A tragédia no Rio Grande do Sul tem um aspecto inevitável e um evitável. O inevitável: a chuva recorde que se acumulou na região. O evitável: as falhas na prevenção à tragédia e no socorro às vítimas.
Nos últimos dias, algumas figuras de esquerda têm colocado ambos na conta da política de “Estado mínimo” supostamente implementada pelo governador Eduardo Leite (PSDB). Por causa dela, o poder público teria sido incapaz de prevenir as mudanças climáticas e de socorrer adequadamente as pessoas atingidas pelas enchentes.
"Um dos aprendizados que a mudança climática parece indicar é que as sociedades que adotaram políticas de 'Estado mínimo' vão sofrer bem mais fortemente os efeitos devastadores de catástrofes climáticas como a que afeta o Rio Grande do Sul", escreveu Pablo Capistrano, professor do IFRN (Instituto Federal do Rio Grande do Norte).
O escritor e militante de esquerda Xico Sá apontou para o mesmo culpado. Estas duas mensagens são apenas uma amostra do que se viu nas redes sociais, em declarações de acadêmicos, jornalistas e militantes, que aproveitaram a tragédia para emplacar a narrativa de que um Estado inchado seria melhor.
Mas a verdade é que, se o governo gaúcho merece críticas pelas falhas na preparação para a chuva excessiva, pedir “mais Estado” (leia-se, mais impostos e mais funcionários públicos) não ajudaria a resolver o problema.
A experiência demonstra o contrário: um Estado que se concentra no essencial — proteger a vida dos seus cidadãos — tem uma capacidade maior de reagir a desastres naturais.
Situação fiscal insustentável
Desde que assumiu o cargo, em 2019, a gestão de Eduardo Leite tem tentado reverter a situação fiscal insustentável do governo gaúcho.
O Estado tem o segundo maior endividamento entre as unidades da federação. O índice é de 185% da Receita Corrente Líquida (tudo o que o estado arrecada em um ano). A comparação com os vizinhos deixa claro o tamanho do problema: Santa Catarina tem uma dívida de 33% da Receita Corrente Líquida. O Paraná tem um índice de 0%.
Quando a atual gestão assumiu o governo, o índice de endividamento era ainda pior: 222% da Receita Corrente Líquida. De lá para cá, o governo gaúcho privatizou empresas públicas, promoveu uma reforma administrativa e também modificou a previdência dos servidores.
Wagner Lenhart, CEO do Instituto Millenium e presidente do Conselho de Administração do BDMG (Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais), diz que ligar as mortes no Rio Grande do Sul à austeridade fiscal é descabido. “Não faz sentido. Essas vozes estão apenas tentando tirar algum proveito político da tragédia. O governo do Rio Grande do Sul tem feito um trabalho fundamental de perseguir o equilíbrio fiscal, com movimentos importantes de modernização e reequilíbrio das contas públicas”, diz ele.
Lenhart diz que controlar os gastos públicos é essencial para permitir que o poder público atue de forma adequada em situações emergenciais. "Equilibrar as contas públicas, frear o descontrole das despesas com o funcionalismo e deixar a economia de mercado gerar riqueza não são os causadores de um desastre como esse. Na verdade, países e regiões que se pautam nessas premissas são mais prósperos, mais resilientes, mais seguros e respondem mais rapidamente a situações extremas como essa", ele afirma.
Cláudio Shikida, doutor em Economia pelo PPGE-UFRGS e especialista do Instituto Millenium, acrescenta que reduzir o número de servidores públicos não significa diminuir a capacidade do Estado. “A eficiência do setor público não tem a ver com a quantidade de pessoas empregadas. Depende da qualidade e da gestão pública. O problema do setor público brasileiro, como estamos vendo nesta tragédia, é de ineficiência", afirma.
Longe do Estado mínimo
Dizer que o Rio Grande do Sul tem uma política de "Estado mínimo" é um exagero. Eduardo Leite mantém uma equipe de 24 secretários — dez a mais que o presidente dos Estados Unidos. A equipe de Leite inclui os responsáveis pela Secretaria de Cultura, de Comunicação, e de "Inclusão Digital e Apoio às Políticas de Equidade".
Mas, mesmo se o governo gaúcho se limitasse às funções essenciais do Estado, isso não significaria que o poder público deixaria de atuar em calamidades como a atual. Na verdade, a proteção da vida dos cidadãos é uma tarefa essencial do Estado, mesmo para os defensores de versões mais extremas do liberalismo econômico.
Em um "Estado mínimo", não haveria financiamento público para eventos culturais ou esportivos. Tampouco os servidores públicos receberiam salários incompatíveis com a função. A eficiência maior permitiria uma infraestrutura mais preparada para resistir a tragédias naturais.
Como a liberdade econômica tem uma correlação positiva com o desenvolvimento, outra consequência indireta da redução do Estado é a melhoria nas condições de vida das pessoas. Por isso, é provável que houvesse menos pessoas vivendo em moradias precárias.
Segundo um levantamento feito pelo IGBE, Porto Alegre tinha mais de 60 mil domicílios em "aglomerados subnormais", termo usado para descrever favelas. Isso equivale a 11,7% das residências da cidade. Em Eldorado do Sul, outro município atingido fortemente pelas enchentes, o percentual é de 15,5%.
No Chile, que é o país com mais liberdade econômica da região, cerca de 81 mil famílias vivem nos chamados "campamentos" (equivalente às favelas brasileiras). Isso representa aproximadamente 1,2% do total de residências no país.
O Chile aparece em 21º lugar no Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation. O Brasil é o 124º.
Liberdade econômica é boa para o meio ambiente
É difícil afirmar que a tragédia do Rio Grande do Sul é fruto da ação humana sobre o meio ambiente.
Mas o é possível dizer, com segurança, que países com mais liberdade econômica têm um desempenho melhor nesse campo.
A Heritage Foundation cruzou os dados do seu Índice de Liberdade Econômica com o Índice de Desempenho Ambiental da Universidade de Yale. A correlação é clara: quanto mais livres, mais os países tendem a cuidar do meio ambiente.
"No mundo todo, tem se demonstrado que a liberdade econômica aumenta a capacidade de inovação que não prejudica o meio ambiente. A relação positiva entre a liberdade econômica e níveis maiores de inovação permite uma capacidade maior para lidar com desafios ambientais", afirma o relatório publicado neste ano pela organização americana.
Para Shikida, o mercado tem ferramentas para promover a preservação ambiental sem uma intervenção excessiva do Estado. “A aplicação de instrumentos de mercado no estímulo à preservação do meio ambiente já mostrou sua utilidade em diversas ocasiões. Como exemplo, lembro do mercado de crédito de carbono e um, mais recente, que é o crédito de reciclagem. Em uma reconstrução como a que o Rio Grande do Sul precisa, é importante que isto seja reforçado”, diz ele.
Rio Grande do Sul arrecada muito e recebe pouco
Outro problema que pode ter agravado a situação no Rio Grande do Sul é o desequilíbrio do modelo fiscal brasileiro. A centralização excessiva dos recursos reduz a capacidade de estados e municípios agirem em casos de tragédia, e coloca um poder excessivo nas mãos de gestores a milhares de quilômetros de distância.
De cada quatro reais em impostos federais arrecadados pelo Rio Grande do Sul, apenas um retorna para o estado.
Para Shikida, o problema não tem uma solução fácil: "É uma negociação difícil, mas necessária", analisa.
Lenhart afirma que esse desequilíbrio merece atenção. “De modo geral, o modelo federal brasileiro deveria ser revisto. O que temos hoje, e deve piorar com a reforma tributária que concentrará mais poder em Brasília, é um país que tem a federação apenas no nome", diz ele, que complementa: "Brasília concentra recursos, competências e poder típicos de regimes unitários. Em um país com as dimensões do Brasil isso é especialmente disfuncional."
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