Quando Lília Melo saiu do cinema, no início deste ano, seu único lamento era que a maioria dos seus alunos não tinha condições de ver o filme a que ela havia acabado de assistir — pelo menos, não na tela grande. Professora em uma grande escola estadual na periferia de Belém, capital paraense, ela deixou a sessão querendo que os jovens compartilhassem da mesma experiência. “Pantera Negra”, para Lília, foi “um marco” — um raro filme de super-herói apresentando um protagonista negro, com o qual a maioria de seus alunos poderia se identificar.
Ao chegar em casa, Lília escreveu em seu perfil no Facebook: “Trabalho na 2ª maior escola da rede estadual e seu público maior é crianças negras carentes. Seria significativo proporcionar a elas essa ida ao cinema para assistirem a esse filme e promover rodas de bate-papo após a atividade”.
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Não bastava ver o filme, entendia a professora — era preciso, também, ter a experiência completa de fazer isso em uma sala de cinema. O ingresso, no entanto, era proibitivo para as famílias de baixa renda. Ela, então, lançou de imediato a campanha para os seus mais de cinco mil amigos na rede social: quem estaria disposto a ajudá-la a realizar o sonho?
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A resposta, para sua surpresa, era que muitos estavam realmente dispostos a embarcar na ideia — rapidamente, o projeto de Lília Melo viralizou entre os seus amigos e, a seguir, tornou-se o assunto do momento em Belém. A iniciativa ganhou compartilhamentos na internet e virou notícia nos principais jornais e sites do Pará, que correram para repercutir a campanha.
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No fim das contas, a ação ecoou a tal ponto que inclusive os grandes estabelecimentos comerciais da cidade se uniram para ajudar: os dois principais shopping centers locais ofereceram matinês — com pipoca e refrigerante incluídos — sem qualquer custo para os alunos.
Na metade de março, 400 jovens da escola onde Lília leciona lotaram ônibus e tiveram a chance de assistir à história do super-herói de Wakanda, em duas sessões diferentes. Depois, debates ajudaram a aprofundar a mensagem do filme e a refletir sobre a importância da representatividade na ficção.
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Era a primeira vez que muitos deles viam um personagem negro ser apresentado como o grande protagonista de um filme desse tipo.
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E, então, algo novo aconteceu — precisamente o que a professora desejava desde o início: os estudantes tornaram-se, eles próprios, protagonistas. “Muitas universidades, museus e empresas se interessaram pela experiência e entraram em contato querendo ouvir os alunos e conhecer a história deles”, relata. “Vieram vários convites, e eles foram para empresas e começaram a palestrar. Ao invés de ficar em um auditório calados, eles iam lá para ser ouvidos”.
Violência
O sucesso da campanha para ver “Pantera Negra” deu notoriedade às ações feitas na Escola Estadual Brigadeiro Fontenelle, de ensino fundamental e médio, mas não foi a primeira iniciativa cultural surgida ali.
Lília Melo, professora de Língua Portuguesa e Redação, está na instituição há dez anos, e nos últimos quatro tem se dedicado a fazer parcerias com coletivos artísticos e culturais da comunidade. A Brigadeiro Fontenelle atende a população de Terra Firme, bairro periférico com mais de 60 mil habitantes e com a triste fama de ser um dos mais perigosos da região metropolitana de Belém.
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De fato, os projetos de Lília se iniciaram como resposta à violência. Com o bairro no centro de constantes operações policiais contra o narcotráfico, a população inocente da Terra Firme com frequência se vê em meio à mortandade causada pela guerra sem fim entre as autoridades e os criminosos.
Em 4 de novembro de 2014, uma chacina vitimou onze pessoas na comunidade e nos bairros vizinhos Sideral e Guamá, revoltando a população local — a série de assassinatos ocorreu logo após a morte do cabo Antônio Figueiredo, da Polícia Militar, que havia sido atacado a tiros em Guamá, onde morava.
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As onze mortes ocorridas na sequência tinham características de execução em represália ao crime original, e entidades como a Anistia Internacional se envolveram para cobrar a apuração do caso. No ano passado, duas pessoas implicadas no crime foram condenadas em júri popular, incluindo um ex-PM.
“A chacina gerou uma intervenção muito grande no cotidiano das pessoas”, relembra Lília. “Ficamos sem aula, os alunos estavam com medo de sair nas ruas. No WhatsApp, o tempo todo, a gente recebia nos grupos áudios e fotos de pessoas conhecidas, pessoas próximas que tinham sido exterminadas. Aquilo começou a ficar um verdadeiro terror, um verdadeiro pânico na comunidade”.
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No início de 2015, tentando reescrever essa história, a professora começou a firmar uma rede de contatos com grupos que atuavam de forma independente para promover a cultura e a arte no bairro. O plano era mostrar um lado da Terra Firme que não costumava sair no noticiário: em vez das páginas policiais, Lília queria que seus alunos também tivessem a chance de se enxergar em exemplos positivos que davam certo dentro do próprio local onde viviam e estudavam.
A professora também decidiu se mudar para o bairro, contrariando os alertas da família. “Diziam que eu era louca por me mudar para o ‘bairro mais violento’ de Belém”, ela conta. “Mas eu me apaixonei por esse lugar e por essa história, e queria muito que meus filhos participassem desse crescimento. Sempre me avisavam que eu estava vindo para o bairro mais perigoso, e eu respondia que era também o bairro mais produtivo. A gente precisa dar essa lição de humanidade”, defende.
Inspiração
O Cine Clube T.F., nome do projeto que levou os estudantes ao cinema, é a mais nova encarnação da caminhada da professora para oferecer aos alunos uma nova perspectiva. Mais do que organizar exibições de filmes, o grupo planeja se tornar também uma forma para que os adolescentes do bairro expressem a sua visão de mundo — em parceria com o coletivo Tela Firme, o plano, agora, é gravar cenas da vida cotidiana e das atividades realizadas na escola e na comunidade.
Pouco a pouco, através de oficinas de filmagem e edição, os alunos da Brigadeiro Fontenelle vão se tornar também diretores de seus próprios documentários sobre o que acontece na região.
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Além disso, através das iniciativas levadas a cabo na escola, Lília Melo também quer manter a proximidade com os estudantes recém-formados no ensino médio, seja ajudando na produção dos vídeos ou, mesmo, compartilhando suas histórias.
“Eles retornam à escola para incentivar aqueles que vão tentar vaga na universidade. Há muitas luzes que eles dão aos alunos: nossos jovens muitas vezes não têm onde estudar, não têm sequer uma mesa para colocar o livro, não têm um momento de silêncio vivendo na periferia da cidade”, destaca.
“É importante conhecerem as histórias de quem superou tudo isso e passou no vestibular. Quais estratégias eles montaram para conseguir estudar. Os ex-alunos da escola se tornam uma referência para os mais novos”.
Para a professora, as iniciativas culturais feitas na Terra Firme são tanto uma resistência quanto um projeto de vida. “O governo não faz, a gente não está tendo suporte, mas precisamos viver e queremos viver da melhor forma possível. A gente está no mesmo barco e se dá as mãos para fazer uma história melhor para contar amanhã”, conclui.
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