraria em crise de credibilidade, certo? Pois o Facebook tem essa ferramenta. Quando o publicitário escolhe o público-alvo de um anúncio, ele pode excluir uma série de públicos-alvo que não interessam a ele. E dessa lista fazem parte negros, asiáticos e hispânicos. Procurada pelo portal noticioso Pro Publica, a companhia esclareceu que a diferenciação faz parte de um conceito de “afinidade ética” e serve apenas para focar os anúncios. “Isso é horrível, é massivamente ilegal” reagiu, para o mesmo site, o advogado John Relman.
Direitos humanos não valem nada
Tentamos denunciar um vídeo, publicado dentro da página Boletim de ocorrencia, uma das dezenas de grupos de Facebook que compartilham notícias favoráveis a todo tipo de operação policial, mesmo as abusivas, com comentários na linha de “tem que exterminar antes que se reproduza”. O vídeo em questão apresentava um grupo, que não se identifica nas imagens. Os homens forçam um garoto, acusado de tentar roubar um carro, a colocar as mãos no vão da porta do veículo. A porta é fechada com força, provavelmente quebrando os dedos do jovem.
O Facebook respondeu à denúncia: “Analisamos o vídeo que você denunciou por por promover violência explícita e descobrimos que não viola os nossos Padrões da Comunidade”. Neste caso, a rede social parece seguir a mesma lógica dos manifestantes anti-vacina ou anti-ciência: comportamentos violentos e autoritários são estimulados, desde que não ultrapassem alguns limites, como defender o terrorismo ou o nazismo.
Os exilados sofrem
Não demos poder demais, informações pessoais demais, não damos tempo demais ao Facebook em troca de absolutamente nada? Pior, recebemos um serviço de péssima qualidade, enviesado, mentiroso, que não tem beneficiado em nada seus usuários? A resposta, obviamente, é “sim”. Mas quais são as alternativas? Deixar o Facebook? Abandonar os grupos de amigos e de contatos de trabalho, perder esta ferramenta de comunicação que só cresce e engole tudo?
É possível, mas é difícil. Os casos de pessoas que tentaram deixar o reino de Mark Zuckeberg são muitos. A blogueira e coach americana Celestine Chua tentou. Acabou voltando. Já jornalista brasileiro Márcio Oyama não se arrepende. “Ficar longe do Facebook foi uma das decisões mais acertadas do ano”, ele afirma. “O Zuckberg manipula textos, vídeos, fotos e links postados na rede - sobretudo de usuários que gerenciam páginas de empresas, associações ou meros blogs - com o único objetivo de faturar. Quer aparecer? Quer ser relevante? Então, pague. ‘Promova’ os seus posts. Ridículo, né?”
O esforço de abandonar a vida na ditadura compensa. De acordo com o The Happiness Research Institute, basta uma semana sem usar o Facebook para se sentir mais feliz e menos preocupações. O instituto, sediado em Copenhagen, realizou um estudo com 1095 participantes, sendo que metade não poderia usar a rede social ao longo de uma semana. Quem ficou off-line se disse feliz em 88% dos casos, contra 81% do grupo de controle. Além disso, 41% se declararam preocupados e 16%, solitários, contra 54% e 25%, respectivamente.
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